Amanhã a União Europeia passa a ser constituída por vinte e cinco países. Oito países de leste e dois mediterrânicos aderem à União, num acto repleto de simbolismo histórico. Ignorar Chipre e de Malta, os dois pequenos países mediterrânicos, para me concentrar na essência geográfica deste alargamento – um alargamento a leste.
Trata-se de um encontro com a história, o ponto de chegada de uma reconciliação europeia que começou com a queda do muro de Berlim em 1989. Este alargamento representa o culminar de um acerto de contas histórico, um acto cheio de simbolismo ideológico. Testemunha a derrota da segunda vaga totalitarista que infectou a Europa no século XX. Depois dos regimes aparentados com o fascismo, vergados no final da segunda guerra mundial, a queda do muro de Berlim e a posterior desagregação dos regimes ditatoriais nos países da cortina de ferro deram o golpe de misericórdia nos totalitarismos comunistas que substituíram os fascismos vencidos em 1945.
Este é o alargamento mais ambicioso que a União Europeia alguma vez conheceu. Nos anteriores alargamentos nunca tinham entrado, de cada vez, mais do que três países. Agora são dez, de uma assentada, que se juntam aos actuais quinze. A União sofre uma engorda assinalável.
O mais significativo, porém, não é este aspecto quantitativo. Mais importante é olhar para o simbolismo do processo de alargamento. Reconhecer que a União Europeia se aproxima, a passos largos, da realidade geográfica que lhe dá nome. Cada vez mais a União Europeia se assemelha a uma grande casa europeia que congrega os países europeus. Num esforço de pacificação a que hoje não se dá muito valor, porque a última grande guerra já terminou há mais de meio século.
As gerações actuais não têm perdido o fio à meada do belicismo. Trata-se, contudo, de assomos episódicos de violência, controlados ao fim de algum tempo. Uma guerra em larga escala, como as duas guerras da primeira metade do século XX, apenas faz parte dos manuais de história, preenche o imaginário através de relatos romanceados em filmes e livros. Este fantasma está em hibernação, o que contribui para não se dar valor à paz reinante no continente europeu.
E, no entanto, essa paz é o produto da vontade de um conjunto de líderes no sentido da construção de uma casa europeia comum. Onde todos estão irmanados numa causa comum, onde as questiúnculas que no passado culminariam com facilidade numa guerra são agora resolvidas num clima de franca cooperação.
Este é o maior bem legado pela construção de uma Europa unida. Por isso estranho que haja alguns comentadores cépticos pelas possíveis consequências nefastas do alargamento para Portugal. É uma visão paroquial, demasiado curta para a compreensão do fenómeno do alargamento que desponta. Continuam presos ao seu umbigo, fiéis ao velho "orgulhosamente sós".
Quando Portugal aderiu à União Europeia, os então dez Estados membros também aceitaram fazer sacrifícios para que pudéssemos receber os generosos fundos europeus, uma ajuda preciosa para o desenvolvimento do país. Porque não adoptar a mesma postura, agora que outros países, quase todos mais pobres do que nós (Eslovénia e Chipre são as excepções), se juntam à casa comum europeia? Há solidariedade genuína quando apenas aceitamos ser auxiliados, mas depois nos recusamos a ajudar quando outros mais carenciados do que nós dependem dessa ajuda?
É indispensável avaliar o impacto global do alargamento, reconhecer a feição política que é uma caução histórica, o reencontro da Europa com a história depois de anos de artificiais espartilhos. Este exercício é mais importante do que os comezinhos cálculos económicos do deve e haver para os interesses individuais do país.
30.4.04
29.4.04
Devemos censurar o “dumping social”?
Muitos arautos da “consciência social” peroram sobre a indignidade do “dumping social” nos países em vias de desenvolvimento (PVD). Quando um PVD exporta determinado produto com grande competitividade, e quando esta vantagem assenta no aproveitamento de trabalho infantil ou no espezinhamento de garantias fundamentais dos trabalhadores, tal situação enquadra-se no que se convencionou chamar “dumping social”.
Estes países fazem tábua rasa de certas garantias do ser humano que são o património genético da civilização ocidental. Só porque passam por cima dessas garantias é que estão em condições de beneficiar de uma competitividade acrescida no mercado internacional. Logo, são acusados de fazer concorrência desleal com os países mais avançados, onde aquelas garantias sociais são respeitadas. Os PVD são culpados de resvalar para o “dumping social”, aproveitam-se de uma batota indigna que os favorece no comércio internacional.
Para estes fautores de uma ética mundial unidimensional, o problema está na negligência de um catálogo mínimo de direitos que ultrapassa a esfera do trabalhador e repousa na pessoa humana. Acham que é impensável que nos alvores do século XXI certos países se possam aproveitar de trabalho infantil. Consideram indignas as condições de trabalho a que os trabalhadores destes países se expõem. Fazendo parte das conquistas inalienáveis dos trabalhadores, representando um capital inquebrantável dos padrões civilizacionais, tais garantias deviam-se estender a todo o mundo. Seria um sinal inequívoco de civilidade, um sinal bem claro de um mundo mais justo para com o ser humano enquanto agente produtivo.
Até hoje estou para perceber se estes arrufos contra o “dumping social” são genuínos. Gostava de saber se as pessoas que se agarram a um putativo dever de consciência para denunciar tais situações o fazem de forma desinteressada, ou se são motivadas por outros interesses que se escondem neste pretexto. No primeiro caso, temos aqueles líricos que acreditam piamente que a justiça social (no que quer que isso signifique) se pode estender num manto uniforme aos quatro cantos do planeta. Independentemente de diferentes hábitos, de diferentes condições estruturais, sabendo que ambas as realidades se movem contra a possibilidade de se ter nos países asiáticos e africanos a mesma bitola de justiça social que é empregue no mundo ocidental.
Num mundo tão diverso, com uma acentuada diferença de costumes sociais, é intrigante como se pode ter a ambição de estender padrões uniformes a todo o mundo. Como se a bitola pela qual nos aferimos no ocidente fosse necessariamente aplicada noutras paragens, mesmo quando a idiossincrasia destes locais é suficiente para negar a aplicação desses padrões. É a tendência etnocêntrica que domina o mundo contemporâneo, um dos seus grandes males.
Para além desta cegueira etnocêntrica, muitos dos defensores da eticidade mundial agarram-se a interesses próprios para erguer o dedo acusador contra o “dumping social”. Porque, afinal, é na base do “dumping social” que os PVD beneficiam de uma posição favorável a expensas dos países mais ricos. Falta saber até que ponto são genuínas as lamúrias de tantos quantos protestam contra o “dumping social”. Será porque manifestam uma honesta preocupação pelo desrespeito de garantias essenciais do ser humano? Ou apenas porque o “dumping social” penaliza a economia nacional? Aqui vem à superfície uma inconfessada hipocrisia que atenta contra a ambição de quem patrocina uma consciência social uniforme.
Estes países fazem tábua rasa de certas garantias do ser humano que são o património genético da civilização ocidental. Só porque passam por cima dessas garantias é que estão em condições de beneficiar de uma competitividade acrescida no mercado internacional. Logo, são acusados de fazer concorrência desleal com os países mais avançados, onde aquelas garantias sociais são respeitadas. Os PVD são culpados de resvalar para o “dumping social”, aproveitam-se de uma batota indigna que os favorece no comércio internacional.
Para estes fautores de uma ética mundial unidimensional, o problema está na negligência de um catálogo mínimo de direitos que ultrapassa a esfera do trabalhador e repousa na pessoa humana. Acham que é impensável que nos alvores do século XXI certos países se possam aproveitar de trabalho infantil. Consideram indignas as condições de trabalho a que os trabalhadores destes países se expõem. Fazendo parte das conquistas inalienáveis dos trabalhadores, representando um capital inquebrantável dos padrões civilizacionais, tais garantias deviam-se estender a todo o mundo. Seria um sinal inequívoco de civilidade, um sinal bem claro de um mundo mais justo para com o ser humano enquanto agente produtivo.
Até hoje estou para perceber se estes arrufos contra o “dumping social” são genuínos. Gostava de saber se as pessoas que se agarram a um putativo dever de consciência para denunciar tais situações o fazem de forma desinteressada, ou se são motivadas por outros interesses que se escondem neste pretexto. No primeiro caso, temos aqueles líricos que acreditam piamente que a justiça social (no que quer que isso signifique) se pode estender num manto uniforme aos quatro cantos do planeta. Independentemente de diferentes hábitos, de diferentes condições estruturais, sabendo que ambas as realidades se movem contra a possibilidade de se ter nos países asiáticos e africanos a mesma bitola de justiça social que é empregue no mundo ocidental.
Num mundo tão diverso, com uma acentuada diferença de costumes sociais, é intrigante como se pode ter a ambição de estender padrões uniformes a todo o mundo. Como se a bitola pela qual nos aferimos no ocidente fosse necessariamente aplicada noutras paragens, mesmo quando a idiossincrasia destes locais é suficiente para negar a aplicação desses padrões. É a tendência etnocêntrica que domina o mundo contemporâneo, um dos seus grandes males.
Para além desta cegueira etnocêntrica, muitos dos defensores da eticidade mundial agarram-se a interesses próprios para erguer o dedo acusador contra o “dumping social”. Porque, afinal, é na base do “dumping social” que os PVD beneficiam de uma posição favorável a expensas dos países mais ricos. Falta saber até que ponto são genuínas as lamúrias de tantos quantos protestam contra o “dumping social”. Será porque manifestam uma honesta preocupação pelo desrespeito de garantias essenciais do ser humano? Ou apenas porque o “dumping social” penaliza a economia nacional? Aqui vem à superfície uma inconfessada hipocrisia que atenta contra a ambição de quem patrocina uma consciência social uniforme.
28.4.04
A “incultura” nacional
Há dias li um interessante comentário de Maria Manuela Leitão Marques no blog Causa Nossa. Ao ler este texto fui assaltado por diversas experiências negativas que tenho acumulado ao longo de onze anos de docência universitária. Eis o texto:
“Muito mais que não saberem ciências, literatura, história ou geografia, onde os conhecimentos dos jogadores do concurso «Um contra todos» da RTP1, previamente seleccionados e em geral licenciados, são até, muitas vezes, acima do esperado, é impressionante a falta de cultura de cidadania. Com medo, raramente alguém ousa passar do nível mais fácil e ouvem-se as respostas mais incríveis, mesmo sobre questões que ocupam os jornais ou são debatidas em programas de televisão. Esta semana, uma concorrente interrogada sobre a quem se referia Humberto Delgado quando disse “Obviamente demito-o”, entre Oliveira Salazar, Américo Thomaz ou Marcelo Caetano, escolheu este último. E quando o animador do concurso, algo intrigado, lhe perguntou quem tinha sido Humberto Delgado, respondeu com alguma hesitação: «Presidente da República». É caso para dizer que, embora tarde, fez-se justiça e que os resultados viciados das eleições presidenciais de 1958 foram corrigidos!”
Foi esta enorme confusão com a história do Estado Novo que me trouxe à memória um tristemente delicioso episódio passado num exame oral. Notei que a aluna estava nervosa. No meio do desnorte em que a aluna caiu passados alguns minutos, pedi-lhe para situar a posição de Portugal perante os esforços internacionais da ajuda aos países mais pobres. Quando entrou no derradeiro período, que corresponde à normalização da posição de Portugal na sequência das primeiras eleições legislativas após a revolução de Abril de 1974, a aluna descarrilou.
Para situar o leitor no contexto: após o 25 de Abril de 1974, o país atravessou uma fase conturbada, com o lamentável pacto MFA-povo, o protagonismo de militares com escassa cultura democrática, o tenebroso período do PREC. A posição de Portugal no contexto da cooperação internacional ia ao sabor das ondas aventureiras do momento. Queríamos ser amigos dos países do terceiro mundo, simpatizava-se com o modelo de auto-gestão da Jugoslávia. Tudo para encapotar uma discreta aproximação a Moscovo. Só com as eleições de 1976, em que o PS de Soares saiu vitorioso, o país regressou à normalização. Reafirmou-se a aliança com a NATO e o país voltou a afirmar a sua apetência para alimentar o desenvolvimento de países mais pobres.
Como a aluna andava perdida à procura da resposta, decidi dar umas pistas para lhe avivar a memória. Foi pior a emenda do que o soneto. Tentei ajudá-la perguntando-lhe quem tinha vencido as primeiras eleições depois da ditadura ter sido derrubada.
- Marcello Caetano, respondeu.
Atónito, disparei logo de seguida outra pergunta, só para saciar a minha curiosidade.
- Diga-me quem era o primeiro-ministro quando a ditadura foi derrubada.
- Salazar.
Sem palavras, olhei incrédulo para o colega que fazia comigo o júri daquele exame oral. Fiquei sem reacção, senti-me de mãos e pés atados pelas respostas lacónicas, mas com uma enorme convicção, dadas pela aluna. O meu colega tentou compor as coisas:
- Paulo, ela não tem culpa. Quem a deixou chegar até aqui é que tem culpa.
Anui. A culpa é mesmo de quem a deixou chegar àquele patamar da sua vida de estudante na posse de tais conhecimentos, empunhando uma impreparação tão acentuada. Este foi apenas um entre inúmeros casos que davam para preencher páginas e páginas de um livro trágico-cómico. Nem imaginam a quantidade de alunos que, numa disciplina do 1º ano da universidade, acham que o Canadá e os Estados Unidos entraram para a União Europeia num dos sucessivos alargamentos que a União já conheceu. Malfadada geografia: como se aqueles países estivessem situados na Europa!
Não atribuo a culpa a esta geração. Não sou daqueles que pensa que esta é a “geração rasca”. Não. Esta é a “geração à rasca”, colocada nesta situação precária por sucessivas levas de pedagogos de meia tigela que andaram entretidos a inventar reformas curriculares que fizeram desta geração a cobaia do sistema educativo. Rasca é quem colocou esta geração à rasca.
“Muito mais que não saberem ciências, literatura, história ou geografia, onde os conhecimentos dos jogadores do concurso «Um contra todos» da RTP1, previamente seleccionados e em geral licenciados, são até, muitas vezes, acima do esperado, é impressionante a falta de cultura de cidadania. Com medo, raramente alguém ousa passar do nível mais fácil e ouvem-se as respostas mais incríveis, mesmo sobre questões que ocupam os jornais ou são debatidas em programas de televisão. Esta semana, uma concorrente interrogada sobre a quem se referia Humberto Delgado quando disse “Obviamente demito-o”, entre Oliveira Salazar, Américo Thomaz ou Marcelo Caetano, escolheu este último. E quando o animador do concurso, algo intrigado, lhe perguntou quem tinha sido Humberto Delgado, respondeu com alguma hesitação: «Presidente da República». É caso para dizer que, embora tarde, fez-se justiça e que os resultados viciados das eleições presidenciais de 1958 foram corrigidos!”
Foi esta enorme confusão com a história do Estado Novo que me trouxe à memória um tristemente delicioso episódio passado num exame oral. Notei que a aluna estava nervosa. No meio do desnorte em que a aluna caiu passados alguns minutos, pedi-lhe para situar a posição de Portugal perante os esforços internacionais da ajuda aos países mais pobres. Quando entrou no derradeiro período, que corresponde à normalização da posição de Portugal na sequência das primeiras eleições legislativas após a revolução de Abril de 1974, a aluna descarrilou.
Para situar o leitor no contexto: após o 25 de Abril de 1974, o país atravessou uma fase conturbada, com o lamentável pacto MFA-povo, o protagonismo de militares com escassa cultura democrática, o tenebroso período do PREC. A posição de Portugal no contexto da cooperação internacional ia ao sabor das ondas aventureiras do momento. Queríamos ser amigos dos países do terceiro mundo, simpatizava-se com o modelo de auto-gestão da Jugoslávia. Tudo para encapotar uma discreta aproximação a Moscovo. Só com as eleições de 1976, em que o PS de Soares saiu vitorioso, o país regressou à normalização. Reafirmou-se a aliança com a NATO e o país voltou a afirmar a sua apetência para alimentar o desenvolvimento de países mais pobres.
Como a aluna andava perdida à procura da resposta, decidi dar umas pistas para lhe avivar a memória. Foi pior a emenda do que o soneto. Tentei ajudá-la perguntando-lhe quem tinha vencido as primeiras eleições depois da ditadura ter sido derrubada.
- Marcello Caetano, respondeu.
Atónito, disparei logo de seguida outra pergunta, só para saciar a minha curiosidade.
- Diga-me quem era o primeiro-ministro quando a ditadura foi derrubada.
- Salazar.
Sem palavras, olhei incrédulo para o colega que fazia comigo o júri daquele exame oral. Fiquei sem reacção, senti-me de mãos e pés atados pelas respostas lacónicas, mas com uma enorme convicção, dadas pela aluna. O meu colega tentou compor as coisas:
- Paulo, ela não tem culpa. Quem a deixou chegar até aqui é que tem culpa.
Anui. A culpa é mesmo de quem a deixou chegar àquele patamar da sua vida de estudante na posse de tais conhecimentos, empunhando uma impreparação tão acentuada. Este foi apenas um entre inúmeros casos que davam para preencher páginas e páginas de um livro trágico-cómico. Nem imaginam a quantidade de alunos que, numa disciplina do 1º ano da universidade, acham que o Canadá e os Estados Unidos entraram para a União Europeia num dos sucessivos alargamentos que a União já conheceu. Malfadada geografia: como se aqueles países estivessem situados na Europa!
Não atribuo a culpa a esta geração. Não sou daqueles que pensa que esta é a “geração rasca”. Não. Esta é a “geração à rasca”, colocada nesta situação precária por sucessivas levas de pedagogos de meia tigela que andaram entretidos a inventar reformas curriculares que fizeram desta geração a cobaia do sistema educativo. Rasca é quem colocou esta geração à rasca.
