31.1.05

Da qualidade das obras públicas

Refiro-me às pequenas obras que são o maior tormento de quem se desloca pelas ruas. Daquelas obras que, para os especialistas, são “pequenas intervenções”. Mas que para os transeuntes se transformam em grandes transtornos. As obras que esburacam as ruas ou os passeios, ou os dois ao mesmo tempo. Para colocar infra-estruturas de gás ou cabos telefónicos. Muitas vezes, para pasmo de quem frequenta com assiduidade essas ruas, duas ou três semanas depois de terem sido (mal) tapadas, voltam a ser esventradas nos mesmos locais. Sinal de que a programação é refinada: em vez de todas as intervenções serem planeadas de uma só vez, cava-se, tapa-se e volta-se a abrir a cova.

Os que se resignam com este estado de coisas que roça a negligência dirão que é um mal necessário. Sinal do progresso que traz mais bem-estar, há que esventrar as ruas para plantar as infra-estruturas que saciam a demanda de bem-estar. Incomodam-se com os buracos a céu aberto, sabem que têm que suportar um trânsito infernal, se forem utilizadores pedonais têm a consciência que os seus sapatos hão-de ficar imundos com a lama das obras. Mas resignam-se: é o preço a pagar pelo avanço da civilização.

Há quem não suporte as irritantes demoras das obras. Na espera para passar o local em obras, dá para perceber a produtividade de quem lá trabalha. O ritmo oscila entre o devagar e o devagarinho. Não admira: obras públicas são para ir fazendo. São pagas com o dinheiro de todos nós. Portanto, o dinheiro de ninguém. Os prazos são para ir cumprindo. Nestas intervenções aplica-se a máxima tão agrado do português preguiçoso: se não for para hoje, será para amanhã.

As obras têm que ser feitas nas horas de expediente, quando mais gente frequenta as ruas. Outra coisa não seria de esperar: os trabalhadores têm direito ao descanso nocturno, e nem os sindicatos alguma vez permitiram que este direito inalienável fosse beliscado. Como é sabido, há que proteger os interesses das minorias, mesmo que atente contra os interesses de uma vasta maioria. É a democracia no seu esplendor.

Não é só o tempo da obra que deixa o contribuinte de cabelos em pé. As coisas pioram quando se olha para a qualidade. O produto final é exasperante. Não se trata de saber se as infra-estruturas estão bem aplicadas. O pior é o que fica à mostra. A regra: onde antes havia asfalto passa a haver um amontoado desordenando de paralelepípedos. Onde antes os carros passavam sobre um liso tapete de asfalto, agora o desconforto do piso irregular. Há obras que são acabadas com tanta incompetência que apetece perguntar onde estavam os engenheiros que permitiram o remendo desqualificado, ou onde tiraram os seus cursos de engenharia.

Estas obras – e a forma como são concluídas – exemplificam o desrespeito pelos utentes das ruas. Afinal, o desrespeito por quem paga essas obras. Já não bastam os transtornos causados durante o longo período em que decorrem as obras, depois herdamos a lógica do remendo que estraga as ruas. Será o asfalto assim tão caro que não seja possível usar uma camada para tapar o buraco? Mesmo na hipótese absurda da utilização de paralelepípedos para tapar o buraco, não haverá a mínima diligência para fazer um remendo decente?

Conclusão elitista: é o mal dos trolhas que temos, mais preocupados em encher a pança com a cerveja durante as horas de trabalho, mais atentos às beldades que desfilam, sempre prontos a disparar os piropos mais alarves. Para isso estão qualificados. Para o que se espera que sejam as suas funções, é a incompetência que se mistura com a negligência. As brigadas municipais que fazem estas intervenções são o mostruário do que a função pública tem demais execrável: não ser chamada à pedra pela qualidade dos serviços (mal) prestados. Com o sacrifício de quem nada pode fazer para alterar as coisas – o destinatário dos serviços, que por acaso é quem os paga com os seus impostos. A privatização não lhes faria mal.

28.1.05

Um Alentejo de morte

Ainda a fúria dos elementos, na sua descontrolada natureza. Imagens de animais mortos, derrubados pela míngua de água. Emprestam à paisagem alentejana o odor pestilento da morte. Ovelhas sacrificadas por uma seca invernal que, dizem os entendidos, já há muito não se via. As rezes espalham-se, inertes, olhos esbugalhados, corpos enrijecidos, mirradas pela água que o céu se recusa a ofertar. A planície acobreada fora de tempo (porque é essa a cor habitual em tempos de estio) tinge-se com a cor negra dos animais que vão diminuindo o rebanho, perdidas as suas vidas.

O Alentejo entristece-se, e entristece-me. Não sou daqueles que tecem loas à paisagem alentejana. Há quem cante as linhas curvilíneas das planícies alentejanas, com as cores suaves que se sucedem com a passagem de testemunho entre as estações. Ensaiam-se cantos que enaltecem o voo majestoso da miríade de aves que por ali habitam. É no Alentejo que abundam os ninhos de cegonhas, enfeitando os topos de chaminés, de postes de electricidade, e do que mais aprouver às pernaltas aves desde que seja lugar cimeiro.

Concedo: há alguma beleza nas paragens alentejanas. Mas não uma beleza que se compare com paisagens mais a norte, com as agrestes montanhas de Trás-os-Montes, com a sucessão de montanhas que ilustram uma paisagem rude que teve que ser dominada pelo homem. Nem com o verde embriagante do Minho, comparado por alguns às paisagens arrebatadoras da Irlanda. Por estes dias em que a agressão dos elementos se faz notar, qualquer beleza que reste é toldada pelo ambiente de morte que se embebe nas imagens doídas de rezes espalhadas pelo chão. Sinónimo da inclemência dos elementos, que ceifam a vida onde ela não está preparada para lidar com os seus cruéis efeitos.

Mais a norte, notícias do frio impiedoso trazem imagens do gado sem pasto, sem água para se dessedentar. A água petrificada nos pequenos cursos testemunha as preocupações dos criadores de gado. Clamam por auxílios, quem sabe se por uma ajuda divina que traga a chuva tão desejada. Desesperam com os dias consecutivos de sol que acompanha o frio cortante que congela a pouca água que podia saciar a sede dos animais.

O desarranjo da natureza grita desde as profundezas. A cada ano que passa, as estações trazem excessos: ou Invernos com abundância de água, com cheias que ensopam os terrenos e são um manto de destruição; ou invernias no outro extremo, o da secura, que deixa as terras exangues de água e espalham a morte entre os animais. Dizem que são os humanos os responsáveis pela loucura dos elementos da natureza. Que é a ânsia do lucro fácil que nos empurra para a delapidação dos recursos, a práticas que vão degradando o ambiente. Que depois se vinga, através das alterações climáticas que nos apanham desprevenidos. Os fundamentalistas do ambiente sentenciam com prontidão: é o preço do progresso, a factura da afogueada cegueira do homem dominado pelo maldito capitalismo.

