Este ano é diferente. A peste adulterou tudo. Até o natal. Podiam as crianças esperar pelo pai natal com a habitual barba branca pendida sobre o peito, que as intenções sairão frustradas. O pai natal distribuirá as prebendas com uma enorme máscara a ocultar toda a barba, uma máscara como se de umas cuecas de gola alta se tratasse, pois (está devidamente estudado) o pai natal é prolixo em perdigotos que podem contaminar a farfalhosa barba. Mas as crianças já se habituaram ao açaime das circunstâncias que oblitera metade dos rostos. Não será traumático.
As renas serão substituídas por uns pássaros de laboratório. Os cientistas aproveitaram os fundos generosos libertados para as vacinas e, em derivações exploratórias, criaram um pássaro imune à peste e que será a nova montada do pai natal. Traz de origem anticorpos que bastem para a variedade climática que é a bolsa da heterogeneidade do mundo. As crianças devem estar avisadas: os passarões que transportam o pai natal são feias criaturas. Os cientistas nunca foram propensos ao belo (que disso tratam os filósofos).
As prendas serão submetidas a imersão numa intensa calda antissética antes de embarcarem até ao destino. Não estranhem as crianças que os embrulhos tragam consigo o cheiro a hospital.
Os entrepostos locais onde são descentralizadas as prendas estão quase a abarrotar. É que a peste mostrou que é amiga do ambiente, tal a redução dos danos ambientais que foi consanguínea à quarentena. Desta vez é de vez: os homens e as mulheres estão convencidos que não podem continuar a fazer mal ao ecossistema. Os pais natais locais farão apenas as viagens necessárias entre os entrepostos locais e os lares nas imediações. Já não haverá uma corrida desenfreada desde a Lapónia em direção às quatro partidas do mundo.
Em harmonia com o princípio geral de modéstia que é o sinal dos tempos tumultuosos, os petizes terão de se contentar com presentes comedidos. A moderação é uma virtude que a peste ensinou, mesmo contra a vontade daquela, muita, gente habituada ao consumo desaforido. Há pestes que veem por bem – este é o lema, nos diversos idiomas, que os pais natais farão inscrever nos trenós (em vez dos logotipos de marcas que são o selo do hediondo capitalismo).
Os panetones e os bolos reis (e doces semelhantes) terão o açúcar cortado pela metade. As ceias de natal serão inspecionadas com recurso a algoritmos e escrutinadas centralmente, para evitar iguarias que possam prejudicar a saúde dos convivas. Ninguém quer trabalhos forçados com a saúde por causa da gula natalícia.
Afinal, a peste foi benemérita. O natal é a época certa para avivar as memórias. Se não é com a peste que reaprendemos a ser, nem o natal reinventado tem significado. Ao menos uma vez. Para que o próximo natal possa ser natal. Assim desenhado pelo esquadrão de Zizek.
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