27.4.04
Que lógica nas condecorações do 25 de Abril?
Ontem decorreu a liturgia oficial do regime, num acto cheio de solenidade. Mais uma dúzia de patriotas e de servidores da causa da liberdade receberam, das mãos do senhor presidente da república, insígnias a demonstrar a gratidão da nação pelos serviços prestados. Este ano, mais do que em anos anteriores, a polémica estalou o verniz. Uma das agraciadas foi a Dra. Isabel do Carmo, conhecida não pela medicina que hoje pratica mas pelo terror das bombas que ela e o seu companheiro Carlos Antunes colocaram em nome de uma coisa chamada Partido Revolucionário Português (PRP).
De acordo com o enésimo discurso intragável de Sampaio, estas condecorações convocam à reconciliação do país. Em nome dos trinta anos de liberdade, anteontem festejados. Reconciliação, adivinho, disse-o ao pensar especialmente no caso das insígnias oferecidas a Isabel do Carmo. Como se fosse possível que as vítimas das bombas espalhadas pelo duo do PRP passassem uma esponja no passado e, num acto de magnanimidade, perdoassem quem estupidamente cometeu estes actos criminosos.
Sampaio tem um grave problema de perspectiva. Ao querer aparecer como o grande pacificador, o homem de “consensos”, o semeador da “serenidade”, nem se dá conta que faz tábua rasa dos mais elementares direitos de quem foi afectado pelo terrorismo do passado. É difícil aceitar que em nome de uma qualquer forçada reconciliação, “só porque” o 25 de Abril fez trinta anos, quem sofreu na carne as agruras do terrorismo do PREC seja agora forçado a perdoar. Apenas porque sua eminência, o presidente da república, sentenciou a necessidade do país se reconciliar. Mas reconciliar com o quê, afinal? Será que vivemos espartilhados pelo peso insustentável do passado? Somos uma sociedade dividida e em permanente conflito, para se apelar a esta reconciliação?
A exibição folclórica de ontem vem provar várias coisas ao mesmo tempo. Vem provar, em primeiro lugar, que Sampaio é um péssimo presidente. Quando certas feridas estão quase a sarar, encasuladas numa cicatriz que quase fecha, eis que o presidente da república se mexe e provoca ondas de choque que abrem novamente a ferida. Com a sede de protagonismo que tem, Sampaio não para de disparar no próprio pé.
Segundo, espera-se que Sampaio dê a mão à palmatória e prometa que, no próximo ano, será um destacado membro do Exército de Libertação de Portugal (ELP) a merecer a honra que este ano coube a Isabel do Carmo. Para não resvalar para um viés esquerdista (que acaba sempre por vir à superfície), era bom que Sampaio, afinal o grande pacificador, não se esquecesse que também houve bombistas de extrema-direita que merecem a mesma honraria que coube a Isabel do Carmo. De outro modo, está ferido um sagrado princípio de igualdade.
Terceiro, há algo que me intriga: para além das bombas que plantou aqui e ali, quais foram os serviços prestados à liberdade por Isabel do Carmo? Seriam as bombas, que atentaram contra bens e pessoas, assim ferindo de morte…a liberdade individual dos afectados? Seria o modelo de sociedade que a senhora preconizava, através do PRP? Insondável paradoxo, que fica a gravitar em torno de Sampaio.
Quarto, o episódio é ilustrativo do calibre destas condecorações. A república está num nível muito baixo, com a distribuição de comendas a fazer-se de acordo com critérios duvidosos. O nivelamento está pelas ruas da amargura, o que, bem vistas as coisas, me enche de contentamento. Quanto mais patéticas forem estas manifestações que pretendem congregar a “unidade da nação”, mais a sua inutilidade se revela com clareza.
De acordo com o enésimo discurso intragável de Sampaio, estas condecorações convocam à reconciliação do país. Em nome dos trinta anos de liberdade, anteontem festejados. Reconciliação, adivinho, disse-o ao pensar especialmente no caso das insígnias oferecidas a Isabel do Carmo. Como se fosse possível que as vítimas das bombas espalhadas pelo duo do PRP passassem uma esponja no passado e, num acto de magnanimidade, perdoassem quem estupidamente cometeu estes actos criminosos.
Sampaio tem um grave problema de perspectiva. Ao querer aparecer como o grande pacificador, o homem de “consensos”, o semeador da “serenidade”, nem se dá conta que faz tábua rasa dos mais elementares direitos de quem foi afectado pelo terrorismo do passado. É difícil aceitar que em nome de uma qualquer forçada reconciliação, “só porque” o 25 de Abril fez trinta anos, quem sofreu na carne as agruras do terrorismo do PREC seja agora forçado a perdoar. Apenas porque sua eminência, o presidente da república, sentenciou a necessidade do país se reconciliar. Mas reconciliar com o quê, afinal? Será que vivemos espartilhados pelo peso insustentável do passado? Somos uma sociedade dividida e em permanente conflito, para se apelar a esta reconciliação?
A exibição folclórica de ontem vem provar várias coisas ao mesmo tempo. Vem provar, em primeiro lugar, que Sampaio é um péssimo presidente. Quando certas feridas estão quase a sarar, encasuladas numa cicatriz que quase fecha, eis que o presidente da república se mexe e provoca ondas de choque que abrem novamente a ferida. Com a sede de protagonismo que tem, Sampaio não para de disparar no próprio pé.
Segundo, espera-se que Sampaio dê a mão à palmatória e prometa que, no próximo ano, será um destacado membro do Exército de Libertação de Portugal (ELP) a merecer a honra que este ano coube a Isabel do Carmo. Para não resvalar para um viés esquerdista (que acaba sempre por vir à superfície), era bom que Sampaio, afinal o grande pacificador, não se esquecesse que também houve bombistas de extrema-direita que merecem a mesma honraria que coube a Isabel do Carmo. De outro modo, está ferido um sagrado princípio de igualdade.
Terceiro, há algo que me intriga: para além das bombas que plantou aqui e ali, quais foram os serviços prestados à liberdade por Isabel do Carmo? Seriam as bombas, que atentaram contra bens e pessoas, assim ferindo de morte…a liberdade individual dos afectados? Seria o modelo de sociedade que a senhora preconizava, através do PRP? Insondável paradoxo, que fica a gravitar em torno de Sampaio.
Quarto, o episódio é ilustrativo do calibre destas condecorações. A república está num nível muito baixo, com a distribuição de comendas a fazer-se de acordo com critérios duvidosos. O nivelamento está pelas ruas da amargura, o que, bem vistas as coisas, me enche de contentamento. Quanto mais patéticas forem estas manifestações que pretendem congregar a “unidade da nação”, mais a sua inutilidade se revela com clareza.
26.4.04
Evolução ou revolução?
Muita tinta correu. Uns defendiam a pureza do 25 de Abril na sua essência revolucionária, como ruptura com a funesta ditadura. Outros tentaram descarregar a carga ideológica que sempre os punha à margem dos festejos folclóricos da efeméride. A revolução embateu de frente contra a evolução e a faísca foi inevitável. Já andava para escrever acerca do tema há algum tempo. No entanto, quis esperar. Para “comemorar” a posteriori, no dia 26 de Abril.
Há uma gritante miopia quando os “amantes da liberdade” (os sectários que catalogam de “fascistas” os que não festejam a data a seu lado) vêm, do alto da sua sabedoria, dizer que ou se celebra a revolução ou se é um saudosista do 24 de Abril. Porque ninguém fala do 26 de Abril (aqui em sentido figurado, como o 24 de Abril)? Porque ficam estes fervorosos revolucionários presos a uma data, como se o tempo tivesse parado em 25 de Abril de 1974?
A queda da ditadura foi um acontecimento marcante para a vida do país. Como o seria o derrube de qualquer regime totalitário. A revolução de Abril deve ser aplaudida no seu contexto: ter levado ao desaparecimento da ditadura que já vegetava. Mas o tempo continuou. O país não parou. Aliás, o país tinha que se desenvolver, andar para a frente. Prefiro comemorar o 26 de Abril como um testemunho de maioridade cívica dos portugueses. Que, em maioria, souberam rejeitar novos fantasmas ditatoriais e colocar o país nos trilhos de um regime que, com tantos pecadilhos, é menos mau do que a alternativa que certas franjas mais radicais tentavam forjar.
Com esta posição não subscrevo a retórica adoptada pelo governo. Não é essa a “evolução” que recebo de braços abertos. Prefiro festejar a evolução cívica da sociedade portuguesa (mau grado todos os defeitos que ainda se reconhecem à vista desarmada), não tanto enaltecer os dados estatísticos matraqueados pela campanha governamental. Estas estatísticas são uma armadilha. Porque, como dados estatísticos, proporcionam-se a uma manipulação que depende dos critérios da sua escolha. Mas, mais importante, é bom reconhecer que esta “evolução” oficialmente celebrada esconde um panorama global pouco satisfatório.
É verdade, dizem os dados que nos entram olhos dentro, melhorámos em muitos aspectos. Tal foi possível porque partimos de um nível atrasado. É mais fácil ir ao encontro de quem está acima de nós, crescer mais rapidamente do que eles, quando estamos mais atrás. Por outro lado, há que ser exigente e deitar contas à vida, avaliando o desempenho dos governos democráticos. Aceitando o nível reduzido dos padrões de governação, a conclusão é lapidar: muito ficou por fazer. Muitas oportunidades foram desbaratadas. Foi uma evolução que pecou por defeito. Também a evolução celebrada pelo governo é uma fachada.
Esta querela entre evolução e revolução é uma desnecessária batalha semântica que apenas tem o condão de colocar políticos (com o beneplácito da servil comunicação social) a desviar as atenções para o trivial. O essencial passa ao lado das preocupações. Teimar em comemorações bafientas, que esbracejam os fantasmas de uma coisa que já não existe (o “fascismo”), serve apenas para mobilizar clientelas que se encontram ideologicamente órfãs. Como festejar a “evolução” serve apenas para tapar o sol com a peneira. Com se pudéssemos estar contentes com o que nos foi legado pelos sucessivos governos depois do 25 de Abril. Quando muito mais ficou por fazer, festejar o quê?
Há uma gritante miopia quando os “amantes da liberdade” (os sectários que catalogam de “fascistas” os que não festejam a data a seu lado) vêm, do alto da sua sabedoria, dizer que ou se celebra a revolução ou se é um saudosista do 24 de Abril. Porque ninguém fala do 26 de Abril (aqui em sentido figurado, como o 24 de Abril)? Porque ficam estes fervorosos revolucionários presos a uma data, como se o tempo tivesse parado em 25 de Abril de 1974?
A queda da ditadura foi um acontecimento marcante para a vida do país. Como o seria o derrube de qualquer regime totalitário. A revolução de Abril deve ser aplaudida no seu contexto: ter levado ao desaparecimento da ditadura que já vegetava. Mas o tempo continuou. O país não parou. Aliás, o país tinha que se desenvolver, andar para a frente. Prefiro comemorar o 26 de Abril como um testemunho de maioridade cívica dos portugueses. Que, em maioria, souberam rejeitar novos fantasmas ditatoriais e colocar o país nos trilhos de um regime que, com tantos pecadilhos, é menos mau do que a alternativa que certas franjas mais radicais tentavam forjar.
Com esta posição não subscrevo a retórica adoptada pelo governo. Não é essa a “evolução” que recebo de braços abertos. Prefiro festejar a evolução cívica da sociedade portuguesa (mau grado todos os defeitos que ainda se reconhecem à vista desarmada), não tanto enaltecer os dados estatísticos matraqueados pela campanha governamental. Estas estatísticas são uma armadilha. Porque, como dados estatísticos, proporcionam-se a uma manipulação que depende dos critérios da sua escolha. Mas, mais importante, é bom reconhecer que esta “evolução” oficialmente celebrada esconde um panorama global pouco satisfatório.
É verdade, dizem os dados que nos entram olhos dentro, melhorámos em muitos aspectos. Tal foi possível porque partimos de um nível atrasado. É mais fácil ir ao encontro de quem está acima de nós, crescer mais rapidamente do que eles, quando estamos mais atrás. Por outro lado, há que ser exigente e deitar contas à vida, avaliando o desempenho dos governos democráticos. Aceitando o nível reduzido dos padrões de governação, a conclusão é lapidar: muito ficou por fazer. Muitas oportunidades foram desbaratadas. Foi uma evolução que pecou por defeito. Também a evolução celebrada pelo governo é uma fachada.
Esta querela entre evolução e revolução é uma desnecessária batalha semântica que apenas tem o condão de colocar políticos (com o beneplácito da servil comunicação social) a desviar as atenções para o trivial. O essencial passa ao lado das preocupações. Teimar em comemorações bafientas, que esbracejam os fantasmas de uma coisa que já não existe (o “fascismo”), serve apenas para mobilizar clientelas que se encontram ideologicamente órfãs. Como festejar a “evolução” serve apenas para tapar o sol com a peneira. Com se pudéssemos estar contentes com o que nos foi legado pelos sucessivos governos depois do 25 de Abril. Quando muito mais ficou por fazer, festejar o quê?
23.4.04
Divagação sobre os tradutores televisivos para surdos
Sentado à mesa de um restaurante, sobre a minha direita, ao alto, repousa uma televisão. Nos minutos que antecedem o almoço, desvio o olhar para as imagens transmitidas. Era um daqueles programas de entretenimento que os canais nacionais passam antes do noticiário das 13 horas. Daqueles que entretêm sobretudo as velhinhas que olham para os Gouchas, os Figueiras, os Jorges Gabriéis e delfins que vão pululando em busca do estrelato, como os filhinhos (ou os netinhos) que tanto gostariam de ter mas que a natureza, madrasta, não lhes quis ofertar.
Já faltavam pouco minutos para começar o bloco de notícias. No televisor sem som, o apresentador do programa dá as boas vindas a um cómico que vai fazer a sua rábula. Quis agradecer aos donos do restaurante por terem mutilado o som. Por me terem poupado ao chorrilho de disparates deste representante da nova leva de humoristas (pesudo-humoristas) que se acha detentor de um sentido de humor inexcedível. Ou talvez seja o meu sentido de humor que nesse dia estava pelas ruas da amargura. Duvido. Como não estava a beber vinho verde, o azedume pelo humorista de serviço não era fruto da acidez vínica.
O canto inferior direito do ecrã chama-me a atenção. Neste canal, o programa matinal recorre a uma tradutora para surdos. Medida louvável, decerto. E politicamente correcta, porque afinal também há avozinhas surdas que têm o mesmo direito de sonhar com os filhinhos e netinhos projectados no seu imaginário. Depois começou o espectáculo. O som estava em baixo, produzindo o efeito balsâmico de me poupar à asneirada do cómico. Escapei ao mau gosto das piadas de caserna, mas não pude evitar as imagens. Recorrendo abundantemente à mímica, o pseudo-humorista esbracejava, esperneava, fazia caretas que levavam o público à gargalhada quase asfixiante.
Mas não era este desempenho que chamava a minha atenção. Era o esforço da tradutora para surdos. Ela tentava acompanhar o ritmo do cómico. Não sei se inebriada pela comicidade do acto, também saltava na cadeira, os seus gestos eram mais enérgicos, as caretas revelavam uma expressividade que pôs o jovem cómico na penumbra. Deliciei-me com o espectáculo dado pela tradutora. Esse foi o momento alto dos poucos minutos do programa a que assisti.
Imagino o esforço sobre-humano que ela não terá feito. Não bastava a linguagem gestual que tem que ser expressiva para que a mensagem chegue aos destinatários. Naquele caso, para melhor reproduzir a performance do cómico, a tradutora teve que se transfigurar. Deixou de ser uma personagem que passa despercebida a quem já se habituou à sua presença. Como a sua tradução não me é destinada, o canto inferior direito é banido do meu campo visual. Não foi o que se passou naquela altura. Aí a televisão resumia-se ao canto inferior direito.
Depois da excitação do momento, dei comigo a pensar noutras ocasiões em que a tradução por linguagem gestual podia ser utilizada. Por exemplo, em filmes pornográficos. A tarefa dos tradutores para surdos seria paradoxalmente fácil e difícil. Fácil porque os argumentos destes filmes são, por norma, bastante simples. Os diálogos não se alongam e não são elaborados. As reflexões filosóficas não têm aqui o seu campo de eleição. Por outro lado, seria um exercício difícil. Como traduzir sons, gemidos e grunhidos abundantemente emitidos pelos intervenientes?
Lamentavelmente, aqui nada pode ser feito em favor dos surdos. Eles perdem grande parte do sumo dos filmes pornográficos, por impossibilidade de reprodução, em linguagem gestual, dos sons que são a essência destes filmes.
Já faltavam pouco minutos para começar o bloco de notícias. No televisor sem som, o apresentador do programa dá as boas vindas a um cómico que vai fazer a sua rábula. Quis agradecer aos donos do restaurante por terem mutilado o som. Por me terem poupado ao chorrilho de disparates deste representante da nova leva de humoristas (pesudo-humoristas) que se acha detentor de um sentido de humor inexcedível. Ou talvez seja o meu sentido de humor que nesse dia estava pelas ruas da amargura. Duvido. Como não estava a beber vinho verde, o azedume pelo humorista de serviço não era fruto da acidez vínica.
O canto inferior direito do ecrã chama-me a atenção. Neste canal, o programa matinal recorre a uma tradutora para surdos. Medida louvável, decerto. E politicamente correcta, porque afinal também há avozinhas surdas que têm o mesmo direito de sonhar com os filhinhos e netinhos projectados no seu imaginário. Depois começou o espectáculo. O som estava em baixo, produzindo o efeito balsâmico de me poupar à asneirada do cómico. Escapei ao mau gosto das piadas de caserna, mas não pude evitar as imagens. Recorrendo abundantemente à mímica, o pseudo-humorista esbracejava, esperneava, fazia caretas que levavam o público à gargalhada quase asfixiante.