É pena que estas brilhantes sentenças não consigam de trazer de novo à vida os incautos animais cercados pela armadilha da seca. Agora compreendo melhor como é fácil, mas ineficaz, ser arauto da desgraça. Apontar a dedo os excessos do Homem como culpados pelos deslizes da natureza só de quem é tributário do ambiente como valor supremo. Como se o Homem tivesse que estar ao serviço do ambiente. Como se as inclemências da meteorologia fossem o produto imediato dos desmandos humanos – ou como se o humano pudesse ordenar aos elementos da natureza comportamentos condizentes com a ausência de desgraças.

Discussões estéreis. Marcam-me mais as imagens dolorosas de animais inocentes que foram consumindo as forças à medida que não encontravam gota de água para se saciarem. A elegia da morte nas imagens dos cadáveres das rezes espalhados pela planície alentejana ultrapassa tudo o mais que seja discutido, todas as culpas que alguns homens queiram atirar a outros homens, mais as defesas que estes tentem encontrar. Os pobres animais não são achados nestas discussões que perdem o seu sentido. E são eles as primeiras vítimas.

27.1.05

Deve o Estado subsidiar o sexo seguro?

Os economistas são criaturas esquisitas. Vivem num mundo cheio de cercas, o que os incapacita de fazer a ponte com outros conhecimentos. Acreditam que podem isolar certos aspectos da vida real, como se tudo funcionasse num laboratório estanque a outras influências que têm origem numa coisa simples e imprevisível – a acção humana. Com o advento da matematização da economia, a ciência desumanizou-se. É um círculo restrito para efabulações mil, como se tudo se reduzisse ao poder explicativo dos números.

Para minha surpresa, tomei conhecimento de um livro escrito por Steven Landsburg, com o título “More Sex is Safer Sex”. Vou tentar resumir as ideias principais. O autor utiliza os ensinamentos da economia e apresenta uma proposta para controlar a epidemia de SIDA. No entender de Landsburg, o Estado devia subsidiar as pessoas “sexualmente conservadoras”, aquelas que têm parceiro sexual certo e que não são dadas a escapadelas extra-matrimoniais. Este é o tipo de pessoas que, em teoria, corre menos riscos de contrair a doença. Se forem premiadas pela monogamia, pode ser a solução para inverter a tendência que testemunha uma ascensão vertiginosa da doença. Landsburg propõe que as pessoas cadastradas como “sexualmente conservadoras” que apresentem preservativos (supõe-se que usados…) recebam do Estado um prémio monetário por contribuírem para a diminuição de casos de risco. O autor não entra em detalhes sobre quem deve ser responsável pela atribuição do subsídio: se as farmácias (depois reembolsadas pelo Estado), ou se um qualquer departamento do ministério da saúde, ou se não teria que ser criado um ministério insólito – o ministério para os bons costumes…

Vou passar ao lado da lógica mecanicista de Landsburg – a crença de que os males que nos cercam são resolvidos pela intervenção milagrosa do Estado. Vale a pena dedicar alguma atenção à proposta. Primeiro, para tentar perceber o raciocínio do autor. Depois para tentar avaliar se os pressupostos são funcionais, pois de outro modo ela esbarra no obstáculo da impossibilidade.

Para Landsburg, as pessoas que se mantêm fiéis aos ditames da monogamia não correm riscos de infecção. Têm hábitos “salutares”, não saltando de parceiro em parceiro. Para evitar que elas se percam pelos descaminhos da tentação libidinosa, devem ser premiadas pelo sexo seguro. E quanto mais praticado for, maior é a compensação. Landsburg pressagia, com razão, que um homem atreito a casos extra-conjugais é um foco de disseminação da doença: arrisca no escuro e pode contagiar a parceira habitual. Adivinha-se: a educação moralista a atingir os píncaros como etapa preparatória deste esquema ardiloso. De contrário, como combater a tendência crescente de facadinhas no matrimónio que são ou não consentidas, dependendo da relação ser ou não vanguardista?

Mas Landsburg falha nos alicerces. Como seria possível provar a proveniência dos preservativos apresentados por um qualquer garanhão de serviço? A única opção, dirão os mais entusiasmados com a ideia, um atestado da parceira regular, certificando que aquele preservativo foi usado consigo. E não há lugar aos artifícios? Em países que se dedicam a usar a imaginação para ludibriar o próximo, aposto que só as empresas que fabricam preservativos ficavam a lucrar, sem qualquer visibilidade na diminuição da incidência da SIDA.

Imagine-se que esta solução era aproveitada pelo partido que ganhar as próximas eleições. Num país repleto de espertalhões, as filas à porta das farmácias para obter a recompensa pelo feito heróico dariam estórias mirabolantes. Muitos homenzarrões seriam dados a conhecer, com a sua capacidade vertiginosa para gastar preservativos. Adivinho uma competição entre machos que aproveitariam para aliar o útil ao agradável: na competição dos argumentos marialvas, saíram vencedores aqueles que arrecadassem o maior quinhão do prémio monetário. O nirvana masculino: homens pagos pelas prolíferas competências sexuais!

À escala doméstica, dois importantes óbices. Primeiro, o “malfadado” limite para o défice orçamental. Com a corda à garganta, os cofres públicos seriam esvaziados na proporção das pseudo-façanhas sexuais dos lusitanos machos. Segundo, num país onde o negócio da prostituição é um sucesso, desconfio que a medida seria paradisíaca para os empresários do sector – e ainda mais um filão para as profissionais do ramo.

Assim se vê o mundo fantasioso em que permanecem encerrados os economistas. Landsburg deve viver num mundo à parte, crente na boa vontade dos homens, ciente de que não há forma do primeiro dos humanos partir para a arte do engano, ludibriando os outros e enchendo-se de bem-estar à custa disso. A ingenuidade acomete os que teimam em viver com os pés bem distantes do chão. E deixa-os numa embriaguez sem sentido: não percebem que esta solução exigia mais intrusão do Estado na vida de todos nós, e discriminação entre os sexualmente elegíveis para o subsídio e os que preferem “saltar de ramo em ramo”.

26.1.05

O frio

Com alarme, o frio tomou conta dos dias que correm. Anuncia-se uma vaga polar, as pessoas são avisadas que os termómetros vão visitar escalas negativas. As pessoas acantonam-se dentro dos seus agasalhos. Escondem a boca nos cachecóis que refugiam a pele delicada dos lábios do frio cortante. Não escondem o desconforto. E receiam que correntes de ar gélidas assaltem os pulmões, que os temidos vírus tragam um estado febril que derrota a actividade quotidiana.

Mas o frio tem a sua beleza. Por estes dias em que o mercúrio desce para próximo de temperaturas negativas, parece que o ar entra mais límpido nos pulmões. Diria que o frio varre as impurezas que a poluição traz para a atmosfera. Diria que o ar fica mais leve, com a leveza que se condensa nas golfadas que se soltam da respiração, tingindo o ar com a pequena nuvem libertada pelo ar que expelimos.

Nestes dias de frio empurrado das longínquas paragens polares, apetece recuar no tempo em que fazia as viagens matinais para o trabalho, em direcção ao litoral onde o frio não caustica tanto. Com a manhã que se descobria, os campos desembrulhavam uma espessa camada de geada. Os primeiros raios de sol conferem uma tonalidade brilhante à geada que repousa sobre a relva escondida, como se fosse um manto de cristais de quartzo a reluzir sob a luz solar. Nas aldeias, ao longe, um fio mais escuro sobe desde as chaminés das casas. Sinónimo do frio que invadiu as casas, que levou os habitantes a usar as lareiras onde crepitam os toros de madeira incensados em troca do calor que invade os poros das paredes, trazendo o isolamento do frio.

