28.12.20

De que lado é a margem que conta? (short stories #289)

The Stranglers, “Walk on By” (live on Top of the Tops), in https://www.youtube.com/watch?v=ub4rKDkL53s

    “Desde que me herdei nómada, só sinto a embriaguez contínua do êxtase. Vou com o aroma das marés. Continuo. E, contínuo, embarco numa nau desenhada com os olhos, à espera de saber dos lampejos de luz que os vários lugares vão deixar emoldurados.” Às tantas, encontraram-se numa margem. Conseguiam ver a outra margem, o estuário não era largo. Não souberam dizer que lado da margem era aquele em que estavam. Podia ser o esquerdo, ou o direito. Não sabiam o que ordenavam as convenções: afere-se a margem no sentido descendente do rio, ou ao contrário? (Ou é à vontade do freguês?) Porventura, uma dúvida irrisória. As margens têm o seu paradeiro, estão inventariadas na geografia que ocupam. Não temos de lhes embeber significados. Ao seu lado, ela perguntou: “estamos no lado certo da margem?” Inaugurou uma pausa. Até no pensamento, como se tivesse sido metido numa temporária hibernação. Não emudeceu o silêncio – e ela percebeu que ele não tinha ignorado a demanda. Esteve para responder: “como hei de saber se não sei, em véspera dessa resposta, se estamos na margem direita ou na margem esquerda?” Peou a resposta-pergunta. Éramos todos involuntários moradores de um lugar, ou dos vários lugares que o acaso, ou o que julgamos ser a vontade, nos destinou. Os lugares preferiam a invisibilidade da ausência. Não possuíam o sortilégio que as pessoas lhes emprestam, como se estivessem a fazer um favor ao lugar homenageado, escondendo que apenas prestam tributo a si mesmas. Emparedado o silêncio, respondeu: “Estamos na margem direita. Direita, como sinónimo de certa. É isso que interessa. Como sei? Esta é a margem que foi procurada pelos nossos corpos.” Regressou o silêncio, enquanto contemplavam o rio no seu caudal abundante. Fosse como fosse, o rio era o mesmo. Fosse qual fosse a margem escolhida.

 

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