Mas não era este desempenho que chamava a minha atenção. Era o esforço da tradutora para surdos. Ela tentava acompanhar o ritmo do cómico. Não sei se inebriada pela comicidade do acto, também saltava na cadeira, os seus gestos eram mais enérgicos, as caretas revelavam uma expressividade que pôs o jovem cómico na penumbra. Deliciei-me com o espectáculo dado pela tradutora. Esse foi o momento alto dos poucos minutos do programa a que assisti.
Imagino o esforço sobre-humano que ela não terá feito. Não bastava a linguagem gestual que tem que ser expressiva para que a mensagem chegue aos destinatários. Naquele caso, para melhor reproduzir a performance do cómico, a tradutora teve que se transfigurar. Deixou de ser uma personagem que passa despercebida a quem já se habituou à sua presença. Como a sua tradução não me é destinada, o canto inferior direito é banido do meu campo visual. Não foi o que se passou naquela altura. Aí a televisão resumia-se ao canto inferior direito.
Depois da excitação do momento, dei comigo a pensar noutras ocasiões em que a tradução por linguagem gestual podia ser utilizada. Por exemplo, em filmes pornográficos. A tarefa dos tradutores para surdos seria paradoxalmente fácil e difícil. Fácil porque os argumentos destes filmes são, por norma, bastante simples. Os diálogos não se alongam e não são elaborados. As reflexões filosóficas não têm aqui o seu campo de eleição. Por outro lado, seria um exercício difícil. Como traduzir sons, gemidos e grunhidos abundantemente emitidos pelos intervenientes?
Lamentavelmente, aqui nada pode ser feito em favor dos surdos. Eles perdem grande parte do sumo dos filmes pornográficos, por impossibilidade de reprodução, em linguagem gestual, dos sons que são a essência destes filmes.
22.4.04
Poda invertida
Há uma árvore que é minha companheira todos os dias. Apenas por uns segundos, mas já a tenho como familiar da rotina diária. Não me perguntem o nome da árvore. Tenho que confessar que de botânica sei nada. A sua característica particular é que as folhas crescem para baixo. Como se fosse uma trepadeira que em vez de entrelaçar a folhagem e ramos nas paredes de um edifício verte a ramagem em direcção ao chão. Tal como se estivesse a prestar um tributo à terra onde se alicerçam as suas raízes.
Por estes dias de primavera, em que a natureza rejuvenesce, que as flores desabrocham e as folhas nascem viçosas do exílio invernal, notei que as folhas daquela árvore começaram a crescer a um ritmo acelerado. Dia após dia, estavam cada vez mais próximas do solo. Nos últimos dias estava tão guedelhuda que me penteava o cabelo.
Hoje deu-me os bons dias de cara lavada. O barbeiro tinha ido até ela, tal como nós, homens, periodicamente fazemos para nos livrarmos dos excessos capilares que nos desfeiam. Não que o excesso de folhas, na sua corrida vertiginosa para o solo, trouxesse fealdade a esta árvore. Estava apenas mais desgrenhada, como uma mulher selvagem que surge do nada com longos cabelos caoticamente desajeitados após um banho. Daquelas belezas singulares, que trazem um sopro de mistério. Um jardineiro zeloso, ciente de que aquela árvore começava a causar mal-estar aos passeantes, tratou de lhe tirar o excesso de folhas.
A poda foi meticulosa. Ainda à distância vi que a árvore estava diferente. A poda foi feita com uma precisão milimétrica. Um corte perfeito. Parecia que o jardineiro tinha andado com régua e esquadro, a congeminar o corte para emperaltar a árvore como se ela fosse para uma ocasião solene da melhor estirpe. O exercício trouxe aos meus olhos um resultado curioso. Aquela não era uma poda normal. Não uma daquelas podas em que os ramos crescem na vertical, espetando os seus dedos em direcção a um céu inalcançável. Nem uma poda que subtrai as ramagens que crescem para os lados, como um marido descuidado que consulta com mais frequência o frigorífico, e assim cresce para os lados.
Não, a poda da árvore minha companheira era diferente. O corte foi feito de baixo para cima. Foram-lhe retirados os excessos que ameaçavam tocar o solo se nada fosse feito pelo competente jardineiro. A imagem era estranha. O que antes era um conjunto de folhas que desordenadamente crescia em direcção ao solo, como pontas desalinhadas de um cabelo feminino, era agora a harmonia absoluta. Um corte na rasante, uma linha horizontal que traçava um limite inferior à ramagem da árvore. Vista de longe, a árvore parecia agora a aba de um chapéu.
Não pude resistir a uma imagem que me assaltou. Fosse este exercício a decapitação dos excessos capilares que os ares bonançosos trouxeram àquela árvore, e a comparação surge inevitável: maldita primavera, que trouxe a decapitação de certos figurões que enxameiam a política e o futebol, lançando as sementes para a pérfida cumplicidade entre política e futebol, e futebol e política. Também aqui, uma tentativa de poda. Que não se fique pelo intróito e vá longe. Que todas as árvores que têm braços tentaculares sejam extirpadas dos excessos de influência e das artimanhas que falseiam resultados e provocam uma infindável concorrência desleal. Estas árvores estão a mais, necessitam de ser tiradas do bosque.
Coragem e competência são os atributos que se pedem nos jardineiros de serviço.
Por estes dias de primavera, em que a natureza rejuvenesce, que as flores desabrocham e as folhas nascem viçosas do exílio invernal, notei que as folhas daquela árvore começaram a crescer a um ritmo acelerado. Dia após dia, estavam cada vez mais próximas do solo. Nos últimos dias estava tão guedelhuda que me penteava o cabelo.
Hoje deu-me os bons dias de cara lavada. O barbeiro tinha ido até ela, tal como nós, homens, periodicamente fazemos para nos livrarmos dos excessos capilares que nos desfeiam. Não que o excesso de folhas, na sua corrida vertiginosa para o solo, trouxesse fealdade a esta árvore. Estava apenas mais desgrenhada, como uma mulher selvagem que surge do nada com longos cabelos caoticamente desajeitados após um banho. Daquelas belezas singulares, que trazem um sopro de mistério. Um jardineiro zeloso, ciente de que aquela árvore começava a causar mal-estar aos passeantes, tratou de lhe tirar o excesso de folhas.
A poda foi meticulosa. Ainda à distância vi que a árvore estava diferente. A poda foi feita com uma precisão milimétrica. Um corte perfeito. Parecia que o jardineiro tinha andado com régua e esquadro, a congeminar o corte para emperaltar a árvore como se ela fosse para uma ocasião solene da melhor estirpe. O exercício trouxe aos meus olhos um resultado curioso. Aquela não era uma poda normal. Não uma daquelas podas em que os ramos crescem na vertical, espetando os seus dedos em direcção a um céu inalcançável. Nem uma poda que subtrai as ramagens que crescem para os lados, como um marido descuidado que consulta com mais frequência o frigorífico, e assim cresce para os lados.
Não, a poda da árvore minha companheira era diferente. O corte foi feito de baixo para cima. Foram-lhe retirados os excessos que ameaçavam tocar o solo se nada fosse feito pelo competente jardineiro. A imagem era estranha. O que antes era um conjunto de folhas que desordenadamente crescia em direcção ao solo, como pontas desalinhadas de um cabelo feminino, era agora a harmonia absoluta. Um corte na rasante, uma linha horizontal que traçava um limite inferior à ramagem da árvore. Vista de longe, a árvore parecia agora a aba de um chapéu.
Não pude resistir a uma imagem que me assaltou. Fosse este exercício a decapitação dos excessos capilares que os ares bonançosos trouxeram àquela árvore, e a comparação surge inevitável: maldita primavera, que trouxe a decapitação de certos figurões que enxameiam a política e o futebol, lançando as sementes para a pérfida cumplicidade entre política e futebol, e futebol e política. Também aqui, uma tentativa de poda. Que não se fique pelo intróito e vá longe. Que todas as árvores que têm braços tentaculares sejam extirpadas dos excessos de influência e das artimanhas que falseiam resultados e provocam uma infindável concorrência desleal. Estas árvores estão a mais, necessitam de ser tiradas do bosque.
Coragem e competência são os atributos que se pedem nos jardineiros de serviço.
21.4.04
Individualismo metódico – porquê?
Ao ler um livro que saiu há pouco tempo (Vítor Bento, “Os Estados Nacionais e a Economia Global”, Almedina, 2004), fui ao encontro de reflexões que me colocam em rota de colisão com o autor. Bento procura explicar a natureza social do ser humano com a clarividência de se afastar dos excessos colectivistas que no passado tiveram os resultados trágicos que são conhecidos. Mas também rejeita o individualismo, pois cada pessoa só consuma a sua existência num inevitável processo de sociabilização.
O autor considera que “(…) o homem é, na sua individualidade, um ser absolutamente único e diferenciado, dispondo de uma vida interior própria e potencialmente exclusiva, mas que não pode realizar-se, como ser humano, sem ser em comunhão, física e espiritual, com outros homens”. De acordo, cada indivíduo tem uma vida própria, que nos seus mecanismos vitais não depende dos outros. Este é um excelente ponto de partida para reconhecer o individualismo como a essência do ser humano.
Discordo de Bento quando afirma que “os homens tendem a agregar-se, natural ou racionalmente, através do reconhecimento de características e interesses comuns, que identificam um sentido de pertença partilhada, numa identificação demarcante, entre “nós” e os “outros””. É esta socialização forçada que nenhum indivíduo pode combater: “ao nascer, o indivíduo surge já inserido em várias pertenças – família e comunidade política, pelo menos – tendo atrás de si uma história e emergindo num conjunto de circunstâncias culturais que ajudarão a definir a sua identidade, a moldar a sua própria personalidade (…)”.
Aceito que somos influenciados pelo ambiente em que crescemos. Daí a retirar ilações quanto à socialização forçada do indivíduo parece-me um trajecto excessivo. Os sinais de aculturação e de identificação social, enviados pelo ambiente envolvente, não podem ser entendidos como a prova de uma necessária socialização. São, apenas, dados incontornáveis da vida de cada pessoa, que inevitavelmente tem que contactar com outros para subsistir emocional e materialmente.
O que não é mesmo que reconhecer que somos necessariamente seres com propensão social. Quando se afirma que temos que viver em sociedade, porque de outro modo a nossa existência se depara com uma condição de impossibilidade, esta conclusão determina uma visão totalitária sobre cada indivíduo. Como se fôssemos empurrados por um crivo da socialização necessária, como se respirar, andar, ver, cheirar, tocar, comer, ler, beber, ou amar fossem actos que dependessem dos outros. Todos os exemplos que acabei de fornecer apenas dependem de actos individuais. Eu não respiro com os pulmões dos outros. Nem necessito das pernas dos outros para andar. Tão pouco como com a boca dos outros, ou faço a digestão com os aparelhos digestivos deles. Nesta altura estarão alguns a atalhar a questão: “como se vai ele desenvencilhar do amor?”
Para amar é necessário outro, com quem se partilha o amor. Mas quando amamos não o fazemos como resposta a um impulso interior? Não são determinadas características (de quem se ama) que nos levam a germinar o sentimento, pela identificação entre essa pessoa e certas características que possuímos dentro de nós? Amamos, é certo, para darmos o que de bom temos para benefício da pessoa amada. Este é, também, um acto de individualismo. Porque quando amamos alguém estamos, acima de tudo, a fazer bem a nós mesmos.
É neste contexto que, talvez sem dar conta das consequências das suas palavras, Bento vai ao encontro do meu individualismo metódico ao sublinhar que “uma vez que a existência humana é ontologicamente social, o homem não pode existir sem “o outro”, pelo que “o outro” faz parte intrínseca da sua própria existência. Daqui decorre que cada homem tem um interesse na existência de “o outro”, como parte da sua própria existência (...)”. (O destaque é da minha autoria).
O autor considera que “(…) o homem é, na sua individualidade, um ser absolutamente único e diferenciado, dispondo de uma vida interior própria e potencialmente exclusiva, mas que não pode realizar-se, como ser humano, sem ser em comunhão, física e espiritual, com outros homens”. De acordo, cada indivíduo tem uma vida própria, que nos seus mecanismos vitais não depende dos outros. Este é um excelente ponto de partida para reconhecer o individualismo como a essência do ser humano.
Discordo de Bento quando afirma que “os homens tendem a agregar-se, natural ou racionalmente, através do reconhecimento de características e interesses comuns, que identificam um sentido de pertença partilhada, numa identificação demarcante, entre “nós” e os “outros””. É esta socialização forçada que nenhum indivíduo pode combater: “ao nascer, o indivíduo surge já inserido em várias pertenças – família e comunidade política, pelo menos – tendo atrás de si uma história e emergindo num conjunto de circunstâncias culturais que ajudarão a definir a sua identidade, a moldar a sua própria personalidade (…)”.
Aceito que somos influenciados pelo ambiente em que crescemos. Daí a retirar ilações quanto à socialização forçada do indivíduo parece-me um trajecto excessivo. Os sinais de aculturação e de identificação social, enviados pelo ambiente envolvente, não podem ser entendidos como a prova de uma necessária socialização. São, apenas, dados incontornáveis da vida de cada pessoa, que inevitavelmente tem que contactar com outros para subsistir emocional e materialmente.
O que não é mesmo que reconhecer que somos necessariamente seres com propensão social. Quando se afirma que temos que viver em sociedade, porque de outro modo a nossa existência se depara com uma condição de impossibilidade, esta conclusão determina uma visão totalitária sobre cada indivíduo. Como se fôssemos empurrados por um crivo da socialização necessária, como se respirar, andar, ver, cheirar, tocar, comer, ler, beber, ou amar fossem actos que dependessem dos outros. Todos os exemplos que acabei de fornecer apenas dependem de actos individuais. Eu não respiro com os pulmões dos outros. Nem necessito das pernas dos outros para andar. Tão pouco como com a boca dos outros, ou faço a digestão com os aparelhos digestivos deles. Nesta altura estarão alguns a atalhar a questão: “como se vai ele desenvencilhar do amor?”
Para amar é necessário outro, com quem se partilha o amor. Mas quando amamos não o fazemos como resposta a um impulso interior? Não são determinadas características (de quem se ama) que nos levam a germinar o sentimento, pela identificação entre essa pessoa e certas características que possuímos dentro de nós? Amamos, é certo, para darmos o que de bom temos para benefício da pessoa amada. Este é, também, um acto de individualismo. Porque quando amamos alguém estamos, acima de tudo, a fazer bem a nós mesmos.
É neste contexto que, talvez sem dar conta das consequências das suas palavras, Bento vai ao encontro do meu individualismo metódico ao sublinhar que “uma vez que a existência humana é ontologicamente social, o homem não pode existir sem “o outro”, pelo que “o outro” faz parte intrínseca da sua própria existência. Daqui decorre que cada homem tem um interesse na existência de “o outro”, como parte da sua própria existência (...)”. (O destaque é da minha autoria).
20.4.04
Na análise económica como nas análises clínicas
Hoje um retrato de uma recente experiência profissional. Estive, na passada sexta-feira, a participar num congresso na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. O congresso tinha um tema abrangente: as políticas económicas no novo milénio.
No painel em que apresentei a minha comunicação dois dos participantes debruçavam-se, respectivamente, sobre o impacto da união económica e monetária na convergência económica entre os países da União Europeia, e sobre a evolução da política orçamental portuguesa desde 1870 até à actualidade. Esperava aprender com estas comunicações. Todavia as minhas expectativas foram defraudadas. A culpa é da tendência contemporânea da matematização da ciência económica.
O problema resume-se ao seguinte: a metodologia escolhida estava presa a inúmeros cenários alternativos que dependiam de incontáveis variáveis quantitativas. Como se fosse possível abstrair da rigidez dos números, como se houvesse uma ditadura dos números que desvendasse toda a verdade. Em ambos os casos, simulações e mais simulações, cálculos atrás de cálculos, sempre para chegar a conclusões pouco claras.
O que mais me intrigou foi a inexistência de conclusões claras, inequívocas. Os congressistas concluíram com a expressão inglesa “mixed evidence” – que é o mesmo que reconhecer que as ilações são incertas. Tanto tempo gasto nas estimativas para chegarem ao final do processo sem uma conclusão firme! Deve ser frustrante.
Por a economia estar tão presa aos ditames da matemática e da estatística é que se costuma, a título de anedota, dizer que onde há dois economistas há três opiniões diferentes sobre um assunto. Quando estava absorvido pelas simulações numéricas sem fim apresentadas por aqueles dois economistas, subitamente ocorreu-me a imagem perfeita para pintar o quadro a que assistia. Vi os economistas na dupla função de analistas clínicos e de médicos. Analistas clínicos porque foram eles que tiraram o sangue ao paciente (os dados estatísticos apurados). Foram eles que deram uma roupagem, no seu entender coerente, a estes dados.
Noutra veste, a de médicos, interpretaram os dados manipulados. Tentavam chegar a conclusões acerca da maleita de que padece o paciente. Mas sem apresentaram alguma conclusão definitiva, logo, sem aptidão para fornecerem a sua própria prescrição para a solução dos males identificados. No fundo, os economistas, tão dependentes dos excessos quantitativistas, pouco mais são do que analistas clínicos medindo o pulso ao doente. Raras vezes se aventuram na apresentação de soluções aptas a solucionar os problemas que afectam a economia. Presos à exactidão da matemática, acabam mergulhados num mar de incertezas. Eis o efeito paradoxal que a matemática transporta para a ciência económica.
O segredo está em reconhecer que a economia é uma ciência que deve assentar na observação da acção humana. Com todas as contingências que são trazidas à superfície pela subjectividade humana, o que basta para retirar o tapete à ditadura da matemática e da estatística, que teimam em impor-se no reino da ciência económica.