Nestes dias de frio, tudo parece mais límpido. Do ar, à alvura que cobre os campos, ao próprio céu, que aparece num azul mais nítido, mais resplandecente. Mas as pessoas queixam-se quando a temperatura leva ao bater do dente. Como se queixam quando a invernia aponta a agulha para o outro lado dos rigores – em vez da secura que acompanha as temporadas gélidas, os Invernos húmidos em que a chuva é visita assídua e abundante. Até nisto somos um povo paradoxal, insatisfeito com os elementos naturais com que fomos agraciados: contrariados quando temos chuva em excesso e reclamamos por uns raios de sol, mesmo sabendo que eles são o prenúncio do frio polar; e contristados quando os rigores do frio glacial assentam lugar por dias a fio, clamando por umas gotas de chuva que quebrem a descompostura enregelada que consome por dentro.

Dizem os antigos que o frio conserva. Não sei se nos queriam comparar, humanos, à metodologia do fumeiro. Os adágios que se afirmaram à base da “sabedoria popular” começam a ser esquecidos com o rasgar das folhas do calendário. Agora que o frio nos visita, sem os rigores das temperaturas negativas frequentes no centro da Europa, protestamos. Estamos desconfiados das maleitas que podem vir depois. É só ver como as pessoas andam na rua, fazendo a vontade aos pressurosos avisos de quem de direito: enchumaçadas nos agasalhos avantajados, com o mínimo de pele à mostra, cachecóis, mais gorros, mais luvas, e um ar contrariado que é o compasso do tiritar que o frio transporta para os corpos.

Nem interessa que o sol nos contemple com uns radiosos raios que aquecem a têmpera durante algumas horas diurnas. Os narizes enrubescidos, as mãos que secam e ficam cobertas por um incómodo e inestético verniz de cieiro, a sensação de que o interior do corpo é assaltado por temperaturas que se acercam do ponto de congelação – sinais de que as pessoas não andam confortáveis com o frio que se instalou por uns dias.

Mais uma ilustração dos brandos costumes. Deito-me a imaginar o pânico que não seria se esta gente se mudasse, em colectivo, algures para um local onde a invernia se instala com mais impiedade. Se o alarme é tão audível e os termómetros apenas se aproximam dos zero graus, o que seria se baixassem na escala para um nível siberiano de frio? Entretanto, perdidas na apreensão do desconforto interior, as pessoas passam ao lado da beleza do frio.

25.1.05

Como é difícil ser João César das Neves!

Não é a primeira vez que me refiro a João César das Neves. O conceituado economista (chegou a ser o principal conselheiro económico de Cavaco Silva, quando este foi primeiro-ministro) tem-se destacado pelas crónicas beatas que publica às segundas-feiras no Diário de Notícias. Recordo-me de ter zurzido de César das Neves a propósito de uma dessas crónicas, onde ele imaginava que a mulher recuperou um papel quase casto que vem das leituras bíblicas.

Hoje apetece-me fazer um acto de contrição. Não que tenha voltado atrás no meu ateísmo metódico. Pus-me a pensar como deve ser difícil fazer o papel de pregador no deserto, como César das Neves desempenha ao disseminar a fé nos escritos em que uma candura militante vem ao de cima. Será difícil, porque César das Neves tem que remar contra ventos e marés. Tem que enfrentar toda a fúria e intolerância dos que desdenham da fé católica. Mas, ao mesmo tempo, invejo-o porque se sente, dos seus escritos impregnados de uma fé inabalável, que César das Neves é uma pessoa imensamente feliz na fé que o domina.

Como já o disse por mais do que uma vez, sou ateu convicto. O que não é cómodo em certas circunstâncias (lidar com a morte, por exemplo). Tento, contudo, manter ao alto um respeito pelas pessoas que vivem imbuídas de fé – qualquer que seja a religião. Ora como por cá a intimidade entre a religião católica e a história do país andam de braço dado, o catolicismo é o saco de boxe dos que, ateus ou agnósticos, não se coíbem de mostrar toda a sua intolerância em direcção dos que professam a religião católica. É uma manifestação execrável de intolerância, só equiparável aos descaminhos que vêm do historial da igreja, com a abjecta inquisição. Confesso que me causa mais espécie um ateu que destila todo o seu ódio em relação a um católico do que este, na exibição da sua candura dogmática. Mesmo estando mais próximo daquele do que deste.

É nestas condições que vejo em César das Neves um corajoso que está sempre na linha da frente na exuberância das suas ideias. Sem medo de dar o peito nas trincheiras que o opõem aos fanáticos ateístas, César das Neves prossegue a sua senda de divulgar a palavra divina, entrecortando algumas das crónicas com as indispensáveis passagens bíblicas que dão sustentação às suas teses. Para um ateu, as suas crónicas religiosas são repletas de uma ingenuidade que roça o impensável. De repente vem à recordação algo que escrevi quando manifestei a minha discordância com um escrito de César das Neves: perguntei-me então se César das Neves vive no mesmo mundo do comum dos mortais. A verdade é que algumas das suas parábolas exteriorizam um mundo ideal, o mundo que César das Neves gostaria que existisse. Nem vou discutir se esse mundo seria melhor do que o desgraçado mundo onde vivemos. A distância entre o que é desejável e o que é possível é o abismo inultrapassável que faz das prédicas de César das Neves um exercício da impossibilidade do ideal.

César das Neves é o palhaço de serviço para muitos intolerantes que pululam por aí. É fácil discordar do que ele escreve, quando associa a religiosidade aos aspectos mundanos da vida. Por mais fácil que a discordância venha ao de cima, evitar os exageros da crítica seria a receita adequada para não resvalar para excessos que desnudam uma intolerância fatal. Uma intolerância que faz perder a razão a quem critica. E que, por reflexo, enche de razão o criticado.

Não sei se a lhaneza típica de César das Neves é uma estratégia propositada para se expor aos críticos e acabar por levar a palma da razão, por derrota técnica dos adversários, motivada pela intolerância que expiam. Suspeito que é disto que se trata. Basta ler o artigo de César das Neves, ontem publicado no Diário de Notícias, onde dá réplica a uma virulenta crítica de Vasco Pulido Valente. Lê-se o artigo de uma ponta à outra, e vê-se que a atitude é a habitual dos católicos que não esquecem os mandamentos bíblicos: quando se é esbofeteado pelo adversário, há que dar a outra face. César das Neves fê-lo, ainda que pontue a sua resposta com uma indisfarçável superioridade moral escondida no cinismo.

Sei que no passado não fui meigo para com César das Neves. Através deste texto apresso-me a bater no peito – para usar mais uma metáfora do catolicismo. Por maior que seja a discordância sempre que João César das Neves atravessa a pena a dissertar sobre metafísica, a sua coragem é louvável. Ele sabe que a sua fé é motivo de chacota entre as facções do politicamente correcto. E mesmo assim não abdica das suas convicções um milímetro que seja, mesmo sabendo que se expõe à ridicularização dos intoleráveis que não conseguem respeitar as ideias que são diferentes das suas. É um cruzado da era moderna, um corajoso ímpar.

