Este foi um ano com forte odor a apocalipse. Não da matéria terminal de que cuida a ficção (sobretudo a ficção científica), mas de uma distopia que desafiou os modos de viver. Durante todo este tempo, a dimensão da peste tomou conta de tudo. Até da lucidez dos governantes, que, apanhados numa maré de desorientação geral, provaram não estar à altura.
Os países ensimesmaram. Os muros voltaram a ser verbo vivo, roçando o revivalismo medieval quando até dentro dos próprios países se ergueram barreiras entre diferentes localidades. Mas os muros desceram ao nível do indivíduo: passámos a desconfiar uns dos outros, como se o outro que se atravessava no caminho fosse o próximo portador do vírus. A desconfiança do outro passou a ser manual de sobrevivência. Salvo-conduto da desumanização. Estávamos a ser derrotados pelo vírus, com o nosso próprio consentimento e contributo ativo, quer através da contaminação dos outros, quer por causa do afastamento dos outros (no duplo significado que a expressão comporta: eu afastado dos outros e os outros afastados de mim).
O estigma da paralisação da economia semeou o caos e a desesperança, sobretudo entre aqueles cujas atividades foram atingidas pela quarentena que, na altura, era o único modo de travar a propagação da peste. As pessoas desabituaram-se dos costumes sociais, forçadas ao “distanciamento social”. Mas reaprenderam novos usos sociais, reinterpretando-os à imagem das novas exigências. Durante o período mais severo, que coincidiu com o confinamento que arrumou as pessoas dentro de casa, a misantropia foi entronizada como o novo código de conduta. Havia o pressentimento de que tínhamos sucumbido como espécie quando ficámos reféns da misantropia.
O odor a distopia também se propagou mercê da polarização que passou a ser palavra-chave. Os negacionistas esbarravam nos catastrofistas. Os que desvalorizaram o vírus, continuando a viver (e alguns, a morrer) como se nada de novo se tratasse, contrariavam os que se refugiaram no excesso de zelo sanitário, não sabendo estes que nem assim estavam protegidos contra a contaminação. Os que desconfiam da vacina (enfim descoberta) estão nos antípodas dos que antecipam que a peste será derrotada pelas vacinas. Há quem jure a pés juntos que a pandemia é o preço pela avareza humana que não olha a meios para delapidar o ambiente; e há os que adivinham conspirações chinesas para emoldurar o domínio mundial que este país desejará exercer. Há os que aceitam, passivamente, as restrições das liberdades; e os que protestam contra quem as determinou, admitindo uma relação causal entre a exibição de autoridade e a aplicação dessas restrições.
Ainda é prematuro fazer balanços. Muito embora as vacinas sejam o étimo da esperança, pesam muitas incertezas sobre o futuro. São mais as incógnitas do que as perguntas com resposta incontestável. Não se sabe se vem aí uma terceira vaga. Não se sabe se as mutações do vírus constituem mais uma armadilha, ditando um passo atrás. Não se sabe se voltaremos ao “normal” (faltando, ainda, uma definição convincente de “normal”), ou se a vitória sobre a pandemia irá corresponder a um “novo normal”. Não se sabe, sequer, se iremos entrar num ciclo reprodutivo de pandemias, com sucessivos vírus com elevado potencial de contágio. Não se sabe se nos vamos livrar das máscaras que nos açaimaram.
Não se sabe: esta parece a única certeza aceitável. Porventura, o significado de “novo normal”. Ou, quem sabe, a permanência de uma distopia que tem a incerteza como fermento perene.
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