No painel em que apresentei a minha comunicação dois dos participantes debruçavam-se, respectivamente, sobre o impacto da união económica e monetária na convergência económica entre os países da União Europeia, e sobre a evolução da política orçamental portuguesa desde 1870 até à actualidade. Esperava aprender com estas comunicações. Todavia as minhas expectativas foram defraudadas. A culpa é da tendência contemporânea da matematização da ciência económica.
O problema resume-se ao seguinte: a metodologia escolhida estava presa a inúmeros cenários alternativos que dependiam de incontáveis variáveis quantitativas. Como se fosse possível abstrair da rigidez dos números, como se houvesse uma ditadura dos números que desvendasse toda a verdade. Em ambos os casos, simulações e mais simulações, cálculos atrás de cálculos, sempre para chegar a conclusões pouco claras.
O que mais me intrigou foi a inexistência de conclusões claras, inequívocas. Os congressistas concluíram com a expressão inglesa “mixed evidence” – que é o mesmo que reconhecer que as ilações são incertas. Tanto tempo gasto nas estimativas para chegarem ao final do processo sem uma conclusão firme! Deve ser frustrante.
Por a economia estar tão presa aos ditames da matemática e da estatística é que se costuma, a título de anedota, dizer que onde há dois economistas há três opiniões diferentes sobre um assunto. Quando estava absorvido pelas simulações numéricas sem fim apresentadas por aqueles dois economistas, subitamente ocorreu-me a imagem perfeita para pintar o quadro a que assistia. Vi os economistas na dupla função de analistas clínicos e de médicos. Analistas clínicos porque foram eles que tiraram o sangue ao paciente (os dados estatísticos apurados). Foram eles que deram uma roupagem, no seu entender coerente, a estes dados.
Noutra veste, a de médicos, interpretaram os dados manipulados. Tentavam chegar a conclusões acerca da maleita de que padece o paciente. Mas sem apresentaram alguma conclusão definitiva, logo, sem aptidão para fornecerem a sua própria prescrição para a solução dos males identificados. No fundo, os economistas, tão dependentes dos excessos quantitativistas, pouco mais são do que analistas clínicos medindo o pulso ao doente. Raras vezes se aventuram na apresentação de soluções aptas a solucionar os problemas que afectam a economia. Presos à exactidão da matemática, acabam mergulhados num mar de incertezas. Eis o efeito paradoxal que a matemática transporta para a ciência económica.
O segredo está em reconhecer que a economia é uma ciência que deve assentar na observação da acção humana. Com todas as contingências que são trazidas à superfície pela subjectividade humana, o que basta para retirar o tapete à ditadura da matemática e da estatística, que teimam em impor-se no reino da ciência económica.
19.4.04
Afinal há uma solução fácil para o Médio Oriente
Passou um mês sobre a morte do líder do Hamas, o sheik Yassin. Quem lhe sucedeu no cargo não aqueceu o lugar. Mais um raid cirúrgico das tropas de Israel, mais um míssil lançado com uma precisão milimétrica, e desta vez foi Al Rantissi que deixou de dar ordens para atentados terroristas. É caso para perguntar: quem se chega à frente para ser o próximo líder do Hamas? Por outras palavras, quem é se predispõe a servir de alvo para os mísseis disparados pelos helicópteros israelitas?
Os radicais palestinos não são flor que se cheire. A violência que espalham é do mais tenebroso que pode existir. Mas o que dizer das reacções de Israel? O que dizer quando não se trata de uma reacção, de uma retaliação a um ataque suicida que levou a vida de inúmeros israelitas?
Para os que condescendem com o terrorismo de Estado das autoridades israelitas, havia sempre a desculpa de que as tropas de Israel se limitavam a responder aos ataques terroristas. O míssil disparado no sábado não se encaixa neste pretexto. Porque desde a morte de Yassin ainda não houve ataques terroristas a Israel. Anteontem Israel não atacou em legítima defesa. Atacou por atacar, quem sabe se por precaução (parta evitar futuros episódios de terror instigados pelo líder do Hamas que foi morto).
Se Israel se auto-intitula um “Estado de direito”, pode enveredar pelas mesmas práticas dos seus inimigos, elas mesmas negadoras da essência do Estado de direito? Com esta lógica do “olho por olho, dente por dente”, alimentada pelas autoridades de Israel, conseguem-se elas distinguir dos radicais palestinos? Para ambas as perguntas, a resposta é um não sem tibiezas.
São estas as razões que me intrigam na reacção bélica do governo israelita. Estão à espera que esta política de extermínio selectivo venha abafar os focos de violência que pesam sobre a cabeça de tantos israelitas? Acreditam que a degola das lideranças do Hamas tenha um efeito de apaziguamento entre as franjas palestinas que destilam mais ódio em relação aos judeus? Ninguém, desapaixonado e com lucidez, poderá dar resposta afirmativa a estas questões. Neste conflito estúpido, vejo a actuação do governo de Israel como o manancial de insensatez que alimenta ainda mais a espiral de violência. Israel tem um barril de pólvora mesmo à sua porta, pronto a rebentar. Em vez de o afastar para longe, é Israel que para lá atira um cigarro ainda incandescente, provocando a detonação do barril.
Vendo bem as coisas, se calhar as autoridades de Israel estão a seguir a política acertada. Um após outro, os líderes do Hamas vão perdendo a vida nos estilhaços dos mísseis disparados pelas tropas israelitas. Eis a solução fácil para pôr um fim ao conflito: basta ir matando todos os palestinos que forem vozes inflamadas do ódio contra os judeus. Nessa altura, com os palestinos varridos do mapa, finalmente a concórdia estará instalada no Médio Oriente. Só com judeus, mas finalmente a concórdia.
Resta recordar que esta “solução final” não anda muito longe da preconizada há meio século pelos nazis, de que os judeus foram vítimas. Vítimas ontem, carrascos hoje? O que se segue? Um raid aéreo até à Síria, onde está escondido um dos líderes espirituais do Hamas? Ainda que aí, sem quaisquer dúvidas, o direito internacional seja espezinhado?
Os radicais palestinos não são flor que se cheire. A violência que espalham é do mais tenebroso que pode existir. Mas o que dizer das reacções de Israel? O que dizer quando não se trata de uma reacção, de uma retaliação a um ataque suicida que levou a vida de inúmeros israelitas?
Para os que condescendem com o terrorismo de Estado das autoridades israelitas, havia sempre a desculpa de que as tropas de Israel se limitavam a responder aos ataques terroristas. O míssil disparado no sábado não se encaixa neste pretexto. Porque desde a morte de Yassin ainda não houve ataques terroristas a Israel. Anteontem Israel não atacou em legítima defesa. Atacou por atacar, quem sabe se por precaução (parta evitar futuros episódios de terror instigados pelo líder do Hamas que foi morto).
Se Israel se auto-intitula um “Estado de direito”, pode enveredar pelas mesmas práticas dos seus inimigos, elas mesmas negadoras da essência do Estado de direito? Com esta lógica do “olho por olho, dente por dente”, alimentada pelas autoridades de Israel, conseguem-se elas distinguir dos radicais palestinos? Para ambas as perguntas, a resposta é um não sem tibiezas.
São estas as razões que me intrigam na reacção bélica do governo israelita. Estão à espera que esta política de extermínio selectivo venha abafar os focos de violência que pesam sobre a cabeça de tantos israelitas? Acreditam que a degola das lideranças do Hamas tenha um efeito de apaziguamento entre as franjas palestinas que destilam mais ódio em relação aos judeus? Ninguém, desapaixonado e com lucidez, poderá dar resposta afirmativa a estas questões. Neste conflito estúpido, vejo a actuação do governo de Israel como o manancial de insensatez que alimenta ainda mais a espiral de violência. Israel tem um barril de pólvora mesmo à sua porta, pronto a rebentar. Em vez de o afastar para longe, é Israel que para lá atira um cigarro ainda incandescente, provocando a detonação do barril.
Vendo bem as coisas, se calhar as autoridades de Israel estão a seguir a política acertada. Um após outro, os líderes do Hamas vão perdendo a vida nos estilhaços dos mísseis disparados pelas tropas israelitas. Eis a solução fácil para pôr um fim ao conflito: basta ir matando todos os palestinos que forem vozes inflamadas do ódio contra os judeus. Nessa altura, com os palestinos varridos do mapa, finalmente a concórdia estará instalada no Médio Oriente. Só com judeus, mas finalmente a concórdia.
Resta recordar que esta “solução final” não anda muito longe da preconizada há meio século pelos nazis, de que os judeus foram vítimas. Vítimas ontem, carrascos hoje? O que se segue? Um raid aéreo até à Síria, onde está escondido um dos líderes espirituais do Hamas? Ainda que aí, sem quaisquer dúvidas, o direito internacional seja espezinhado?
16.4.04
O mendigo residente
Já me cruzei com ele várias vezes. Escondido por detrás de uma barba farfalhuda e desgrenhada, não sei dizer que idade aparenta. Que tem um aspecto envelhecido, disso não tenho dúvida. Só não sei se esse aspecto revela a sua idade real. Causticado pelas agruras da vida, quem sabe se a aparência o torna mais velho do que realmente é.
Transporta a sua figura demencial pelas ruas das redondezas. Numa deambulação sem nexo – ou que só para ele terá nexo – erra pelas ruas balbuciando palavras sem sentido. O seu ar pouco amigável afasta as pessoas. Por vezes nota-se um esgar de agressividade que leva as velhinhas a fugir dele, alarmadas pela figura andrajosa que arrasta os seus farrapos esburacados.
Nunca o vi a mendigar. O que parece um paradoxo. Lembro-me, uma vez, que recusou uma esmola de uma senhora que passava. Descansava no beiral de uma porta, numa pose própria de quem está a suplicar pela caridade alheia. É certo que não estava de mão estendida, nem sequer disparava aos passeantes pedidos de clemência para a sua situação miserável. Não se lhe ouviam palavras solicitando esmola. A senhora decidiu substituir-se às suas súplicas, acossada por um impulso para satisfazer um imperativo da sua (boa) consciência. As moedas que lhe estendeu foram vigorosamente recusadas. Perante a insistência da caridosa senhora, o mendigo indignou-se e, num atropelo de palavras sem sentido, recusou a oferta com um esgar de agressividade.
Recordo-me, noutra ocasião, deste mendigo sair de um café com um cigarro na boca, recém-acendido. Mal transpôs as portas do café desembainhou um pequeno giz do bolso do seu casaco e, olhando para todos os quadrantes que o olhar alcançava, ajoelhou-se e traçou uma cruz no passeio, mesmo à entrada do café. Seria a sua bússola privativa? O sinal de que naquele local havia alguém pronto a fazer a caridade de que ele procurava, oferecendo o tabaco de que necessita?
Ontem lá estava ele, jazendo num descanso do seu errático vaguear. Importunado pelo cansaço de uma jornada que já ia longa (a tarde chegava ao fim), recostava-se na portada de uma loja. Observava quem passava, com um olhar meio desequilibrado, com o esfusiante entusiasmo de quem via as pessoas que iam e vinham com a normalidade dos dias que passam. Uma normalidade com diferentes significados. Para os passeantes e para ele, mendigo, feliz por não ser assoberbado pela rotina que aflige aquelas pessoas normais.
Já me habituei a ver no mendigo poses desconcertantes. Ontem voltou-me a surpreender. Nestes dias do início da primavera, em que o tempo vai mudando e os primeiros dias de temperatura agradável se misturam com noites ainda frias, muitas vezes não sabemos se vestimos roupa ligeira ou se ainda recorremos a um agasalho. O mendigo era testemunha desta difícil simbiose. Trajava uma gabardina que nos seus tempos de glória teria sido um exemplar garboso. Agora estava desgastada pelo tempo que a corroeu e pelo descuido propositado do mendigo, que a encharcava de nódoas e a coçava de negrume. Por baixo da gabardina duas camisolas deslaçadas, fios soltos dela revelando que os seus antigos donos as tinham retirado de circulação. Estas vestes próprias de quem sente frio eram coroadas com uns chinelos que desnudavam os pés cansados, envelhecidos e mal tratados. Expondo-os ao frio que era, no entanto, abrigado no resto do corpo.
Esta figura enigmática, quem sabe se atormentada pela demência, intriga-me a cada vez que o vejo. Ponho-me a imaginar a construção do mundo que diariamente representa na sua cabeça. E tento perceber como as mesmas coisas que todos vemos podem ter um significado tão diferente para outras pessoas.
Transporta a sua figura demencial pelas ruas das redondezas. Numa deambulação sem nexo – ou que só para ele terá nexo – erra pelas ruas balbuciando palavras sem sentido. O seu ar pouco amigável afasta as pessoas. Por vezes nota-se um esgar de agressividade que leva as velhinhas a fugir dele, alarmadas pela figura andrajosa que arrasta os seus farrapos esburacados.
Nunca o vi a mendigar. O que parece um paradoxo. Lembro-me, uma vez, que recusou uma esmola de uma senhora que passava. Descansava no beiral de uma porta, numa pose própria de quem está a suplicar pela caridade alheia. É certo que não estava de mão estendida, nem sequer disparava aos passeantes pedidos de clemência para a sua situação miserável. Não se lhe ouviam palavras solicitando esmola. A senhora decidiu substituir-se às suas súplicas, acossada por um impulso para satisfazer um imperativo da sua (boa) consciência. As moedas que lhe estendeu foram vigorosamente recusadas. Perante a insistência da caridosa senhora, o mendigo indignou-se e, num atropelo de palavras sem sentido, recusou a oferta com um esgar de agressividade.
Recordo-me, noutra ocasião, deste mendigo sair de um café com um cigarro na boca, recém-acendido. Mal transpôs as portas do café desembainhou um pequeno giz do bolso do seu casaco e, olhando para todos os quadrantes que o olhar alcançava, ajoelhou-se e traçou uma cruz no passeio, mesmo à entrada do café. Seria a sua bússola privativa? O sinal de que naquele local havia alguém pronto a fazer a caridade de que ele procurava, oferecendo o tabaco de que necessita?
Ontem lá estava ele, jazendo num descanso do seu errático vaguear. Importunado pelo cansaço de uma jornada que já ia longa (a tarde chegava ao fim), recostava-se na portada de uma loja. Observava quem passava, com um olhar meio desequilibrado, com o esfusiante entusiasmo de quem via as pessoas que iam e vinham com a normalidade dos dias que passam. Uma normalidade com diferentes significados. Para os passeantes e para ele, mendigo, feliz por não ser assoberbado pela rotina que aflige aquelas pessoas normais.
Já me habituei a ver no mendigo poses desconcertantes. Ontem voltou-me a surpreender. Nestes dias do início da primavera, em que o tempo vai mudando e os primeiros dias de temperatura agradável se misturam com noites ainda frias, muitas vezes não sabemos se vestimos roupa ligeira ou se ainda recorremos a um agasalho. O mendigo era testemunha desta difícil simbiose. Trajava uma gabardina que nos seus tempos de glória teria sido um exemplar garboso. Agora estava desgastada pelo tempo que a corroeu e pelo descuido propositado do mendigo, que a encharcava de nódoas e a coçava de negrume. Por baixo da gabardina duas camisolas deslaçadas, fios soltos dela revelando que os seus antigos donos as tinham retirado de circulação. Estas vestes próprias de quem sente frio eram coroadas com uns chinelos que desnudavam os pés cansados, envelhecidos e mal tratados. Expondo-os ao frio que era, no entanto, abrigado no resto do corpo.
Esta figura enigmática, quem sabe se atormentada pela demência, intriga-me a cada vez que o vejo. Ponho-me a imaginar a construção do mundo que diariamente representa na sua cabeça. E tento perceber como as mesmas coisas que todos vemos podem ter um significado tão diferente para outras pessoas.
15.4.04
Vieira e o bacalhau perdido
Andava perto do local onde passei a maior parte da minha vida, um parque amplo e verdejante nas imediações daquela que foi a casa dos meus pais por mais de trinta anos. De repente vi o senhor Vieira, em passo lento, mãos atrás das costas, a passear os seus dois pequenos cães. Lembrei-me de um dos episódios mais caricatos que vivi durante os mais de vinte anos que habitei naquele local: o bacalhau perdido do Vieira.
Vieira é a antítese do boneco cómico. Sempre carrancudo, exibindo um ar de poucos amigos, não o vejo dotado de um grande sentido de humor. Contudo, num dia próximo do natal, Vieira protagonizou um incidente digno da melhor rábula humorística. Tudo por causa de um bacalhau que se havia evaporado à porta do elevador.
Vieira tinha ido às compras. Como o natal já não estava distante, o cabaz de compras incluía os ingredientes necessários para as iguarias da época. Entre elas um garboso bacalhau, de generoso porte. Não tendo conseguido encaixar tudo no elevador à primeira tentativa, alguns víveres tiveram que aguardar no rés-do-chão à espera de segunda viagem. O infeliz bacalhau teve que esperar para fazer a viagem até ao 13ºandar. Quando Vieira desceu ao rés-do-chão, os mantimentos que estavam à espera de transporte já não estavam intactos. O bacalhau tinha desaparecido, para desgosto e ira do desafortunado Vieira.
No mesmo dia um aviso estava afixado à entrada do prédio. Com a assinatura de Vieira, tinha (cito-o de memória) o seguinte apelo: “a quem encontrou um bacalhau perdido, é favor devolver no 13ºD”. Li e não pude evitar uma sonora gargalhada.
O bacalhau, portanto, perdeu-se. Ainda hoje estou para perceber se Vieira escreveu aquele aviso invadido por uma ingenuidade indomável, ou se foi acometido por uma deliciosa ironia. Fiquei sem compreender se Vieira acreditou que o bacalhau tivesse dado às barbatanas e se escapulisse para outras paragens, por ajuizar que a família de Vieira não era merecedora de o aconchegar no estômago. Ou se, pelo contrário, Vieira estava ciente de que um vizinho menos escrupuloso não teria resistido à beleza do bacalhau. E, fazendo contas à vida, esse vizinho sem remorsos concluiu que abarbatar aquele magnífico espécime significava uma poupança de uns contos largos.