24.1.05

O debate Dove sobre “beleza real”: um contributo

Estão espalhados pela cidade outdoors que entram pelos olhos dentro. Trata-se de uma campanha publicitária imaginativa. Mas polémica. Ela estimula a discussão, ainda que seja pelas razões erradas. É uma campanha sobre algo que os publicitários que trabalham para a Dove decidiram apelidar de “beleza real”.

Sucedem-se imagens de três mulheres que, para os padrões convencionais da beleza que vende, não são paradigmas. Uma mulher avantajada, parecida com a Fafá de Belém, exibe a adiposidade que escorre corpo abaixo. Ela traja um vestido sem mangas e espreguiça os braços para cima, expondo a gordura que não se esconde nos seus braços. As linhas do corpo pressentem um peito flácido que descai sobre a linha de cintura. À mostra ficam uns quadris que se esticaram para o lado, mercê das hormonas ingratas ou de um destempero alimentar prolongado. O observador é desafiado a escolher uma de duas opções para caracterizar a senhora: “volumosa? Charmosa?”

Depois aparece uma idosa. A cara enrugada, marcada pela idade, um sorriso mais discreto. As rugas preenchem a face, como se fossem um mapa das vicissitudes da vida, ou o traço de uma vida descuidada que deixou correr o tempo sem evitar a acumulação das peles engelhadas. O desafio aparece com a opção entre “enrugada? Encantadora?” A sequência termina com uma mulher que é o mapa genético típico da mulher britânica – ruiva e sardenta. Uma cara impregnada de sardas, numa pele que, para os padrões habituais da beleza, está nos antípodas do apelativo. A pergunta surge: “cheia de pintas? Cheia de pinta?” A queda do “s” não é desprezível. É a larga diferença entre aceitar que aquela senhora carregada de sardas transporta consigo uma beleza inaudita e atestar que as pintas que lhe pintam a tez são a marca distintiva de alguma fealdade.

Esta história da “beleza real” é coisa de que nunca ouvi falar. Percebe-se a intenção da marca de sabonetes. Elevar a auto-estima das mulheres, de todas as mulheres, para que todas percebam que têm dentro de si algo de belo. Mesmo as que ficaram para trás na distribuição divina de beleza devem-se convencer que a beleza está nos seus próprios olhos, mais do que nos olhares alheios. Será essa a “beleza real”? Real, porque sentida por cada mulher que se fita no espelho em busca da pergunta mítica – espelho meu, espelho meu…Ou a “beleza real” convoca algo de mais profundo, a beleza interior que metamorfoseia pessoas que exteriormente muito devem à beleza em fontes donde ela irradia com uma força ímpar?

Não sou céptico em relação ao poder da beleza interior. Há pessoas bonitas pela riqueza que têm dentro de si. Mas, para que chegue a esta conclusão, tenho que as conhecer bem. De outro modo, resta-me o critério da beleza exterior. É aqui que retomo o contacto com os outdoors da Dove. Não conheço aquelas mulheres de lado algum. Logo, tenho que me ficar pelo critério do embelezamento exterior. Descontando o importante aspecto da subjectividade da beleza – conceito que empenha homens e mulheres em discussões que têm tanto de intermináveis como de estéreis – que ninguém me convença que alguma das “modelos” que posou para a fotografia está sequer nos limiares do mínimo da beleza. Seja ela real ou virtual.

A Dove falhou num aspecto. Vê-se que apostou numa dimensão internacional desta campanha. Há umas semanas vi uma reportagem na televisão que anunciava a aposta da empresa. Estas três mulheres eram apenas a amostra de uma campanha mais vasta – pelo menos no Reino Unido – que usa outros exemplos de beleza discutível que, pelos cânones da “beleza real”, serão indiscutíveis. As fotografias foram feitas no Reino Unido, com mulheres tipicamente britânicas. Seria melhor que dessem uma dimensão nacional, encontrando espécimes que testemunham a “beleza real” nativa.

Por cá podiam encontrar uma varina do mercado do Bolhão. A fotografia não pode retratar a incontinência verbal, nem os primores de educação. Mas pode captar as formas adiposas que se concentram na mulher atarracada – muita gordura por centímetro quadrado. O segundo exemplar seria encontrado no Portugal profundo, algures numa aldeia serrana, perdida onde a civilização tarda em chegar. Retratava a “beleza real” da senhora que se descuida e deixa crescer um buço que rivaliza com as barbichas imberbes de alguns varões. O exemplar final seria uma candidata ao jet-set nacional, já nos seus quarentas avançados, pele sujeita a variados liftingspara tentar restaurar um protótipo de beldade que nunca terá passado dos mais remotos sonhos. A senhora esconde-se atrás de uma máscara de artificialidade, acreditando que os cirurgiões são prestidigitadores que têm a poção mágica que implanta a beleza nunca encontrada. Os cosméticos são a espessa capa que tenta trazer essa beleza perdida para outras caras. Lembro-me, de repente, de Edite Estrela.

Teríamos então uma campanha adaptada à realidade nacional. E o debate sobre a “beleza real”, que a Dove quer promover, seria mais ajustado à “beleza real” que se cruza connosco no quotidiano.

21.1.05

Do alto da sapiência, a intolerância

Acabo de ler o editorial do jornal A Capital, lavrado pelo punho de Luís Osório. Disserta sobre os quatro anos que se avizinham, sob a “liderança mundial” de George W. Bush, com a e incerteza e os extremismos que lhe são consequentes. Termina com esta sentença:

Milhões de americanos elegeram Bush, e por isso celebraram nas avenidas a sua vitória contra tudo e contra todos. Perdoai-lhes porque não sabem o que fazem”.

Releio o editorial de uma ponta à outra. Concordo com tudo, até que me detenho na última frase. Deplorável intolerância, para mais quando vem de quem propaga a moralidade da democracia. Há maior intolerância, maior desdém pelos valores democráticos, do que sugerir a ignorância de um povo que fez a sua escolha nas urnas?

O que diria Osório se, no dia 21 de Fevereiro, depois da previsível vitória dos seus amigos socialistas, alguém escrevesse: “perdoai estes portugueses insanos, que não sabem o que fazem”?

Recordações de um advogado que nunca o chegou a ser

Os advogados são uma marca de água sempre presente diante dos nossos olhos. Não há semana em que não deixem a sua peugada. Voltaram a emergir com o início do julgamento do processo Casa Pia. A cada sessão que se passa, mais e mais entrevistas aos advogados, que soltam a palavra arrevesada em que são férteis. Junta-se o ambiente típico da campanha eleitoral: os advogados são peças proeminentes entre a classe política. A trindade que me leva hoje a vasculhar no baú das recordações completa-se com uma reportagem publicada na revista Focus sobre os escritórios de advogados mais famosos e milionários.

Por acidente cursei direito. À custa de muitos sacrifícios, nunca deixei nenhuma disciplina atrasada. Sempre senti que o direito não era a minha vocação. Mas como não sabia qual era a alternativa, fui fazendo o meu percurso dentro do direito. Sempre era melhor ter alguma coisa na mão do que sair do curso de direito em troca do desconhecido. Os cinco anos do curso sucederam-se sem que descobrisse a tal vocação. O direito era um corpo estranho, um estorvo ao intelecto.

