1
Eram os gatos que ronronavam mais alto. No esconderijo da noite, precatados contra a insolvência das almas, ronronavam no conforto das suas improvisadas camas. Não se sabia como faziam – diziam, atónitos, os cientistas sem resposta para a origem do ronronar. Na minúcia dos segredos, não constava que houvesse espiões escondidos nas entrelinhas da ciência.
2
Se o vento falasse mais alto, talvez houvesse manhãs munidas contra os estilhaços. As pessoas sairiam de seus fardamentos, preparadas para as vozes desarmadilhadas. A mudez seria encomendada aos atributos do esquecimento. As vozes melífluas aromatizariam todos os olhares, sem exceção. Aprender-se-ia o deslimite dos lugares, como eles são meros pretextos para a existência. Pois a existência não se deixa sitiar pela exiguidade de um lugar.
3
Havia aquelas bonecas encastradas umas nas outras. Rimavam com a invernia que se adiantava à primavera. Delas se dizia que eram um paroxismo: viúvas umas das outras, desprendendo-se de uma camada de viuvez para esperarem pelo próximo mantimento de viuvez. Neste palimpsesto de viuvezes, as bonecas orquestravam um sibilino disfarce nos vestidos de cores bruxuleantes. Nem que fosse para desenjoar da alvura que caiava a paisagem.
4
O ator fugia do labirinto. Tinham-lhe dito que dentro do labirinto habitavam vultos que não se intimidavam. Vultos que comiam a memória por dentro, deixando desabitados de sangue os audazes que, ao arrepio dos avisos, se perdiam no labirinto. O ator tinha medo das memórias. Mas tinha mais medo de perder a memória. Em vez do labirinto, foi ao encontro do mar. À espera da maresia propedêutica. À espera de um sinal. Só não sabia para que servia o sinal.
5
Era um entardecer como outro qualquer. Quando o corpo acusa o cansaço por ter visto o sono colonizado por uma floresta de pesadelos. Ao encontro da janela sobranceira à alameda, tomava nota da estranha calma que se apoderou da alameda. Não era habitual, a meio da semana e ao entardecer, que a alameda estivesse povoada por um punhado de gente. Talvez as pessoas andassem nas compras de natal e na alameda não havia comércio. Devia ser essa a explicação. Que mal havia se se enganasse a si mesmo?
6
Nos telhados, os gatos passeavam ora a preguiça, estendendo os corpos sob o sol moderado do primeiro dia de inverno, ora a disputa do território. Não ronronavam quando terçavam os corpos uns contra os outros. O som da guerra sempre foi sanguíneo.
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