Encarar este furto com o desportivismo com que Vieira o fez é não é para qualquer um. Ao adivinhar que o bacalhau “desapareceu”, enviou um sinal claro ao meliante. Como quem diz, “senhor vizinho-ladrão, veja que eu escrevi a coisa de uma forma mais simpática. Agora veja lá se tem um rebate de consciência e devolve aquilo que não é seu”.
Não tenho a certeza se a ingenuidade supera o humor cáustico de Vieira quando ele manifestou a sua expectativa de que o bacalhau aparecesse, milagrosamente, à porta da sua casa, depois do arrependimento do ladrão de ocasião. Para Vieira ter feito este apelo, é porque esperava que a sua mensagem pudesse atingir o coração mais ou menos empedernido do gatuno de serviço que desviou o bacalhau do 13ºD para qualquer outro andar.
Que haja notícia, o bacalhau foi mesmo parar à mesa de outro vizinho…
Vieira é a antítese do boneco cómico. Sempre carrancudo, exibindo um ar de poucos amigos, não o vejo dotado de um grande sentido de humor. Contudo, num dia próximo do natal, Vieira protagonizou um incidente digno da melhor rábula humorística. Tudo por causa de um bacalhau que se havia evaporado à porta do elevador.
Vieira tinha ido às compras. Como o natal já não estava distante, o cabaz de compras incluía os ingredientes necessários para as iguarias da época. Entre elas um garboso bacalhau, de generoso porte. Não tendo conseguido encaixar tudo no elevador à primeira tentativa, alguns víveres tiveram que aguardar no rés-do-chão à espera de segunda viagem. O infeliz bacalhau teve que esperar para fazer a viagem até ao 13ºandar. Quando Vieira desceu ao rés-do-chão, os mantimentos que estavam à espera de transporte já não estavam intactos. O bacalhau tinha desaparecido, para desgosto e ira do desafortunado Vieira.
No mesmo dia um aviso estava afixado à entrada do prédio. Com a assinatura de Vieira, tinha (cito-o de memória) o seguinte apelo: “a quem encontrou um bacalhau perdido, é favor devolver no 13ºD”. Li e não pude evitar uma sonora gargalhada.
O bacalhau, portanto, perdeu-se. Ainda hoje estou para perceber se Vieira escreveu aquele aviso invadido por uma ingenuidade indomável, ou se foi acometido por uma deliciosa ironia. Fiquei sem compreender se Vieira acreditou que o bacalhau tivesse dado às barbatanas e se escapulisse para outras paragens, por ajuizar que a família de Vieira não era merecedora de o aconchegar no estômago. Ou se, pelo contrário, Vieira estava ciente de que um vizinho menos escrupuloso não teria resistido à beleza do bacalhau. E, fazendo contas à vida, esse vizinho sem remorsos concluiu que abarbatar aquele magnífico espécime significava uma poupança de uns contos largos.
Encarar este furto com o desportivismo com que Vieira o fez é não é para qualquer um. Ao adivinhar que o bacalhau “desapareceu”, enviou um sinal claro ao meliante. Como quem diz, “senhor vizinho-ladrão, veja que eu escrevi a coisa de uma forma mais simpática. Agora veja lá se tem um rebate de consciência e devolve aquilo que não é seu”.
Não tenho a certeza se a ingenuidade supera o humor cáustico de Vieira quando ele manifestou a sua expectativa de que o bacalhau aparecesse, milagrosamente, à porta da sua casa, depois do arrependimento do ladrão de ocasião. Para Vieira ter feito este apelo, é porque esperava que a sua mensagem pudesse atingir o coração mais ou menos empedernido do gatuno de serviço que desviou o bacalhau do 13ºD para qualquer outro andar.
Que haja notícia, o bacalhau foi mesmo parar à mesa de outro vizinho…
14.4.04
Um exemplo da inutilidade da política social
Esta reflexão vem a propósito da necessidade que o Estado (muitas vezes através das autarquias) sente para fazer intervenções sociais nas zonas mais carenciadas. Não vou julgar as modalidades que pretendem tirar estas pessoas de ambientes propícios à criminalidade. Não o vou fazer porque desconfio das boas intenções destes “engenheiros sociais” que se acham dotados de uma superioridade moral para impor comportamentos socialmente aceitáveis a outrem. E porque alguma desta criminalidade não o seria se a sociedade não insistisse em atribuir uma conduta socialmente negativa a certas práticas (consumo e comercialização de estupefacientes).
Interessa-me discutir as intervenções urbanísticas que visam reabilitar os bairros onde estas pessoas vivem. Bairros degradados com o desgaste inevitável da marcha do tempo. Mas também degradados pelo desmazelo dos seus habitantes, ou apenas por não atribuírem grande significado à preservação dos locais que habitam. O que faz o Estado? Investe na recuperação destes imóveis. Por norma, a intervenção fica-se pela reabilitação da fachada dos edifícios. Lava-se a cara aos edifícios, que ficam mais airosos. Por dentro as habitações continuam iguais ao que já eram.
Este é um exemplo de como a sociedade não devia empurrar o Estado (quando não é o Estado que o faz por sua iniciativa, sem consultar a sociedade) para uma intervenção que é inútil. A eficácia da intervenção devia ser medida através da utilidade que ela tem para os seus destinatários directos – os habitantes desses bairros. Parece que a utilidade por eles atribuída à conservação do exterior dos edifícios é reduzida. Quantas vezes, pouco tempo após a finalização da reabilitação, começam a ser visíveis sinais de degradação que não revelam descuido na empreitada mas apenas a incúria dos habitantes?
Ora se os verdadeiros destinatários não atribuem grande significado ao embelezamento exterior dos prédios que habitam, qual a verdadeira intenção desta intervenção do Estado? Há que convir que são actos que dão votos. Entre uma imensa massa de eleitores, que se revê nos problemas de consciência da “sociedade” se nada for feito para aliviar os focos de pobreza, cai sempre bem este tipo de intervenções. Imagina-se uma satisfação mais elevada das pessoas que vivem nos locais que são reabilitados. Mas, no fundo, o que se trata é das outras pessoas, as que têm uma arreigada “consciência social”, se sentirem bem com elas mesmas. Desoneradas do seu dever social de solidariedade para com os mais pobres, que é endossado para o Estado.
Na prática, o alindamento dos bairros degradados tem como destinatários os cidadãos bem posicionados com uma elevada sensibilidade social. São eles que ficam apaziguados com a sua consciência, quando os seus olhos privilegiados não dão de caras com os edifícios que transpiram fealdade e degradação.
Eis a dimensão da falácia. Afinal quem beneficia com esta ostentação da política social são os outros, bem colocados na vida, que sentem um nó na garganta por verem as condições de degradação em que vivem pessoas menos afortunadas. O que interessa é apenas o exterior, sem se dignarem imaginar quais as condições de habitabilidade das casas após a intervenção de reabilitação exterior. As consciências destas pessoas ficam agora tranquilizadas, os políticos que tiveram a “visão” de fazer a obra são recompensados pela recondução no cargo, e tudo continua a rolar normalmente. Nem que o dinheiro gasto tenha sido um simples desperdício.
Interessa-me discutir as intervenções urbanísticas que visam reabilitar os bairros onde estas pessoas vivem. Bairros degradados com o desgaste inevitável da marcha do tempo. Mas também degradados pelo desmazelo dos seus habitantes, ou apenas por não atribuírem grande significado à preservação dos locais que habitam. O que faz o Estado? Investe na recuperação destes imóveis. Por norma, a intervenção fica-se pela reabilitação da fachada dos edifícios. Lava-se a cara aos edifícios, que ficam mais airosos. Por dentro as habitações continuam iguais ao que já eram.
Este é um exemplo de como a sociedade não devia empurrar o Estado (quando não é o Estado que o faz por sua iniciativa, sem consultar a sociedade) para uma intervenção que é inútil. A eficácia da intervenção devia ser medida através da utilidade que ela tem para os seus destinatários directos – os habitantes desses bairros. Parece que a utilidade por eles atribuída à conservação do exterior dos edifícios é reduzida. Quantas vezes, pouco tempo após a finalização da reabilitação, começam a ser visíveis sinais de degradação que não revelam descuido na empreitada mas apenas a incúria dos habitantes?
Ora se os verdadeiros destinatários não atribuem grande significado ao embelezamento exterior dos prédios que habitam, qual a verdadeira intenção desta intervenção do Estado? Há que convir que são actos que dão votos. Entre uma imensa massa de eleitores, que se revê nos problemas de consciência da “sociedade” se nada for feito para aliviar os focos de pobreza, cai sempre bem este tipo de intervenções. Imagina-se uma satisfação mais elevada das pessoas que vivem nos locais que são reabilitados. Mas, no fundo, o que se trata é das outras pessoas, as que têm uma arreigada “consciência social”, se sentirem bem com elas mesmas. Desoneradas do seu dever social de solidariedade para com os mais pobres, que é endossado para o Estado.
Na prática, o alindamento dos bairros degradados tem como destinatários os cidadãos bem posicionados com uma elevada sensibilidade social. São eles que ficam apaziguados com a sua consciência, quando os seus olhos privilegiados não dão de caras com os edifícios que transpiram fealdade e degradação.
Eis a dimensão da falácia. Afinal quem beneficia com esta ostentação da política social são os outros, bem colocados na vida, que sentem um nó na garganta por verem as condições de degradação em que vivem pessoas menos afortunadas. O que interessa é apenas o exterior, sem se dignarem imaginar quais as condições de habitabilidade das casas após a intervenção de reabilitação exterior. As consciências destas pessoas ficam agora tranquilizadas, os políticos que tiveram a “visão” de fazer a obra são recompensados pela recondução no cargo, e tudo continua a rolar normalmente. Nem que o dinheiro gasto tenha sido um simples desperdício.
13.4.04
O que fazer com esta pobreza?
Espero à porta do supermercado. Diante dos meus olhos dois ensaios de pobreza despertam a atenção. Ao dobrar a esquina, logo à saída do supermercado, um negro esguio, na casa dos vinte e poucos anos, espera pelos passeantes que entram e saem no supermercado, encostado na porta de um cabeleireiro. Balbucia algo só a algumas pessoas que com ele se cruzam. Só ao fim de algum tempo percebo que se trata de um pedinte, quando um homem carregado de sacos interrompe a marcha e com um ar resignado vasculha uns trocos na algibeira. O homem volta costas e o pedinte conta as moedas. À distância não consegui perceber qual teria sido a maquia oferecida. Pelo sorriso esboçado pelo pedinte, deve ter sido uma esmola generosa.
Uns metros mais à frente dois vultos vasculham nos latões do lixo. A penumbra do fim da tarde não me deixa desenhar com nitidez as pessoas que abriam e fechavam as tampas dos contentores verdes. Não consegui perceber se eram jovens ou velhos, se tinham ar de portugueses ou se eram cidadãos de leste. Apenas dois vultos incógnitos que se rebaixavam num acto de humilhação que para eles tinha outro significado – um acto de busca desesperada por algo de valioso.
De repente, à frente dos meus olhos passaram vertiginosas imagens do sofrimento que percorre aquelas almas penadas que pediam a indulgência de quem por eles passava (o jovem negro) e que, em desespero, procuravam um tesouro qualquer nos contentores do lixo. Chocou-me mais ver os dois vultos anónimos a mergulharem com voracidade para dentro dos contentores, com as mãos desnudadas, num estado de necessidade aflitivo. Um quadro pintado a negro, com uma densidade de chumbo que por largos minutos não me quis abandonar.
Bem sei, para os que conhecem a minha “insensibilidade social”, que o retrato e a reacção constituem uma surpresa. Mas não há bela sem senão. Aos que estavam espantados pela revelação desta faceta desconhecida (ao confessar o incómodo que esta pobreza me suscita), vem agora a o reverso da medalha. À questão, “o que fazer com esta pobreza?”, a resposta mais óbvia é a de reclamar uma atitude mais construtiva, mais permanente, mais activa da sociedade.
Discordo. Não é uma competência da sociedade. Quando se reivindica uma responsabilização colectiva, através dessa coisa abstracta chamada “sociedade”, o que temos pela frente é um acto de desresponsabilização individual. Como se cada um de nós sentisse que nada pode fazer perante os chocantes fenómenos de pobreza. Atirar esta responsabilidade para a sociedade mais não é do que a confissão individual de impotência para algo fazer contra a pobreza. Impotência, incapacidade, ou simples indisponibilidade – tudo se encerra no mesmo diagnóstico de demissão individual. Como se a sociedade fizesse os milagres que a sequência de indivíduos não é capaz de fazer.
Continuo a pensar que o combate eficaz à pobreza vem de um impulso nascido dentro de cada indivíduo, num contributo para erradicar os focos de pobreza (quando elas não são voluntárias). Pensar que a sociedade se pode substituir a cada indivíduo nesta tarefa é um misto de hipocrisia e de lirismo. Mais importante do que organizar a sociedade no combate à pobreza, na crença de que a reunião de esforços é a melhor via para extirpar a pobreza, é um acto de consciência individual que leve cada pessoa a fazer aquilo que acha de que deve fazer.
Uns metros mais à frente dois vultos vasculham nos latões do lixo. A penumbra do fim da tarde não me deixa desenhar com nitidez as pessoas que abriam e fechavam as tampas dos contentores verdes. Não consegui perceber se eram jovens ou velhos, se tinham ar de portugueses ou se eram cidadãos de leste. Apenas dois vultos incógnitos que se rebaixavam num acto de humilhação que para eles tinha outro significado – um acto de busca desesperada por algo de valioso.
De repente, à frente dos meus olhos passaram vertiginosas imagens do sofrimento que percorre aquelas almas penadas que pediam a indulgência de quem por eles passava (o jovem negro) e que, em desespero, procuravam um tesouro qualquer nos contentores do lixo. Chocou-me mais ver os dois vultos anónimos a mergulharem com voracidade para dentro dos contentores, com as mãos desnudadas, num estado de necessidade aflitivo. Um quadro pintado a negro, com uma densidade de chumbo que por largos minutos não me quis abandonar.
Bem sei, para os que conhecem a minha “insensibilidade social”, que o retrato e a reacção constituem uma surpresa. Mas não há bela sem senão. Aos que estavam espantados pela revelação desta faceta desconhecida (ao confessar o incómodo que esta pobreza me suscita), vem agora a o reverso da medalha. À questão, “o que fazer com esta pobreza?”, a resposta mais óbvia é a de reclamar uma atitude mais construtiva, mais permanente, mais activa da sociedade.
Discordo. Não é uma competência da sociedade. Quando se reivindica uma responsabilização colectiva, através dessa coisa abstracta chamada “sociedade”, o que temos pela frente é um acto de desresponsabilização individual. Como se cada um de nós sentisse que nada pode fazer perante os chocantes fenómenos de pobreza. Atirar esta responsabilidade para a sociedade mais não é do que a confissão individual de impotência para algo fazer contra a pobreza. Impotência, incapacidade, ou simples indisponibilidade – tudo se encerra no mesmo diagnóstico de demissão individual. Como se a sociedade fizesse os milagres que a sequência de indivíduos não é capaz de fazer.
Continuo a pensar que o combate eficaz à pobreza vem de um impulso nascido dentro de cada indivíduo, num contributo para erradicar os focos de pobreza (quando elas não são voluntárias). Pensar que a sociedade se pode substituir a cada indivíduo nesta tarefa é um misto de hipocrisia e de lirismo. Mais importante do que organizar a sociedade no combate à pobreza, na crença de que a reunião de esforços é a melhor via para extirpar a pobreza, é um acto de consciência individual que leve cada pessoa a fazer aquilo que acha de que deve fazer.
12.4.04
Uma reflexão pascal
Ontem, domingo de Páscoa, em pouco mais de meia hora vi o compasso por três vezes. Não sei se foi uma notável coincidência. Em anos anteriores não me recordo de em tão curto espaço de tempo me ter cruzado tantas vezes, em plena cidade, com o cortejo pascal. Se calhar há coincidência em ambas as coisas: no que aconteceu este ano, e no facto de em anos anteriores nunca se ter dado o acaso de ter visto pessoas trajadas transportando a cruz pela rua fora.
Lembro-me da primeira vez que vi este cortejo, e da ignorância que revelei em público. Foi há treze anos. Ia de autocarro do Porto para o aeroporto de Vigo com os meus colegas da universidade, para a nossa viagem de finalistas. Antes da Póvoa de Varzim, na velha estrada que fazia a ligação entre o Porto e Valença do Minho, o autocarro abrandou para permitir que meia dúzia de transeuntes atravessassem a estrada. De ambos os lados da estrada, às portas das casas, as pessoas esperavam por algo, envergando a sua mais janota fatiota.
Atravessando a estrada lá iam as cinco ou seis pessoas, trajando uma túnica branca até aos pés. Um deles carregava uma cruz. Na ignorância própria de um rapaz nascido e criado na grande urbe, onde nunca tal exibição religiosa tinha sido testemunhada, perguntei aos demais o que era aquilo. Os que estavam mais perto de mim ficaram admirados com a minha ignorância, e lá fizeram o favor de me explicar o que se estava a passar diante dos meus olhos.
Treze anos passados, já dou de caras com o compasso em plena cidade. Pus-me a pensar se o fenómeno terá algum significado especial. Descontando a possibilidade de se tratar de uma coincidência, inquiri-me se a frequência com que me cruzei com os cortejos pascais significa um revigoramento dos rituais católicos, como se a fé das pessoas esteja a tonificar-se. Na hipótese da resposta ser afirmativa, outra questão me assaltou de imediato: como se compatibiliza esta conclusão com a tendência, assumida em círculos da hierarquia eclesiástica, de que as pessoas estão cada vez mais distantes da religião? Algo não batia certo.