Completado o curso, a indefinição manteve-se: com o canudo entre mãos, o que fazer dele? Resposta: o estágio de advocacia. É, aliás, a reacção óbvia dos leigos que olham para os licenciados em direito: que tem esta licenciatura é advogado. Uma e outra coisa confundem-se numa só. À falta de opções, embarquei na aventura que durou ano e meio. Encontrado um advogado que me recebesse como estagiário, iniciei-me nas lides. Acompanhei-o em julgamentos, mergulhei nos processos que ele tinha entre mãos, tentei inteirar-me das manobras processuais e das tácticas que são o caminho para o sucesso que traz mais clientela. Ao fim de dezoito meses, apenas a convicção reforçada de que não tinha nascido para ser advogado. Já sabia que se exige uma vocação especial para interiorizar o raciocínio jurídico. Mas a vocação é ainda mais acentuada para quem deseja ser advogado. Cheguei ao final do estágio e descobri um curioso paralelismo vocacional: para ser advogado é fundamental possuir-se a vocação, tal como sucede com os padres.

Não bastava a ausência de vocação para me afastar do mundo da advocacia. Pior foi a têmpera dos profissionais que enxameiam a actividade. Foi o repositório de artimanhas e falcatruas que me afastou da profissão. Sabia que a ausência de vocação podia ser colmatada com esforço e alguma capacidade. Inultrapassável era o clima de mesquinhez que abunda entre os advogados. Senti que os meios, todos os meios, justificam os fins. Fui testemunha das manobras mais aviltantes só para fazer boa figura junto dos clientes que lhes dão o sustento, ainda que essas manobras tivessem como preço a quebra de solidariedade com os seus pares. Assisti à desfaçatez com que compromissos assumidos eram esquecidos em tribunal. Pelo muito que me foi dado a ver, fiquei com a impressão que no selvático mundo da advocacia vale tudo, mesmo tirar olhos.

A hipocrisia era a nota dominante nas relações entre advogados. Cheios de salamaleques (quando dois advogados se abeiram de uma porta, é um espectáculo ver as deferências em que se desfazem para saber quem passa primeiro), bazófia quanto baste, intimidades cultivadas que, à porta do tribunal, eram substituídas por um sentimento odioso que fazia do advogado adversário um inimigo a abater com todas as armas – as mais impensáveis que alguma vez podia imaginar. Pude verificar que as tácticas desleais aumentavam em função da menor idade dos causídicos. Os advogados mais velhos eram cultores de um sentimento de lealdade, tinham mais respeito pelos deveres éticos da profissão e do relacionamento pessoal. Os mais novos – e quanto mais novos, pior – faziam tábua rasa destes esteios da dignidade pessoal. A única certeza que se podia ter é que não se podia contar com nada, devido ao arsenal de manobras de esperteza saloia que vinham ao de cima.

Passaram mais de dez anos desde que terminei o estágio e imediatamente suspendi a inscrição na Ordem dos Advogados. Quando regresso ao escritório onde estagiei, o advogado queixa-se que as coisas estão ainda piores do que “no meu tempo”. O tempo vai passando e os advogados mais velhos, aqueles que ainda respeitavam alguma nobreza da profissão, vão passando à reforma.

Olho para trás e não me arrependo da opção. Algumas pessoas dizem-me que talvez esteja errado, que hoje estaria a ganhar mais dinheiro. Mas, lá está, o dinheiro não é tudo na vida. Até é possível que essa profecia se cumprisse. À custa do meu bem-estar interior, da minha sanidade mental. Era um custo muito elevado a pagar. Em vez disso, é preferível empobrecer alegremente como professor universitário.

20.1.05

Patética – a estirpe de Nuno Cardoso

Um minuto e trinta segundos, disse o jornalista. O tempo que demorou a comunicação lida por Nuno Cardoso, após ter sido implicado em negócios escuros com o FC Porto que terão lesado o erário municipal em três milhões de euros. Ao fim de um longo minuto e meio de palavreado inconsequente, o engenheiro ainda conseguiu arrebatar uns tímidos aplausos de alguns leais apaniguados que foram convocados para fazer companhia aos jornalistas. Para os que acham que este senhor é um equívoco na política, este foi um episódio para reforçar convicções.

Em vez de se defender das acusações, o engenheiro demonstrou queda para argumentista de filmes fantasmagóricos de quinta categoria. Esboçou cenários incríveis, levando a palma a correligionários que no passado se distinguiram na arte da teoria da cabala. Imperturbável na sua imbecilidade, o engenheiro revelou inconfidências: está a ser vítima de uma cabala política. Pior ainda, o governo manipulou a Polícia Judiciária no momento certo, agora que a campanha eleitoral vai entrar no seu auge. Será um arranjinho para desviar as atenções, para enlamear o seu excelso nome e prejudicar as expectativas eleitorais do seu partido. Há quem não tenha noção do ridículo!

O engenheiro devia ter enveredado pela arquitectura. Os cenários que teceu são tão imaginativos que daria, decerto, um excelente arquitecto. Teria enriquecido ao rivalizar com Siza Vieira e colegas, e ter-nos-ia poupado à lamentável figura que faz como (eterno) aprendiz de político. Tudo se resume a uma sequência de acontecimentos: ele lidera, de longe, as sondagens para as eleições autárquicas; tudo indica que venha a derrotar o actual presidente da câmara; este é amigo do peito do ministro da justiça, que por sua vez é o número um das listas de candidatos ao parlamento pelo Porto; este, por sua vez, pressionou para afastar das listas um suserano do tribalismo azul-e-branco, atirando mais achas para a fogueira da inimizade entre o presidente da câmara e o clube mais representativo da cidade. Cardoso é apanhado no meio deste fogo, segundo a sua teoria conspirativa. Para ser atingido pessoalmente, e para arrastar o “bom-nome” do seu partido no mesmo barco.

Se era necessário uma confissão assinada de como os políticos contemplam a hipótese de interferir com a justiça, o engenheiro lavrou a sua assinatura com caneta de ouro. Foi incapaz de perceber que as acusações que faz se voltam contra ele próprio: ao acusar os outros de manipulação na investigação policial, acaba por confessar que se fosse poder não hesitaria em proceder da mesma forma. Revelador!

A decência devia aconselhar quem aconselha os políticos a evitar estas figuras tristes. Pela parte que me toca, que sempre vi em Cardoso um equívoco que só rivaliza com a sua estatura, o acontecimento fez-me soltar sonoras gargalhadas. A desorientação é tanta que o engenheiro sugeriu que se podia refugiar na imunidade que a inclusão nas listas de candidatos a deputados lhe confere. Ficámos a saber que a imunidade parlamentar começa a funcionar a partir do momento em que alguém é candidato a deputado. Ou seja, antes de assumir as funções (se é que as vai assumir), já a mão generosa da imunidade parlamentar se aplica. Há ocasiões em que uma pessoa ganha mais em estar calada…

Este pato-bravo da política é um exemplo acabado de inabilidade. Representa o arrivismo, exibe a plumagem da mediocridade – e de como ela é premiada pela sociedade bafienta que somos. Após a declaração assombrada que leu, o engenheiro já teria sido enquistado pelo seu partido, caso este fosse um partido normal, caso este fosse um país normal.

