22.12.20

As petingas do Sr. Luís

Madness, “Our House”, in https://www.youtube.com/watch?v=rXuvdeEC5y8

O Sr. Luís era o cowboy da Famel Zundapp. Quando dizíamos que era cowboy não exagerávamos. O homem parava junto de nós, ainda adolescentes que matavam o tempo pós-jantar em conversetas próprias de adolescentes, e fazia pose em cima da motoreta. Frequentemente ostentava as suas botas de vaqueiro, sempre impecavelmente engraxadas. A embocadura das calças ficava enfiada dentro das botas, para lhes acentuar a nobreza.

Na altura, não percebíamos por que o Sr. Luís gostava de conviver connosco. (Agora, que já não andamos longe da idade que o Sr. Luís tinha na altura, a lucidez abotoou-se ao entendimento.) Uma coisa era certa: o Sr. Luís nunca desmontava da sua garbosa Famel Zundapp. Nunca. Sacava do descanso da motoreta, mas guardava para si um zeloso lugar em cima dela, como se temesse que algum de nós tivesse o topete de montar na sua donzela. (Sem segundos sentidos.) Passava grande parte do tempo a ouvir. Nós é que éramos os faladores, naquele grasnar prolixo que é a autenticidade da adolescência coada pela estultícia. Limitava-se a dizer umas coisas de circunstância. Nada de contundente. Não tinha a pose do “mais velho” que se aproximava de um grupo de galfarros apenas para exibir a sua madurez e, colado a ela, multiplicar conselhos que a idade cauciona como sábios. 

(Como acontece àqueles que, possivelmente condenados à irrelevância entre pares, transbordam a sua irrelevante personalidade em cima de uns jovens que podem aprender alguma coisas com eles, como se os jovens em apreço não tivessem as suas próprias fontes de conhecimento.)

Havia um assunto que era mais interessante para o Sr. Luís: era quando falávamos das miúdas. Ele conhecia-as pelo nome, mesmo que não soubesse fazer a correspondência entre nomes e rostos (e o resto, que vinha com alguma abundância descritiva). Na nossa inocência ainda não despojada, não percebíamos que o Sr. Luís gostava da nossa companhia por evocar a idade que ele tivera quando nós a tínhamos então. Talvez fosse um avivar de memórias, o resgatar de alguma vida hipotecada na monotonia. Das poucas vezes que o Sr. Luís interrompeu o silêncio foi para dedicar palavras nada elogiosas à “sua” mulher – “uma cavalgadura”, confessou, melancólico, de uma vez em que o assunto era o sexo oposto. 

O Sr. Luís entrou para o nosso património de memórias quando, um certo dia, fazia um silêncio inesperado, quis que perguntássemos qual era a sua iguaria predileta. Como fez questão que o interrogássemos sobre o assunto, um de nós engatilhou a pergunta: “Diga lá, Sr. Luís, qual é o seu prato favorito?” E o Sr. Luís, com um brilho inesperado nos olhos, quebrando a habitual impassibilidade, revelou com um prazer incomensurável: “pastelinhos de petinga. Oh! rapazes, vocês não imaginam como é bom! Não sei de nada tão bom como uns pastelinhos de petinga.”

Já não recordo se fomos nós que desertámos do lugar, ou se foi o Sr. Luís que se cansou da nossa companhia. (Embora me incline para a primeira hipótese.) Mas o Sr. Luís deixou de ser conhecido como o cowboy da Famel Zundapp e passou a ser carinhosamente alcunhado com o Sr. Luís das petingas.

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