Talvez a resposta para a inusitada frequência do compasso em plena cidade se encontre na própria crise que a fé católica atravessa. Imersa na crise, reconhecendo o afastamento que as pessoas vão, numa escala crescente, votando a religião, a igreja sente a necessidade de apelar aos valores do passado para tentar reconquistar almas que se vão perdendo nas trevas. Os ritos do passado são um factor de identificação colectiva que têm o condão, quando incorporados por muitas pessoas, de as fazer regressar em massa ao que a sociedade era em tempos remotos.
Será esta a explicação para ver hoje o que não via há mais de dez anos nas ruas do Porto? A disseminação do compasso como um sinal da crise do catolicismo. Como se fosse um balão de oxigénio a tentar a sobrevivência de uma fé que vai perdendo os seus rastos com a passagem do tempo.
Lembro-me da primeira vez que vi este cortejo, e da ignorância que revelei em público. Foi há treze anos. Ia de autocarro do Porto para o aeroporto de Vigo com os meus colegas da universidade, para a nossa viagem de finalistas. Antes da Póvoa de Varzim, na velha estrada que fazia a ligação entre o Porto e Valença do Minho, o autocarro abrandou para permitir que meia dúzia de transeuntes atravessassem a estrada. De ambos os lados da estrada, às portas das casas, as pessoas esperavam por algo, envergando a sua mais janota fatiota.
Atravessando a estrada lá iam as cinco ou seis pessoas, trajando uma túnica branca até aos pés. Um deles carregava uma cruz. Na ignorância própria de um rapaz nascido e criado na grande urbe, onde nunca tal exibição religiosa tinha sido testemunhada, perguntei aos demais o que era aquilo. Os que estavam mais perto de mim ficaram admirados com a minha ignorância, e lá fizeram o favor de me explicar o que se estava a passar diante dos meus olhos.
Treze anos passados, já dou de caras com o compasso em plena cidade. Pus-me a pensar se o fenómeno terá algum significado especial. Descontando a possibilidade de se tratar de uma coincidência, inquiri-me se a frequência com que me cruzei com os cortejos pascais significa um revigoramento dos rituais católicos, como se a fé das pessoas esteja a tonificar-se. Na hipótese da resposta ser afirmativa, outra questão me assaltou de imediato: como se compatibiliza esta conclusão com a tendência, assumida em círculos da hierarquia eclesiástica, de que as pessoas estão cada vez mais distantes da religião? Algo não batia certo.
Talvez a resposta para a inusitada frequência do compasso em plena cidade se encontre na própria crise que a fé católica atravessa. Imersa na crise, reconhecendo o afastamento que as pessoas vão, numa escala crescente, votando a religião, a igreja sente a necessidade de apelar aos valores do passado para tentar reconquistar almas que se vão perdendo nas trevas. Os ritos do passado são um factor de identificação colectiva que têm o condão, quando incorporados por muitas pessoas, de as fazer regressar em massa ao que a sociedade era em tempos remotos.
Será esta a explicação para ver hoje o que não via há mais de dez anos nas ruas do Porto? A disseminação do compasso como um sinal da crise do catolicismo. Como se fosse um balão de oxigénio a tentar a sobrevivência de uma fé que vai perdendo os seus rastos com a passagem do tempo.
9.4.04
Caldeirada política à portuguesa (ou de como a memória é curta)
Soube-se anteontem, através de uma sondagem, que a maioria dos portugueses considera que o actual governo é pior do que os governos de Guterres. Claro que as sondagens “valem o que valem” – lugar-comum estafado, repetido à exaustão, mas que nem assim tem força suficiente para que meio mundo deixe de andar ansiosamente agarrado às sondagens que episodicamente são divulgadas.
Vamos supor, por um momento, que o resultado da sondagem é fidedigno. Eis como vejo as coisas: mesmo não gostando do desempenho do actual governo, ainda assim o seu desempenho é menos mau do que os governos liderados por Guterres. Sinceramente, não vejo forma de encontrar futuros governos que sejam tão maus como o foram os capitaneados por Guterres. Descontando os que tiveram como primeiros-ministros o comediante Vasco Gonçalves e o patriarca-mor Mário Soares, não tenho memória de governos tão maus, incompetentes e laxistas como os de Guterres.
A sondagem encheu de contentamento vários espíritos situados em lados diferentes do panorama político. Claro que entre os socialistas o regozijo atingiu os píncaros. Apesar de ainda vegetar o ressentimento pela orfandade que Guterres legou ao PS, com a sua debandada assim que viu o horizonte ensombrado, começam a emergir sinais de que a hora do perdão está a chegar.
Outros, que se dizem independentes mas que gravitam na órbita socialista, apressaram-se a tecer loas ao guterrismo. Foi o caso de Vital Moreira, que no blog Causa Nossa publicou um comentário que tinha um título elucidativo: “volta Guterres, estás perdoado”. O descaramento é tanto que tudo vale para passar uma esponja pelas vergonhas cometidas no passado. Apelando à população que empunhe a sua fraca memória, para assim branquear um dos períodos mais lamentáveis da governação após o 25 de Abril de 1974.
De outro lado da barricada, o impagável Manuel Monteiro e o seu Partido da Nova Democracia (PND) também se afadigaram em enviar sinais de contentamento. Não cheguei a perceber qual a intenção deste partido que reúne todas as condições para fenecer pouco tempo depois de ter nascido. Seria caucionar a governação desastrada de Guterres, ou apenas arreganhar os ressentimentos particulares contra o partido menor da coligação de onde eles próprios, PNDs, saíram em dissidência? Seria um aplauso à governação de Guterres, relembrando que Monteiro foi uma preciosa muleta enquanto líder do CDS-PP ? Ou seria apenas uma exibição ressabiada, própria de quem tem um ambição desmedida e sente que se detivesse o poder no CDS-PP seria agora ministro ao lado do PSD?
Bem vistas as coisas, talvez até fique contente com esta sondagem. Por incrível que pareça, sinto-me recompensado ao dar conta que a maioria das pessoas contactadas é da opinião de que os governos de Guterres eram melhores do que o de Durão Barroso. Se há característica que distingui a governação de Guterres foi o nada fazer. Muito se dialogava, mas nada ou pouco foi feito. Como se estes governos fossem um pai ausente, demitido das responsabilidades próprias de timoneiro do país.
O que me enche de júbilo é o seguinte: a revelação de que a maioria da população portuguesa é ultra-liberal. Só assim se concebe que reconheça mais qualidades aos governos guterristas, conhecidos por nada fazerem. E não é isto que um liberal mais gosta – que haja um governo mínimo, um Estado também ele mínimo?
Vamos supor, por um momento, que o resultado da sondagem é fidedigno. Eis como vejo as coisas: mesmo não gostando do desempenho do actual governo, ainda assim o seu desempenho é menos mau do que os governos liderados por Guterres. Sinceramente, não vejo forma de encontrar futuros governos que sejam tão maus como o foram os capitaneados por Guterres. Descontando os que tiveram como primeiros-ministros o comediante Vasco Gonçalves e o patriarca-mor Mário Soares, não tenho memória de governos tão maus, incompetentes e laxistas como os de Guterres.
A sondagem encheu de contentamento vários espíritos situados em lados diferentes do panorama político. Claro que entre os socialistas o regozijo atingiu os píncaros. Apesar de ainda vegetar o ressentimento pela orfandade que Guterres legou ao PS, com a sua debandada assim que viu o horizonte ensombrado, começam a emergir sinais de que a hora do perdão está a chegar.
Outros, que se dizem independentes mas que gravitam na órbita socialista, apressaram-se a tecer loas ao guterrismo. Foi o caso de Vital Moreira, que no blog Causa Nossa publicou um comentário que tinha um título elucidativo: “volta Guterres, estás perdoado”. O descaramento é tanto que tudo vale para passar uma esponja pelas vergonhas cometidas no passado. Apelando à população que empunhe a sua fraca memória, para assim branquear um dos períodos mais lamentáveis da governação após o 25 de Abril de 1974.
De outro lado da barricada, o impagável Manuel Monteiro e o seu Partido da Nova Democracia (PND) também se afadigaram em enviar sinais de contentamento. Não cheguei a perceber qual a intenção deste partido que reúne todas as condições para fenecer pouco tempo depois de ter nascido. Seria caucionar a governação desastrada de Guterres, ou apenas arreganhar os ressentimentos particulares contra o partido menor da coligação de onde eles próprios, PNDs, saíram em dissidência? Seria um aplauso à governação de Guterres, relembrando que Monteiro foi uma preciosa muleta enquanto líder do CDS-PP ? Ou seria apenas uma exibição ressabiada, própria de quem tem um ambição desmedida e sente que se detivesse o poder no CDS-PP seria agora ministro ao lado do PSD?
Bem vistas as coisas, talvez até fique contente com esta sondagem. Por incrível que pareça, sinto-me recompensado ao dar conta que a maioria das pessoas contactadas é da opinião de que os governos de Guterres eram melhores do que o de Durão Barroso. Se há característica que distingui a governação de Guterres foi o nada fazer. Muito se dialogava, mas nada ou pouco foi feito. Como se estes governos fossem um pai ausente, demitido das responsabilidades próprias de timoneiro do país.
O que me enche de júbilo é o seguinte: a revelação de que a maioria da população portuguesa é ultra-liberal. Só assim se concebe que reconheça mais qualidades aos governos guterristas, conhecidos por nada fazerem. E não é isto que um liberal mais gosta – que haja um governo mínimo, um Estado também ele mínimo?
8.4.04
A matança de focas nas terras geladas do Canadá
O almoço que ainda se acomodava no estômago estava a prestes a turvar-se. Terminada a refeição, lia o jornal enquanto espreitava o noticiário na televisão. O pivot anuncia a passagem de uma reportagem sobre a caça às focas no norte do Canadá. As autoridades deste país retrocederam em relação ao passado e permitiram que os caçadores de focas voltassem à sua actividade em força.
Ao escutar esta informação, em introdução às imagens que foram captadas por associações de defesa dos animais que perseguiram os caçadores durante a sua sanguinária actividade, apeteceu-me desligar a televisão. Evitei o comodismo de não me atormentar com tais imagens. Resisti e mantive-me agarrado ao lugar onde estava, esperando pela tortura que se ia seguir. A tortura infligida a criaturas indefesas, chacinadas até à morte. E a tortura que a visão dessas imagens me ia causar.
É uma actividade violenta, com tiques de malvadez que permitem compreender a insensibilidade do ser humano, as suas tendências sanguinárias, a vertigem pela auto-destruição que coloca a espécie no beiral de um frágil equilíbrio que questiona a sua existência vindoura. Repugna-me ver como os caçadores de focas percorrem as terras geladas em busca de focas, espetando com frieza um arpão e arrebanhando-as sem dó em movimentos violentos que abanam os bichos como se de simples coisas inanimadas se tratassem.
Aflige-me ver as criaturas ensanguentadas, com os olhos corroídos pela dor ao saberem que a morte chega dentro de momentos, assim que se esvaírem em sangue. E os gritos lancinantes de quem clama por uma piedade que já vem fora de tempo. É um dó de alma testemunhar como as crias com poucas semanas de vida são as mais apetecíveis. As suas peles são as mais valiosas. Não há a menor hesitação em lançar o arpão a estas dóceis criaturas para lhes despir a valiosa pele. Jazem inertes no gelo, uma mancha agora vermelha depois de terem sido despojadas da sua pele esbranquiçada. Ao seu lado, a mãe faz a ladainha pelo filho que perdeu. Fruto da brutalidade humana de quem pensa que as estas são espécies menores colocadas ao serviço dos desígnios da superior espécie humana.
Enquanto isto, os caçadores de focas seguem insensíveis, felizes com os troféus que transportam. Para mais tarde serem comercializados como casacos que vão ser envergados por uma qualquer dondoca desprovida de inteligência. É nestes momentos que entendo a suprema estupidez da espécie humana. Quando nos ensinam que, como humanos, somos a espécie superior por sermos os únicos seres vivos dotados de racionalidade, apetece-me perguntar se esta “verdade” não passa de um dogma que apenas tem servido para perpetuar o desrespeito por outros animais. Como se nós, humanos, fossemos os senhores de tudo e de todos e pudéssemos sentenciar a sorte das outras espécies.
É nestas alturas que me revelo a antítese do humanista. Por respeito aos direitos dos animais, de tantos animais que ao longo dos tempos têm sido espezinhados por conveniência humana. Ao ver o lamentável espectáculo da chacina das focas, a minha reacção (decerto emotiva) é a de desejar que os carrascos fossem submetidos a um tratamento doloroso que culminasse com a sua vida ceifada. Os carrascos são quer os mandantes (quem consome os casacos de pele), quer os autores materiais da matança.
Ao escutar esta informação, em introdução às imagens que foram captadas por associações de defesa dos animais que perseguiram os caçadores durante a sua sanguinária actividade, apeteceu-me desligar a televisão. Evitei o comodismo de não me atormentar com tais imagens. Resisti e mantive-me agarrado ao lugar onde estava, esperando pela tortura que se ia seguir. A tortura infligida a criaturas indefesas, chacinadas até à morte. E a tortura que a visão dessas imagens me ia causar.
É uma actividade violenta, com tiques de malvadez que permitem compreender a insensibilidade do ser humano, as suas tendências sanguinárias, a vertigem pela auto-destruição que coloca a espécie no beiral de um frágil equilíbrio que questiona a sua existência vindoura. Repugna-me ver como os caçadores de focas percorrem as terras geladas em busca de focas, espetando com frieza um arpão e arrebanhando-as sem dó em movimentos violentos que abanam os bichos como se de simples coisas inanimadas se tratassem.
Aflige-me ver as criaturas ensanguentadas, com os olhos corroídos pela dor ao saberem que a morte chega dentro de momentos, assim que se esvaírem em sangue. E os gritos lancinantes de quem clama por uma piedade que já vem fora de tempo. É um dó de alma testemunhar como as crias com poucas semanas de vida são as mais apetecíveis. As suas peles são as mais valiosas. Não há a menor hesitação em lançar o arpão a estas dóceis criaturas para lhes despir a valiosa pele. Jazem inertes no gelo, uma mancha agora vermelha depois de terem sido despojadas da sua pele esbranquiçada. Ao seu lado, a mãe faz a ladainha pelo filho que perdeu. Fruto da brutalidade humana de quem pensa que as estas são espécies menores colocadas ao serviço dos desígnios da superior espécie humana.
Enquanto isto, os caçadores de focas seguem insensíveis, felizes com os troféus que transportam. Para mais tarde serem comercializados como casacos que vão ser envergados por uma qualquer dondoca desprovida de inteligência. É nestes momentos que entendo a suprema estupidez da espécie humana. Quando nos ensinam que, como humanos, somos a espécie superior por sermos os únicos seres vivos dotados de racionalidade, apetece-me perguntar se esta “verdade” não passa de um dogma que apenas tem servido para perpetuar o desrespeito por outros animais. Como se nós, humanos, fossemos os senhores de tudo e de todos e pudéssemos sentenciar a sorte das outras espécies.
É nestas alturas que me revelo a antítese do humanista. Por respeito aos direitos dos animais, de tantos animais que ao longo dos tempos têm sido espezinhados por conveniência humana. Ao ver o lamentável espectáculo da chacina das focas, a minha reacção (decerto emotiva) é a de desejar que os carrascos fossem submetidos a um tratamento doloroso que culminasse com a sua vida ceifada. Os carrascos são quer os mandantes (quem consome os casacos de pele), quer os autores materiais da matança.
7.4.04
Ainda a propósito da abstenção
O meu amigo Miguel Sousa (nome artístico: “Ponte Vasco da Gama”) comentou o artigo de ontem sobre a abstenção. Nestes termos:
“E como se faz uma investigação séria sobre o significado da abstenção? Questionam-se directamente os milhões de potenciais eleitores que não foram votar? Por amostragem? Baseadas em quê? É utópico. Nunca conseguiremos concluir nada. Lá está o problema: Se não for através da expressão do voto (seja branco, nulo ou num partido), o actual sistema, apesar de muito imperfeito, ainda não tem substituto à altura, ou melhor.
Um abraço!"
Como se faz uma investigação séria? Há métodos estudados pelas ciências sociais. Claro que teríamos que conceber de uma amostra representativa. Ela teria que ser a mais alargada possível (o que, logo à partida, é subjectivo, bem sei). E pelo facto de ser uma amostragem também incorria em resultados que se poderiam deslocar da realidade. Seja como for, seria importante que alguém tratasse a abstenção com mais…“dignidade”. O que não posso aceitar é a interpretação leviana que se costuma dar ao significado da abstenção e aos abstencionistas. Não que me importe com o que os outros pensam acerca do que eu faço ou deixo de fazer. Apenas me dói saber que há interpretações que são erradas, que estão bem longe de corresponder à realidade.
Outra possibilidade seria obrigar as pessoas a votar. A abstenção seria punida com multa – e uma multa elevada, para desincentivar a abstenção. Este sistema existe (que eu conheça) na Bélgica e na Austrália. Sou totalmente contra este método, pelo que ele tem de impositivo. É um método que me repugna por atentar contra a liberdade individual, contra a livre escolha que apenas compete a cada indivíduo.
Mas, e apenas por hipótese, vamos imaginar que era este o regime que passava a existir no país. Aí seria interessante verificar qual a conversão de abstencionistas em votos em branco e em votos nulos. Quanto maior fosse o aumento percentual de votos nulos e brancos, maior seria a evidência de que os actuais abstencionistas não se abstêm por desinteresse, irresponsabilidade ou pura preguiça. Seria então sinal de que algo vai mal com o regime político e com o sistema de representação.