Não estranha que nada disto venha a suceder. Exemplo da esperteza saloia que é o papel timbrado da política rasteira, colou-se ao FC Porto e à eminência parda que o lidera. Sabe que este estratagema é como o código postal – mais que meio caminho andado para regressar ao cadeirão do poder na Avenida dos Aliados. Não espantará que uma grande parte do eleitorado, ferido pela cegueira clubista, escolha o abstruso engenheiro para permitir que as coisas voltem à normalidade: que o Papa volte a exercer a sua magistratura de influência.

19.1.05

Dom da palavra

Directamente da boca de uma colega de trabalho, as seguintes pérolas de sintaxe:

houveram montes de reuniões”.

As grandes questões que se levantam é esta (…)”.

(Realçados da minha autoria)

Fiquei deliciado. Com a pesporrência de quem quer brilhar pela oratória e acaba traído por uns valentes pontapés na gramática.

Dei comigo a pensar, na viagem para o Porto: temos moralidade para exigir rigor dos alunos, quando alguns dos seus professores se atrapalham com o mau uso da língua portuguesa?

Os gatos também têm nacionalidade!

Estamos sempre a aprender. Todos os dias. Se estivermos atentos às notícias, damos conta que a comunicação social é cada vez a antítese da pedagogia da informação. Último episódio: os gatos portugueses têm um desempenho exemplar nos concursos internacionais. Nas exposições que tecem loas à beleza dos gatos, os exemplares lusitanos portam-se com garbo, não envergonhando a bandeira da cruz armilar.

Deduz-se, portanto, que os gatos não escapam ao estigma da nacionalidade. Os gatos portugueses são diferentes dos espanhóis, dos gregos, dos paquistaneses, dos japoneses e dos chilenos. Todos os gatos terão a sua identidade própria consoante o local onde nasceram e onde foram criados. Um pouco como os humanos: neles é possível encontrar idiossincrasias da nacionalidade. Indo mais longe, é fácil detectar identidades individuais alteradas pelo fenómeno da socialização. É o que acontece com emigrantes que se enraízam na comunidade de acolhimento. Ao fim de alguns anos, moldam-se aos traços identitários do local para onde emigraram. Recebem essas influências, bebem inspiração nas pessoas que passam a ser o seu entorno, aculturam-se.

Desconhecia que este fenómeno atinge os gatos. O que me deixa perplexo é saber que há pessoas que vão no engodo dos jornalistas patrioteiros que não se cansam de enaltecer as virtudes da portugalidade. Que o façam em relação aos patrícios que por aqui habitam, e que fazem o país que somos, ainda se entende. A auto-estima começa-se a construir dentro de cada um. Este aspecto é mais importante em tempos de crise de confiança, em que um país mergulha no divã do psiquiatra em busca de um sentido que levante a auto-estima. Estranho é o exercício que estende a façanha aos gatos. É como afiançar que os gatos lusitanos são nostálgicos, tristonhos, abúlicos, com tendência para caírem em extremos (vai um passo só da euforia ao pessimismo), empenhados em passar ao lado do essencial para se concentrarem apenas no acessório, adiando o futuro.

Quem sabe se a necessidade de elogiar as façanhas dos gatos portugueses é a ilustração da auto-comiseração em que caímos nem se sabe bem há quanto tempo. Na ausência de feitos humanos que permitam engomar o brio nacional, agarram-se as oportunidades encontradas de forma aleatória. Hoje a notícia era sobre os gatos nacionais, amanhã pode ser de cavalos, depois de amanhã sobre as características brilhantes dos porquinhos-da-índia criados entre portas. Ao que parece, a genética dos bichos é susceptível de modificação por influência do ambiente envolvente. As idiossincrasias nacionais estendem-se à maneira de ser dos animais, subvertendo a genética que, pensava-se, era o factor preponderante em animais irracionais. Mas, como avisava no início deste texto, estamos a aprender todos os dias. Nem que seja com os maiores disparates de que há notícia.

São estas as manifestações de nacionalismo primário. Emergem em exibições de garbo patriótico, como se fosse necessário fazer a distinção entre nós e os outros, os que habitam para lá das fronteiras que nos delimitam do estrangeiro. Há meses foi a histeria das bandeiras, que durante umas semanas elevou a vaidade nacional ao máximo expoente desde que tenho recordações da existência. Depois do episódio, a letargia instalou-se de novo. Corporizando o que afinal somos: gente de brandos costumes que vai de um extremo ao outro enquanto se consome um breve instante. Tanto zurzimos uns nos outros, tanto achamos que somos do pior à face do planeta, como no momento seguinte temos disponibilidade para descobrir que “somos os melhores do mundo”.

O brio de quem não se cansa de enfatizar os feitos patrióticos é coisa patética. A derradeira demonstração: a notícia de um rapaz que esteve três semanas desaparecido após o maremoto, algures na Indonésia. Conseguiu sobreviver, por milagre. Como envergava uma camisola da selecção nacional, logo houve quem fizesse disso o principal foco da notícia. Dando a entender que o milagre se consumou porque o feliz rapaz tinha consigo a camisola da “selecção de todos nós”. Estes arautos do patriotismo caseiro não enxergam o ridículo que toma conta deles. São patrioteiros foleiros.

Está-se mesmo a ver: a especial protecção divina estava na camisola vermelha e verde que o rapaz vestia. Afinal deus não é brasileiro: parece que é português!

18.1.05

A névoa gentia

A aurora é ainda uma promessa. A luz da noite teima em prolongar-se, nestes dias de invernia em que a penumbra se demora na cidade. A caminho da manhã que tarda, a névoa vai baixando. Goteja, nas suas gotículas quase imperceptíveis. Toma conta da atmosfera, tingindo de escuro a demorada noite, adiando a luz do dia.

A névoa anuncia-se de mansinho. Chega, quase indelével, assenhoreia-se do horizonte. Cobre o céu de um espesso manto que asperge o solo com gotas finas. Ao longe, diria que é um manto que abraça a cidade, asfixiando-a com a humidade que entra nos ossos e deixa uma sensação desagradável. É a névoa que faz a ponte entre a noite que se desprende e a luz da alvorada que vai irrompendo com timidez, furando a barreira de chumbo conquistada pela névoa teimosa.

As gotículas deixadas para trás dançam, desordenadas, ao tombarem no chão. Vagueiam sem sentido, desnorteadas, como se sentissem perdidas ao serem lançadas no solo pela névoa que se abateu. Pousam sobre as árvores, pintam o chão com um molhado escorregadio, adensam a humidade que carcome os ossos corroídos pela idade. É um bilhete-postal da cidade, esta névoa que dá os bons dias à cidade que acorda estremunhada.

Os elementos atraem-se, como se fossem dotados de um mágico íman oferecido pela natureza. Atraída pela água do rio, a névoa debate-se com mais força na zona ribeirinha. Acerca-se das águas do Douro e cinde-se com elas, deixando o tempo passar numa osmose gratificante. O Douro esconde-se na névoa cristalina, faz-se com o tempo que transcorre uma umbilical massa só feita da água do rio onde pousa o gotejar agigantado da névoa. Ela vem repousar no rio, fazendo dele o seu leito onde se demora por umas horas. Até que o sol a vença, diluindo-a nas águas doces que são o seu leito final.

