21.12.20

No lugar do pendura (short stories #287)

Ólafur Arnalds, “Only the Winds”, in https://www.youtube.com/watch?v=9eWewdTkghM

          Não era dos nervos desnatados, ou sequer simulação de desmedo: dizia: ao teu lado vou de olhos fechados no lugar do pendura. Não me lembrava de o ter dito antes. Mas o antes, que importava? Dou por certo que me podias vendar e sentar-me no lugar do pendura. Juro que não perguntava que destino tomaríamos. Não seria o coração um lugar apressado pelo temor de não ter o rumo como achado nem o leme entre as mãos. Diria: estou em mãos seguras, as tuas mãos. Juro que não faria perguntas. Nem se tratava de obediência; era confiança. O caminho, serias tu a escolher. Antes disso, o destino, também incumbência tua. E eu, passageiro tomado pelo simpósio da surpresa, os olhos vendados como se fosse preciso uma prova de confiança. Mas não era. Sentar-me ia no lugar do pendura com ou sem venda, com a mesma confiança. Talvez não se pudesse dizer isto – por exemplo – dos regentes que foram habilitados para arrastar, erraticamente, esta nau condenada ao sacrifício dos sebastianismos. Mas nós não precisamos de sebastianismos. Não procuramos a redenção fora de nós. Somos os titulares de uma moderada dose de autoconfiança. Por isso é que não hesitaria em sentar-me no lugar do pendura contigo tomando os comandos do veículo. Neste caso, nunca se poderia falar no lugar do pendura como o “lugar do morto”. Entregue às tuas mãos, saber-me-ia vindicado no mais puro santuário que consagra a vida. Dir-te-ia: quando chegarmos, que mo anuncies com um doce murmúrio ao ouvido; e quero que sejas tu a libertar o olhar da venda que o reservava para o segredo. Dir-te-ia ao inaugurarmos a demanda, que depois permaneceria em silêncio à espera que a espera se consumasse em revelação. Sem sobressalto, com todo o meu eu depositado nas tuas mãos.

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