Qual é a alternativa? Confesso que não a tenho. Só sei que estou insatisfeito com o sistema que nos rege. E que uma forma de mostrar esta insatisfação é a recusa em depositar o meu voto. Esta é uma manifestação niilista, pouco construtiva? Talvez seja. Mas um comportamento nada construtivo também tem algumas virtudes. Obriga a reflectir sobre os problemas, a ponderar no que está mal e como pode ser corrigido – sem que este niilismo exija a inevitável diluição do regime contestado.
No fundo, esta postura “destrutiva” pode funcionar como uma aguda consciência crítica que exibe um permanente desassossego com as soluções que damos como adquiridas que são as melhores que existem. Estando longe da perfeição, consideramo-las as melhores por não terem rivais à altura. Sinceramente acho que esta é uma manifestação de conformismo que é a principal culpada pela perda de qualidade da democracia em que vivemos (no ocidente em geral, não apenas em Portugal).
“E como se faz uma investigação séria sobre o significado da abstenção? Questionam-se directamente os milhões de potenciais eleitores que não foram votar? Por amostragem? Baseadas em quê? É utópico. Nunca conseguiremos concluir nada. Lá está o problema: Se não for através da expressão do voto (seja branco, nulo ou num partido), o actual sistema, apesar de muito imperfeito, ainda não tem substituto à altura, ou melhor.
Um abraço!"
Como se faz uma investigação séria? Há métodos estudados pelas ciências sociais. Claro que teríamos que conceber de uma amostra representativa. Ela teria que ser a mais alargada possível (o que, logo à partida, é subjectivo, bem sei). E pelo facto de ser uma amostragem também incorria em resultados que se poderiam deslocar da realidade. Seja como for, seria importante que alguém tratasse a abstenção com mais…“dignidade”. O que não posso aceitar é a interpretação leviana que se costuma dar ao significado da abstenção e aos abstencionistas. Não que me importe com o que os outros pensam acerca do que eu faço ou deixo de fazer. Apenas me dói saber que há interpretações que são erradas, que estão bem longe de corresponder à realidade.
Outra possibilidade seria obrigar as pessoas a votar. A abstenção seria punida com multa – e uma multa elevada, para desincentivar a abstenção. Este sistema existe (que eu conheça) na Bélgica e na Austrália. Sou totalmente contra este método, pelo que ele tem de impositivo. É um método que me repugna por atentar contra a liberdade individual, contra a livre escolha que apenas compete a cada indivíduo.
Mas, e apenas por hipótese, vamos imaginar que era este o regime que passava a existir no país. Aí seria interessante verificar qual a conversão de abstencionistas em votos em branco e em votos nulos. Quanto maior fosse o aumento percentual de votos nulos e brancos, maior seria a evidência de que os actuais abstencionistas não se abstêm por desinteresse, irresponsabilidade ou pura preguiça. Seria então sinal de que algo vai mal com o regime político e com o sistema de representação.
Qual é a alternativa? Confesso que não a tenho. Só sei que estou insatisfeito com o sistema que nos rege. E que uma forma de mostrar esta insatisfação é a recusa em depositar o meu voto. Esta é uma manifestação niilista, pouco construtiva? Talvez seja. Mas um comportamento nada construtivo também tem algumas virtudes. Obriga a reflectir sobre os problemas, a ponderar no que está mal e como pode ser corrigido – sem que este niilismo exija a inevitável diluição do regime contestado.
No fundo, esta postura “destrutiva” pode funcionar como uma aguda consciência crítica que exibe um permanente desassossego com as soluções que damos como adquiridas que são as melhores que existem. Estando longe da perfeição, consideramo-las as melhores por não terem rivais à altura. Sinceramente acho que esta é uma manifestação de conformismo que é a principal culpada pela perda de qualidade da democracia em que vivemos (no ocidente em geral, não apenas em Portugal).
Os primeiros ares da Primavera
Tinha acabado de almoçar e as aulas só começavam ao fim da tarde. Tinha uma tarde de trabalho pela frente, com algumas tarefas agendadas para o computador. O tempo estava convidativo para espairecer a cabeça. A tarde ensolarada e a temperatura agradável endossavam o convite para sair do teclado do computador e dar uma saltada até à beira-mar. Apetece sempre mais quando somos bafejados pelos primeiros dias de sol aquecido depois de um Inverno longo, seja ou não rigoroso. Os poros pedem os primeiros raios de sol. Os olhos anseiam pela vista tranquila do mar que se espraia à frente do areal. A alma rejuvenesce com os primeiros ares de Primavera que chegam depois de um Inverno cinzento, chuvoso e frio.
Mudei de planos para as tarefas vespertinas. O trabalho que me esperava à frente do computador foi transformado no velho método do papel e da caneta. O pano de fundo era uma esplanada em frente ao mar, com a inspiração do sol que aquecia a pele. Quando me sentei na esplanada repousei a vista por uns momentos no quadro que a vista alcançava.
O mar, a areia, as rochas onde o mar se desfazia, inglório. O sol primaveril que pintava o horizonte marítimo em tons de prata. As pessoas que passavam, felizes pela sensação agradável de tirar o excesso de roupa que a longa invernia exigiu. Sobre a esquerda, duas adolescentes banhavam-se nas águas que imagino gélidas – ainda mais gélidas do que já são no tempo do Verão. Os seus namorados não foram acossados pelo estertor do primeiro banho estival. Estavam entretidos numa conversa animada, enquanto fumavam um cigarro. A espaços atiravam olhares furtivos às raparigas que estavam animadas na sua luta contra a água do mar.
A produtividade de quem desloca o seu escritório para uma esplanada ressente-se do quadro bucólico com que a vista se depara. Tem a vantagem do tónico retemperador que oferece como recompensa. Aligeira a mente e revigora as energias. Facilita a concentração. Mais ainda, a torrente de sensações a invadir os sentidos alimenta a inspiração para as palavras que eram alinhadas para um texto académico que me apanhou no meio do apelo para ver o mar e sentir o ar agradável da primavera.
Sobretudo o mar, esse inesgotável manancial de inspiração. O mar levemente agitado por uma brisa que soprava de norte. Sentia que aquelas ondas ligeiras, que penteavam o mar num enlevo desorganizado, entravam pela ponta da minha caneta como a força inspiradora das palavras que logo de seguida saíam para o papel. Como se o mar plácido, ali diante dos meus olhos, fosse a fonte de inspiração do texto que ia saindo da caneta. As palavras fluíam com naturalidade. Escapavam-se da caneta como se emancipassem de mim mesmo. Sentia-as jorrar com vontade, como se eu deixasse de ter controlo nelas. A compensação dada pela presença à frente do mar ultrapassava as pausas que fazia de vez em quando para me deleitar com o que os meus olhos observavam.
É nestes momentos que acredito numa harmonia desorganizada, sem arquitecto que seja o seu mestre. É aqui que bebo a inspiração divina para a existência. Tecendo louvores ao emprego que tenho, que me permite ter a flexibilidade de horário e a possibilidade de mover o meu escritório. Para me comprazer com os deleites oferecidos pelo luzente sol que chega até aos corpos sedentos de se libertarem da sombria noite invernosa.
Mudei de planos para as tarefas vespertinas. O trabalho que me esperava à frente do computador foi transformado no velho método do papel e da caneta. O pano de fundo era uma esplanada em frente ao mar, com a inspiração do sol que aquecia a pele. Quando me sentei na esplanada repousei a vista por uns momentos no quadro que a vista alcançava.
O mar, a areia, as rochas onde o mar se desfazia, inglório. O sol primaveril que pintava o horizonte marítimo em tons de prata. As pessoas que passavam, felizes pela sensação agradável de tirar o excesso de roupa que a longa invernia exigiu. Sobre a esquerda, duas adolescentes banhavam-se nas águas que imagino gélidas – ainda mais gélidas do que já são no tempo do Verão. Os seus namorados não foram acossados pelo estertor do primeiro banho estival. Estavam entretidos numa conversa animada, enquanto fumavam um cigarro. A espaços atiravam olhares furtivos às raparigas que estavam animadas na sua luta contra a água do mar.
A produtividade de quem desloca o seu escritório para uma esplanada ressente-se do quadro bucólico com que a vista se depara. Tem a vantagem do tónico retemperador que oferece como recompensa. Aligeira a mente e revigora as energias. Facilita a concentração. Mais ainda, a torrente de sensações a invadir os sentidos alimenta a inspiração para as palavras que eram alinhadas para um texto académico que me apanhou no meio do apelo para ver o mar e sentir o ar agradável da primavera.
Sobretudo o mar, esse inesgotável manancial de inspiração. O mar levemente agitado por uma brisa que soprava de norte. Sentia que aquelas ondas ligeiras, que penteavam o mar num enlevo desorganizado, entravam pela ponta da minha caneta como a força inspiradora das palavras que logo de seguida saíam para o papel. Como se o mar plácido, ali diante dos meus olhos, fosse a fonte de inspiração do texto que ia saindo da caneta. As palavras fluíam com naturalidade. Escapavam-se da caneta como se emancipassem de mim mesmo. Sentia-as jorrar com vontade, como se eu deixasse de ter controlo nelas. A compensação dada pela presença à frente do mar ultrapassava as pausas que fazia de vez em quando para me deleitar com o que os meus olhos observavam.
É nestes momentos que acredito numa harmonia desorganizada, sem arquitecto que seja o seu mestre. É aqui que bebo a inspiração divina para a existência. Tecendo louvores ao emprego que tenho, que me permite ter a flexibilidade de horário e a possibilidade de mover o meu escritório. Para me comprazer com os deleites oferecidos pelo luzente sol que chega até aos corpos sedentos de se libertarem da sombria noite invernosa.
6.4.04
Confissões de um abstencionista
No meio da discussão alimentada a propósito da ficção do voto em branco (Saramago), muito se tem argumentado a propósito desta opção. Pelo caminho, alguns têm feito considerações menos abonatórias à abstenção. Mas se o que está em causa é o apelo ao voto em branco, porque motivo trazer para a discussão a abstenção?
Certos pensadores da praça pública têm destilado o veneno contra a abstenção. Tem-se dito que é a opção dos que são contra o regime democrático. Outros tecem uma generalização diferente: quem se abstém são os preguiçosos, os que preferem um dia bem passado na praia ao supremo incómodo de se dirigirem a uma mesa de voto. A ladainha não tem fim. Os abstencionistas são apontados a dedo como os irresponsáveis que trazem o regime democrático pelas ruas da amargura. Desde que Soares foi reeleito para presidente da república, todos os presidentes têm sido eleitos com um número de votos inferior ao número dos abstencionistas. O que é, na maneira de ver destes arautos da democracia, um sério motivo de preocupação.
Fico aturdido com a queda para a generalização dos adversários da abstenção. Como é possível deitarem-se a adivinhar o significado da abstenção se nunca houve o mínimo esforço para, numa investigação séria, se indagar porque os abstencionistas preferem não ir a votos? Para os que dissertam sobre as putativas causas da abstenção, as conclusões não passam de presságios sem rigor. Tudo se resume a uma interpretação pessoal do que, no seu entendimento, concorre para que milhões de eleitores prefiram não exercer o seu direito de voto.
É um método falacioso. Adivinhar o que vai na cabeça das outras pessoas é uma tarefa delicada, mais própria dos bruxos de serviço que tentam salvar o Vitória de Guimarães de ir parar à segunda divisão. É intelectualmente desonesto avaliarmos o comportamento dos outros usando os nossos padrões mentais como bitola. Na maior parte das vezes, o resultado é uma asneira de todo o tamanho.
Ao contrário destes críticos, não vou tentar fazer extrapolações do meu comportamento para compreender o significado da abstenção. Apenas digo que sou um abstencionista militante como manifestação do meu descontentamento pelo sistema político. Por desagrado com a qualidade da governação, contra o medíocre desempenho da totalidade da classe política (governos e oposições, sem distinções, a todo o tempo). Não me revejo no comportamento abúlico de uma grande parte da população, também ela insatisfeita com o que a rodeia. Ainda que, eleição atrás de eleição, estas pessoas decidam colocar o seu voto no “mal menor”. Como se sentissem que se estão a desonerar de uma responsabilidade que advém de um dever de cidadania.
Sou abstencionista como um acto de protesto contra o regime. Sei que isto pode ser interpretado como uma intolerável manifestação anti-democrática. Não vou aqui contestar esse juízo (apesar de ser objecto de contestação). O voto é um acto individual, não um imperativo de consciência que nos leva a descarregar um dever social. Mal de nós se fossemos interiormente coagidos a votar apenas para nos libertarmos da carga social que sentimos se o não fizéssemos. O direito de voto tornar-se-ia numa inadmissível intromissão na esfera privada de cada indivíduo. Seria (mais uma) manifestação de como a liberdade individual, tão apregoada, é afinal condicionada pelos deveres de participação social que se impõem sobre cada indivíduo.
Melhor seria que os críticos da abstenção fizessem duas coisas. Primeiro, que respeitassem a vontade de quem se abstém. Da mesma forma que respeitam quem vota em branco, ou nos partidos A, B, ou C. Segundo, que patrocinassem uma investigação séria ao significado da abstenção. Talvez não lhes seja conveniente. Suspeito que os resultados não seriam nada simpáticos para a classe política. Levar a sério este exercício interpretativo da abstenção (sem a leviandade que é hoje dominante) seria um forte abalo telúrico para o sistema político.
Certos pensadores da praça pública têm destilado o veneno contra a abstenção. Tem-se dito que é a opção dos que são contra o regime democrático. Outros tecem uma generalização diferente: quem se abstém são os preguiçosos, os que preferem um dia bem passado na praia ao supremo incómodo de se dirigirem a uma mesa de voto. A ladainha não tem fim. Os abstencionistas são apontados a dedo como os irresponsáveis que trazem o regime democrático pelas ruas da amargura. Desde que Soares foi reeleito para presidente da república, todos os presidentes têm sido eleitos com um número de votos inferior ao número dos abstencionistas. O que é, na maneira de ver destes arautos da democracia, um sério motivo de preocupação.
Fico aturdido com a queda para a generalização dos adversários da abstenção. Como é possível deitarem-se a adivinhar o significado da abstenção se nunca houve o mínimo esforço para, numa investigação séria, se indagar porque os abstencionistas preferem não ir a votos? Para os que dissertam sobre as putativas causas da abstenção, as conclusões não passam de presságios sem rigor. Tudo se resume a uma interpretação pessoal do que, no seu entendimento, concorre para que milhões de eleitores prefiram não exercer o seu direito de voto.
É um método falacioso. Adivinhar o que vai na cabeça das outras pessoas é uma tarefa delicada, mais própria dos bruxos de serviço que tentam salvar o Vitória de Guimarães de ir parar à segunda divisão. É intelectualmente desonesto avaliarmos o comportamento dos outros usando os nossos padrões mentais como bitola. Na maior parte das vezes, o resultado é uma asneira de todo o tamanho.
Ao contrário destes críticos, não vou tentar fazer extrapolações do meu comportamento para compreender o significado da abstenção. Apenas digo que sou um abstencionista militante como manifestação do meu descontentamento pelo sistema político. Por desagrado com a qualidade da governação, contra o medíocre desempenho da totalidade da classe política (governos e oposições, sem distinções, a todo o tempo). Não me revejo no comportamento abúlico de uma grande parte da população, também ela insatisfeita com o que a rodeia. Ainda que, eleição atrás de eleição, estas pessoas decidam colocar o seu voto no “mal menor”. Como se sentissem que se estão a desonerar de uma responsabilidade que advém de um dever de cidadania.
Sou abstencionista como um acto de protesto contra o regime. Sei que isto pode ser interpretado como uma intolerável manifestação anti-democrática. Não vou aqui contestar esse juízo (apesar de ser objecto de contestação). O voto é um acto individual, não um imperativo de consciência que nos leva a descarregar um dever social. Mal de nós se fossemos interiormente coagidos a votar apenas para nos libertarmos da carga social que sentimos se o não fizéssemos. O direito de voto tornar-se-ia numa inadmissível intromissão na esfera privada de cada indivíduo. Seria (mais uma) manifestação de como a liberdade individual, tão apregoada, é afinal condicionada pelos deveres de participação social que se impõem sobre cada indivíduo.
Melhor seria que os críticos da abstenção fizessem duas coisas. Primeiro, que respeitassem a vontade de quem se abstém. Da mesma forma que respeitam quem vota em branco, ou nos partidos A, B, ou C. Segundo, que patrocinassem uma investigação séria ao significado da abstenção. Talvez não lhes seja conveniente. Suspeito que os resultados não seriam nada simpáticos para a classe política. Levar a sério este exercício interpretativo da abstenção (sem a leviandade que é hoje dominante) seria um forte abalo telúrico para o sistema político.
5.4.04
Uns políticos muito velozes
A TVI continua a prestar serviços inestimáveis ao país. A estação colocou uns repórteres no encalço das viaturas oficiais de ministros, secretários de Estado e até do líder do PCP. A tarefa era averiguar se estes automóveis dão o exemplo no cumprimento do código da estrada. Quando se aperta a malha repressiva aos automobilistas que ultrapassam os limites da velocidade, o exercício levado a cabo pela TVI parece oportuno.
A estação televisiva armou-se em detective das más virtudes da classe política e, colocando em risco a vida dos repórteres que se aventuraram pelas auto-estradas, lá tratou de descobrir quem prevarica. Entretanto não se sabe que o sindicato dos jornalistas tenha vindo a público censurar a imprudência, protestando por se ter colocado em risco a vida dos jornalistas que foram expostos a este acto arriscado.
Muitos foram os apanhados. Ministros, secretários de Estado e até Carlos Carvalhas. Todos têm a vertigem da velocidade nas veias. Todos fazem tábua rasa dos limites de velocidade que, ao que se saiba, são válidos para todos os cidadãos, independentemente das regalias que os seus cargos possam oferecer. A TVI quis mostrar aos portugueses que há cidadãos de primeira e os outros, a quem se aplicam as leis do país.