O Porto é uma cidade estranhamente cinzenta. Não que o breu cinzelado traga fealdade à cidade. É lugar-comum sentenciar que a escuridão traga os vestígios de beleza que restam inertes numa paisagem. Por aqui a excepção atinge o expoente máximo com a beleza que fala em uníssono com o cinzento que domina a paisagem. O cinzento das pedras gastas, da granítica cidade que se ergueu a pulso num terreno acidentado; o cinzento dos nevoeiros que presenteiam uma luz mágica a uma cidade que desperta de um sono altivo.

Uma acalmia estranha vem com a névoa. O vento suspende-se, como se fosse possível pará-lo no ar, torná-lo inerte enquanto a névoa é senhora do tempo. Muitos acham que a névoa pinta um quadro de tristeza, com a penumbra doentia que persiste. É causa de indisposição matinal para quem apenas se alegra com as cores radiosas do sol nascente. Parecem ignorar a magia que se esconde nas sombras trazidas pela névoa, no estertor que se afivela enquanto a névoa se demora sobre a cidade. Errantes, os que prestam vassalagem aos tons escuros da névoa olham para além das cores brilhantes que alegram as almas cansadas do agasalho invernal.

Os outros, sem fadiga da invernia, acostumam-se aos elementos, aprendem a conviver com eles, penhoram a beleza timbrada com a mistura de tons escurecidos com que a cidade se tinge. A névoa é um ingrediente essencial desta paisagem que se mistifica. Já o disse atrás: esta névoa que adensa um manto feito de penumbras desvela um ambiente mágico feito das sombras que se deitam sobre a cidade.

17.1.05

A liberalização do comércio de têxteis é negativa?

A União Europeia deu o primeiro passo, quando celebrou acordos com a Índia e o Paquistão, franqueando as portas do mercado europeu aos têxteis destes países. O “golpe de misericórdia” foi dado no início deste ano, com a total liberalização do comércio internacional de têxteis. Na prática, os têxteis chineses podem agora invadir o mercado europeu.

Por cá, os representantes do sector começaram a desvelar o novelo das ameaças. Não são os empresários que protestam. Num mundo de globalização crescente, eles vêm a liberalização comercial com bons olhos. Será um pretexto para desconcentrarem parte da sua produção, enviando-a para a China (e outros países asiáticos) onde os têxteis podem ser produzidos em condições mais favoráveis. Não é crime um empresário procurar o local onde encontra as melhores condições de produção. Ainda que se argumente que os empresários têm que carregar o fardo da responsabilidade social dos empregos que criam (ou que fazem desaparecer), é compreensível que olhem para os seus interesses. Se os trabalhadores velam pelos seus interesses acima dos interesses da entidade para quem trabalham, porque devem os empresários ter um comportamento diferente?

São os sindicatos do sector que mais afirmam a sua perplexidade. Vêm na liberalização do comércio uma séria ameaça a milhares de postos de trabalho. Não há surpresa nesta atitude, porque os sindicatos existem para fazer vingar os interesses dos trabalhadores. Se a liberalização comercial é a porta de entrada de têxteis mais competitivos do que os nacionais, o cenário é sombrio para quem está a trabalhar no sector. Até porque se adivinha um movimento de deslocalização de algumas empresas nacionais para o continente asiático. Como os empregos não acompanham esta deslocalização (o trabalho é rígido, por comparação com o capital), o fenómeno do desemprego paira como ameaça latente sobre a cabeça de quem trabalha no sector.

Dois comentários finais. Primeiro, esta gente continuará eternamente dependente de esquemas de proteccionismo estatal. Recusam-se a aprender a lição da livre concorrência, a lição que ensina que quem tem unhas deve tocar a guitarra – e não afastar os mais competentes para dar lugar à competitividade artificial de quem é generosamente protegido pelo Estado. Os mais eficazes deveriam vencer a batalha concorrencial. Raramente sucede, porque as portas travessas do proteccionismo estão sempre abertas para fazer vingar os ineficazes. Com uma ilação óbvia: o desperdício de recursos, coisa irracional quando se ensina que os recursos são escassos. Sem esquecer outra consequência negativa: para permitir a produção dos ineficazes (uma escassa minoria) penaliza-se a larga e silenciosa maioria dos consumidores. Aqui está a essência da democracia, na sua verdadeira negação!

Segundo, a ironia do destino de ver os sindicatos defenderem soluções que negam a possibilidade de países mais pobres se aproximarem dos mais ricos. Ironia do destino, porque os enfáticos sindicalistas que por aí andam não hesitam em censurar a “desenfreada globalização”, acusando-a de todos os males que afectam o mundo. Não se cansam de apregoar que é o capitalismo selvagem, o esteio dessa globalização desregulada, que alimenta as diferenças de riqueza entre ricos e pobres. Quando têm uma oportunidade para provar as suas convicções, alinhando ao lado dos interesses dos países mais pobres, eis que caem numa contradição absoluta. Afinal estão mais preocupados com a preservação do emprego em Portugal, um país bem distante das carências de países pobres. Ignoram que a abertura comercial será um caminho necessário para que esses países possam vingar no mercado internacional, dando passos para sair da situação de subdesenvolvimento em que estão mergulhados.

Sempre ouvi dizer que a concorrência não faz mal a ninguém. Quem teme a concorrência admite que não tem lugar num mercado sem protecções. Muita da pobreza que por aí grassa tem esta origem. Por isso faz sentido denunciar estes sindicatos autistas: por combaterem uma medida que permite um aumento do bem-estar dos países mais pobres (dando assim provas que a solidariedade é uma palavra vã na boca desta gente); e por provarem que preferem um mercado protegido, uma coutada garantida às empresas domésticas, mesmo que isso signifique o prejuízo dos consumidores que têm que pagar preços mais elevados. Convém não esquecer que falamos de têxteis, longe de serem um bem supérfluo. Quanto mais caros forem, mais penalizados são os mais pobres.

Assim ficam demonstradas as elevadas “preocupações sociais” dos sindicatos.

14.1.05

O corpo feminino, objecto?

No ginásio está sintonizado um canal de televisão que só passa telediscos. Por coincidência ou não, à hora que lá vou passa uma sequência de telediscos que põem em destaque a beleza do corpo feminino. São corpos de mulheres que desfilam com o mínimo de roupa indispensável. Corpos que percorrem o ecrã em câmara lenta, para se apreciarem as curvas delgadas que despertam as hormonas masculinas. A música que acompanha as imagens é um simples adereço.

Um destes dias a minha monitora, uma jovem brasileira, insurgiu-se contra o aproveitamento do corpo feminino. Disse de sua justiça contra a banalização da mulher que se mostra sem preconceitos, fazendo as delícias dos homens. Protestou contra a “coisificação” da mulher quando o seu corpo se desnuda com uma facilidade que faz esquecer o mito do pecado original. Isto aconteceu num dia em que passavam imagens deveras atraentes, que prendiam meia dúzia de marmanjos ao ecrã, num intervalo entre dois exercícios físicos. Talvez por ter reparado no imbecil embevecimento dos comparsas de ocasião (entre os quais o escriba se inseria), ela não conseguiu calar a sua revolta.