Pergunto-me até que ponto não estará a TVI conluiada com Saramago no apelo ao voto em branco. Ou em conluio, ou apenas inebriada pelo mais recente recado de Saramago, parece que a mensagem é a seguinte: povo, vejam como os políticos deste país se estão nas tintas para as regras do código da estrada. Vejam como depois vestem a capa da hipocrisia e aparecem, em pesarosas declarações públicas, a lamentar a elevada sinistralidade rodoviária, sempre relacionada com o excesso de velocidade. Povo português, estes políticos são senhores de uma palavra que não condiz com os seus comportamentos. Povo português, insinua a TVI, votem em branco porque esta classe política alimenta privilégios de excepção em actos que são alvo da perseguição policial quando cometidos pelo cidadão comum.
Não tenho a certeza que a TVI tenha razão. Se o país está atrasado, sem tem problemas profundos para resolver, se tem urgência em sair do buraco, é aceitável que os políticos tenham que governar a uma velocidade vertiginosa. O tempo escasseia para o futuro do país. A cada minuto desaproveitado é um futuro de bonança que se hipoteca para as gerações actuais, um mar de rosas que fica adiado para as calendas. Os governantes precisam de aproveitar todo o tempo disponível. Até nas deslocações oficiais que têm que fazer: porque gastar duas horas e meia entre o Porto e Lisboa, cumprindo o código, se se pode fazer o trajecto em menos uma hora? Tempo é dinheiro – melhor dizendo, tempo poupado nas viagens é tempo aproveitado nos gabinetes, a resolver diligentemente os problemas que atormentam o país.
Daí a seguinte proposta. Quem sabe se a competência dos políticos não é mais elevada porque eles não têm meios para se deslocarem ainda mais depressa? É melhor dotar o parque automóvel do Estado de Porsches e Ferraris, para a classe política perder menos tempo nas suas deslocações pelo país. E contratar antigas glórias do desporto automóvel nacional para motoristas, para elevar os padrões de segurança. Já agora, prever na lei uma excepção aos limites de velocidade em favor das viaturas oficiais, para que a polícia não tenha que fechar os olhos sempre que um destes veículos passa, esbaforido, acima dos 200 quilómetros/hora.
Dirão alguns que isto é caucionar um mau exemplo dado pelos políticos. Qual é a novidade nesta conclusão?
A estação televisiva armou-se em detective das más virtudes da classe política e, colocando em risco a vida dos repórteres que se aventuraram pelas auto-estradas, lá tratou de descobrir quem prevarica. Entretanto não se sabe que o sindicato dos jornalistas tenha vindo a público censurar a imprudência, protestando por se ter colocado em risco a vida dos jornalistas que foram expostos a este acto arriscado.
Muitos foram os apanhados. Ministros, secretários de Estado e até Carlos Carvalhas. Todos têm a vertigem da velocidade nas veias. Todos fazem tábua rasa dos limites de velocidade que, ao que se saiba, são válidos para todos os cidadãos, independentemente das regalias que os seus cargos possam oferecer. A TVI quis mostrar aos portugueses que há cidadãos de primeira e os outros, a quem se aplicam as leis do país.
Pergunto-me até que ponto não estará a TVI conluiada com Saramago no apelo ao voto em branco. Ou em conluio, ou apenas inebriada pelo mais recente recado de Saramago, parece que a mensagem é a seguinte: povo, vejam como os políticos deste país se estão nas tintas para as regras do código da estrada. Vejam como depois vestem a capa da hipocrisia e aparecem, em pesarosas declarações públicas, a lamentar a elevada sinistralidade rodoviária, sempre relacionada com o excesso de velocidade. Povo português, estes políticos são senhores de uma palavra que não condiz com os seus comportamentos. Povo português, insinua a TVI, votem em branco porque esta classe política alimenta privilégios de excepção em actos que são alvo da perseguição policial quando cometidos pelo cidadão comum.
Não tenho a certeza que a TVI tenha razão. Se o país está atrasado, sem tem problemas profundos para resolver, se tem urgência em sair do buraco, é aceitável que os políticos tenham que governar a uma velocidade vertiginosa. O tempo escasseia para o futuro do país. A cada minuto desaproveitado é um futuro de bonança que se hipoteca para as gerações actuais, um mar de rosas que fica adiado para as calendas. Os governantes precisam de aproveitar todo o tempo disponível. Até nas deslocações oficiais que têm que fazer: porque gastar duas horas e meia entre o Porto e Lisboa, cumprindo o código, se se pode fazer o trajecto em menos uma hora? Tempo é dinheiro – melhor dizendo, tempo poupado nas viagens é tempo aproveitado nos gabinetes, a resolver diligentemente os problemas que atormentam o país.
Daí a seguinte proposta. Quem sabe se a competência dos políticos não é mais elevada porque eles não têm meios para se deslocarem ainda mais depressa? É melhor dotar o parque automóvel do Estado de Porsches e Ferraris, para a classe política perder menos tempo nas suas deslocações pelo país. E contratar antigas glórias do desporto automóvel nacional para motoristas, para elevar os padrões de segurança. Já agora, prever na lei uma excepção aos limites de velocidade em favor das viaturas oficiais, para que a polícia não tenha que fechar os olhos sempre que um destes veículos passa, esbaforido, acima dos 200 quilómetros/hora.
Dirão alguns que isto é caucionar um mau exemplo dado pelos políticos. Qual é a novidade nesta conclusão?
2.4.04
As greves na Bombardier aproveitam a alguém?
Não tem sido pacífico o encerramento da fábrica da Bombardier na Amadora. Como não é nenhum episódio em que uma empresa fecha as portas. Mais ainda quando estamos em presença das “abomináveis” multinacionais, esses expoentes máximos do impiedoso neo-liberalismo que não pára de aleijar os direitos dos trabalhadores espalhados pelos quatro cantos do mundo. (Claro que a derradeira frase está carregada de sentido metafórico…)
No meio deste processo conturbado, o folclore do costume quando os sindicatos e os direitos dos trabalhadores são atirados para cima da mesa. Que a comunicação social continue enfeudada no discurso carregado de carga emotiva que é difundido pelos sindicatos, é coisa natural. O que me traz surpresa são algumas das atitudes dos representantes dos trabalhadores. Para começar, não consigo compreender a cegueira que os invade quando exigem do Estado português uma solução para este problema. Do que estão à espera? Que o governo decrete a nacionalização da Bombardier, com o objectivo de salvar os empregos ameaçados? Será esta a missão de um Estado, numa economia de livre iniciativa, agora que o século XXI já está em pleno vigor? Estarão estas almas paradas no tempo, como se fosse possível regressar aos saudosos tempos do pós 25 de Abril de 1974, com a ilegítima onda de nacionalizações que varreu o país e que ameaçou aniquilar a economia nacional?
Mais incompreensível ainda é a reacção do sindicato que comanda os trabalhadores da Bombardier. Ao longo de toda a semana que está a findar, decidiram fazer greve durante a tarde. Eis a pior forma de resolver o impasse em que estão colocados. Pergunto-me qual o objectivo útil desta greve: pressionar a Bombardier a voltar com os seus planos atrás e, deitando a mão à consciência, afinal ficar em Portugal? Será com esta paralisação (metade de um dia de trabalho, cinco dias de uma semana) que os trabalhadores estão a contribuir para que a Bombardier se arrependa de encerrar as instalações da Amadora?
Se existe algum efeito útil, é justamente o contrário do pretendido pelos trabalhadores. Basta assumir a posição de um “pérfido capitalista” encarregue de gerir os destinos da Bombardier. Com esta posição nada construtiva dos trabalhadores, não restavam dúvidas do caminho a seguir. No fim de contas, esta greve apenas vem confirmar que os canadianos estão certos quando decidiram encerrar as suas instalações portuguesas.
O episódio demonstra com clareza como tantas vezes a acção dos sindicatos é contra-producente. As reacções desabridas não convidam à conciliação das posições desavindas entre empresa e trabalhadores. E o emprego acaba por ser perder definitivamente.
Aceito que, na maior parte das vezes, a decisão da empresa está tomada de antemão. E que não será uma postura mais construtiva dos sindicatos que fará alterar as ideias de retirada por parte de quem detém a empresa. Mas estes exemplos produzem as suas consequências para o futuro. Há um cadastro sindical que perpassa para o exterior. Num tempo em que é tão importante captar investimento estrangeiro (quanto mais não seja pela criação de emprego que ele suscita), manter sindicatos tão politizados e desfasados do que realmente são os interesses de quem quer trabalhar apenas contribui para afastar esses investimentos para paragens alternativas.
Quem disse que os sindicatos existem para defender os interesses dos trabalhadores?
No meio deste processo conturbado, o folclore do costume quando os sindicatos e os direitos dos trabalhadores são atirados para cima da mesa. Que a comunicação social continue enfeudada no discurso carregado de carga emotiva que é difundido pelos sindicatos, é coisa natural. O que me traz surpresa são algumas das atitudes dos representantes dos trabalhadores. Para começar, não consigo compreender a cegueira que os invade quando exigem do Estado português uma solução para este problema. Do que estão à espera? Que o governo decrete a nacionalização da Bombardier, com o objectivo de salvar os empregos ameaçados? Será esta a missão de um Estado, numa economia de livre iniciativa, agora que o século XXI já está em pleno vigor? Estarão estas almas paradas no tempo, como se fosse possível regressar aos saudosos tempos do pós 25 de Abril de 1974, com a ilegítima onda de nacionalizações que varreu o país e que ameaçou aniquilar a economia nacional?
Mais incompreensível ainda é a reacção do sindicato que comanda os trabalhadores da Bombardier. Ao longo de toda a semana que está a findar, decidiram fazer greve durante a tarde. Eis a pior forma de resolver o impasse em que estão colocados. Pergunto-me qual o objectivo útil desta greve: pressionar a Bombardier a voltar com os seus planos atrás e, deitando a mão à consciência, afinal ficar em Portugal? Será com esta paralisação (metade de um dia de trabalho, cinco dias de uma semana) que os trabalhadores estão a contribuir para que a Bombardier se arrependa de encerrar as instalações da Amadora?
Se existe algum efeito útil, é justamente o contrário do pretendido pelos trabalhadores. Basta assumir a posição de um “pérfido capitalista” encarregue de gerir os destinos da Bombardier. Com esta posição nada construtiva dos trabalhadores, não restavam dúvidas do caminho a seguir. No fim de contas, esta greve apenas vem confirmar que os canadianos estão certos quando decidiram encerrar as suas instalações portuguesas.
O episódio demonstra com clareza como tantas vezes a acção dos sindicatos é contra-producente. As reacções desabridas não convidam à conciliação das posições desavindas entre empresa e trabalhadores. E o emprego acaba por ser perder definitivamente.
Aceito que, na maior parte das vezes, a decisão da empresa está tomada de antemão. E que não será uma postura mais construtiva dos sindicatos que fará alterar as ideias de retirada por parte de quem detém a empresa. Mas estes exemplos produzem as suas consequências para o futuro. Há um cadastro sindical que perpassa para o exterior. Num tempo em que é tão importante captar investimento estrangeiro (quanto mais não seja pela criação de emprego que ele suscita), manter sindicatos tão politizados e desfasados do que realmente são os interesses de quem quer trabalhar apenas contribui para afastar esses investimentos para paragens alternativas.
Quem disse que os sindicatos existem para defender os interesses dos trabalhadores?
1.4.04
A barbárie servida à hora do jantar
Acabava de chegar a casa. A televisão tinha sido ligada, estando sintonizada na TVI. Àquela hora passava o interminável noticiário nocturno. Sem aviso, apanhei a meio a reportagem que dava conta do mais recente ataque a soldados dos Estados Unidos estacionados no Iraque. Sem novidade. Desde que os Estados Unidos e seus aliados pousaram no Iraque não chega a passar um dia sem que sejam conhecidas baixas entre os seus militares. A novidade estava nas filmagens feitas após o ataque que ceifou a vida a quatro soldados.
Numa orgia de terror, num estrépito de insólita violência, dezenas de iraquianos deliciaram-se a profanar os cadáveres dos infelizes soldados. As imagens que vi, nuns breves segundos, tiveram uma intensidade tal que valeram por longos e angustiantes minutos. Imagens de cadáveres desfigurados, mutilados, meio carbonizados, vitoriosamente arrastados por uma multidão em delírio. Num esgar de contentamento pelas vidas que tinham deixado de existir, aquelas dezenas de iraquianos espumavam a sua revolta num longo grito de júbilo. Empunhavam os corpos destroçados de pessoas que minutos antes eram seres vivos, tal como eles, seus carrascos pós-morte, o eram naquele momento.
Imagens tenebrosas, com os restos mortais irreconhecíveis a serem ultrajados num arrepiante laivo colectivo de loucura. Como se a vida fosse uma minudência menosprezável. Choquei-me ao ver como os restos dos corpos de quatro pessoas eram violentados sem contemplações, desenhando o seu destino. É o preço da guerra, de qualquer estúpida guerra que leva o sacrifício da vida aos locais por onde ela se espalha.
Os mais cínicos poderão dizer que é o preço que os Estados Unidos estão a pagar pelo seu expansionismo militarista. Perante os horripilantes acontecimentos narrados pelas imagens, não me interessa saber se há ou não razão nesse juízo. Por maior que seja a antipatia que nutro pelos exercícios bélicos que pretendem exprimir a superioridade mundial dos Estados Unidos, não consigo relacionar com desdém esse messianismo moderno com o que se passou ontem algures no Iraque.
Foram imagens que me custaram a sair da cabeça. Foram comigo para a cama e foram elas que demoraram o sono. Como ignorar o esquartejamento público dos cadáveres, o festim com as várias partes dos corpos dilacerados, a sua exposição pública como troféus hasteados em postes de electricidade?
Não me recordo de ver imagens tão violentas e deploráveis como estas. O que me leva a indagar se a responsabilidade informativa que pesa sobre os ombros dos meios de comunicação social (em especial os que se servem da imagem como veículo) não deve obedecer a imperativos de recato quando as imagens testemunham semelhante violência gratuita e ensandecida. Não devia imperar um dever de responsabilidade em todas as televisões, levando-as a uma auto-censura em nome de princípios mínimos que são caros à dignidade do ser humano?
A opção foi a contrária. A de expor os corpos de soldados anónimos, mas afinal seres humanos a quem tinha sido roubada a vida de uma forma tão violenta. Como se fossem meras coisas (pois eram assim tratados pelos abjectos carrascos), prevaleceu o direito à informação que, hoje, é tantas vezes sinónimo de satisfação dos desejos mórbidos da audiência.
Agora percebe-se melhor o acto tresloucado dos iraquianos. Não vejo grande diferença entre quem é o autor material da barbárie que nos foi servida à hora do jantar e as pessoas que, enquanto veículos da informação e seus destinatários, se comprazem com essas imagens.
Numa orgia de terror, num estrépito de insólita violência, dezenas de iraquianos deliciaram-se a profanar os cadáveres dos infelizes soldados. As imagens que vi, nuns breves segundos, tiveram uma intensidade tal que valeram por longos e angustiantes minutos. Imagens de cadáveres desfigurados, mutilados, meio carbonizados, vitoriosamente arrastados por uma multidão em delírio. Num esgar de contentamento pelas vidas que tinham deixado de existir, aquelas dezenas de iraquianos espumavam a sua revolta num longo grito de júbilo. Empunhavam os corpos destroçados de pessoas que minutos antes eram seres vivos, tal como eles, seus carrascos pós-morte, o eram naquele momento.
Imagens tenebrosas, com os restos mortais irreconhecíveis a serem ultrajados num arrepiante laivo colectivo de loucura. Como se a vida fosse uma minudência menosprezável. Choquei-me ao ver como os restos dos corpos de quatro pessoas eram violentados sem contemplações, desenhando o seu destino. É o preço da guerra, de qualquer estúpida guerra que leva o sacrifício da vida aos locais por onde ela se espalha.
Os mais cínicos poderão dizer que é o preço que os Estados Unidos estão a pagar pelo seu expansionismo militarista. Perante os horripilantes acontecimentos narrados pelas imagens, não me interessa saber se há ou não razão nesse juízo. Por maior que seja a antipatia que nutro pelos exercícios bélicos que pretendem exprimir a superioridade mundial dos Estados Unidos, não consigo relacionar com desdém esse messianismo moderno com o que se passou ontem algures no Iraque.
Foram imagens que me custaram a sair da cabeça. Foram comigo para a cama e foram elas que demoraram o sono. Como ignorar o esquartejamento público dos cadáveres, o festim com as várias partes dos corpos dilacerados, a sua exposição pública como troféus hasteados em postes de electricidade?
Não me recordo de ver imagens tão violentas e deploráveis como estas. O que me leva a indagar se a responsabilidade informativa que pesa sobre os ombros dos meios de comunicação social (em especial os que se servem da imagem como veículo) não deve obedecer a imperativos de recato quando as imagens testemunham semelhante violência gratuita e ensandecida. Não devia imperar um dever de responsabilidade em todas as televisões, levando-as a uma auto-censura em nome de princípios mínimos que são caros à dignidade do ser humano?
A opção foi a contrária. A de expor os corpos de soldados anónimos, mas afinal seres humanos a quem tinha sido roubada a vida de uma forma tão violenta. Como se fossem meras coisas (pois eram assim tratados pelos abjectos carrascos), prevaleceu o direito à informação que, hoje, é tantas vezes sinónimo de satisfação dos desejos mórbidos da audiência.
Agora percebe-se melhor o acto tresloucado dos iraquianos. Não vejo grande diferença entre quem é o autor material da barbárie que nos foi servida à hora do jantar e as pessoas que, enquanto veículos da informação e seus destinatários, se comprazem com essas imagens.
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