As imagens que enchiam as vistas eram de mulheres esbeltas que se mostravam de forma provocatória numa praia. O ambiente lembrava as praias das Caraíbas, com as suas areias finas e brancas e a água do mar de um azul-turquesa esplendoroso. As imagens da idílica paisagem entrecortavam a passerelle de corpos femininos que se sucediam, biquinis reduzidos à mínima expressão, poses provocantes, olhares penetrantes em jeito de desafio. Os olhos masculinos não podiam ficar indiferentes. Tanto que por momentos nos tínhamos esquecido do objectivo de frequentar um ginásio…

A voz de protesto da brasileira ecoou nos nossos ouvidos. Alguns desmobilizaram, assobiando para o ar. Já não me recordo com exactidão qual foi o comentário que ela fez. Sei que, com a espontaneidade de um elefante que se passeia, desajeitado, numa loja de porcelanas, retorqui: “pois, então no Brasil é que isto é mais evidente”. O que fui dizer! Esquecendo-me por momentos de que ela era brasileira, e que tinha acabado de vociferar contra o aproveitamento do corpo feminino, aquelas palavras foram as mais inoportunas. Por delicadeza, escusou-se a responder ao meu comentário. Mas não escapei a um olhar de indignação disparado em minha direcção.

Será verdade que estamos num tempo em que a desvergonha impera levando à transformação do corpo feminino numa coisa? Será o reflexo da materialização da mulher, como se ela fosse cada vez mais um objecto? Francamente, não me apetece contribuir para este peditório tão caro às feministas empedernidas. Apetece apenas dizer isto: o corpo feminino é mais belo que o corpo masculino. É natural que haja mais “mercado” para o acto de desnudar corpos femininos. Será que os espécimes que mostram os atributos que a mãe natureza generosamente lhes dotou foram forçadas a desfilar num estado próximo daquele em que vieram ao mundo? Será a nova forma de escravatura – estendendo conceitos para além do razoável, como está tanto na moda?

Poderão dizer-me que o dinheiro consegue tudo. Perante a necessidade há mulheres que não hesitam em mostrar ao mundo a beleza dos seus corpos. Por mais aviltante que o dinheiro seja rotulado, há um aspecto que está por cima dessa apreciação ética: o livre arbítrio de quem aceita posar para as câmaras, para deleite dos homens que não resistem ao encanto de um corpo feminino.

Não sei se será coincidência: em regra, a indignação contra a ideia de corpo feminino como objecto vem daquelas que carregam o fardo de celulite, das que deixaram perdido algures no passado a beleza do corpo, das que nunca foram bafejadas pela generosidade divina da estética da sensualidade, das que nunca poderiam ser convocadas para desfilar do desnudamento dos corpos, das intelectuais que se perdem em minudências para esconder frustrações íntimas, das feministas militantes, das que carecem de vitamina P. Peso na consciência, ou pura dor de cotovelo?

13.1.05

Toxicodependência

Acordei assaltado por imagens de toxicodependência. Nunca fui consumidor de drogas. Mas já lidei de perto com elas. Não tão de perto quando fui testemunha de experiências de desconhecidos, mais de perto quando elas tiveram convivência com pessoas amigas. De uma forma ou de outra, guardo imagens que resguardam uma violência sem rosto que se esconde atrás da toxicodependência.

De repente vêm à memória os tempos da adolescência, quando alguns dos meus amigos foram pela aventura das substâncias proibidas. Pé ante pé, primeiro com o haxixe, depois com a heroína que os levou para um sofrimento arrepiante. Lembro-me de ter estado mesmo ali, ao lado da droga, e de ter resistido à tentação. Sem falsos moralismos, sem querer ser um asceta que viu os charros passar de mão em mão e sempre recusou os convites para a experiência. Não há neste estoicismo nada de heróico. Apenas uma opção pessoal, tão subjectiva como a opção tomada pelos amigos que embarcaram na alucinação trazida pelas drogas. É que nisto das opções pessoais, os moralismos são a última pedra que se deve atirar ao ar. No subjectivismo das opções, é sempre fácil criticar as dos outros. Nem que seja para obliterarmos os nossos próprios pecadilhos.

É por isso que me furto a apreciações dos outros, dos que enveredaram pelos caminhos das drogas. Apenas faço uma retrospectiva das imagens doídas trazidas pela desorientação de quem está acorrentado às drogas. Custou-me ver amigos a irem ao fundo, quando a ousadia os fez passar a linha de fronteira das drogas duras. Como se foram degradando, dia atrás de dia, na busca aflitiva da dose diária que injectavam nas suas veias cada vez mais corroídas pela acidez da heroína misturada com os limões roubados de quintais vizinhos.

A escalada vertiginosa elevou a fasquia: para consumirem, traficavam. Com a polícia sempre a pairar, a sobrevivência era uma aventura. Soube de visitas à cadeia, algumas temporárias, outras mais prolongadas. Soube de um colega do 9º ano que perdeu a vida numa refrega motivada por questões de droga. O Joca deixara o mundo dos vivos novo demais. Pela primeira vez, confrontado com a morte de alguém que tinha a minha idade. Novo, novo de mais para o choque da notícia (pouco mais de vinte anos). Coisa menor, simples desvario, quando comparado com o execrável fado que bateu à porta do Joca.

Uma vez, acabado de sair da universidade e passando pelo tirocínio da advocacia, estava de plantão no tribunal de instrução criminal. É aqui que são interrogadas as pessoas que aparecem perante a justiça como suspeitas de delitos. Os vários delinquentes que me caíram em sorte eram, por sistema, acusados de furto. O juiz já sabia a ladainha. As perguntas soltavam-se, mecânicas:

- Porque roubou?

- Para consumo de droga, resposta também ela maquinal, sincera.

- Que droga consome?

- Heroína, disparavam do outro lado, cabeça baixa, num misto de vergonha e de lamento por terem caído nas malhas da justiça.

O juiz tinha que o comprovar. Exigia as mangas arregaçadas, para ver com os seus olhos as marcas cifradas de incontáveis injecções de heroína. Um espectáculo aviltante, ver aqueles braços chagados, ambos os braços, com pouco espaço mais para picar as doses da suficiência diária, do alívio que lhes trazia.

Outra vez, na baixa da cidade, tirava as medidas para um fato. No atelier virado para as traseiras a loja era vizinha de uma parte lateral da estação de S. Bento. Ali à frente, estacionado o espectáculo à luz do dia. Meia dúzia de farrapos humanos injectavam-se onde podiam, onde o vício ainda não tinha carcomido as veias. Poucos o faziam nas veias que ficam descobertas quando se estende o braço. Um espetava-se nas veias da mão enquanto conversava animadamente com um parceiro. Este teve que procurar uma veia disponível no tornozelo. Imagens que ficaram retratadas, um prolongado património de sofrimento misturado com o prazer viciante de anos de consumo.

Foi há dez anos. Hoje pergunto-me: quantos deles estarão ainda vivos para contar?

12.1.05

A paciência do chinês

Hoje sinto a necessidade de espingardar. De destilar um pouco do fel que me corrói quando chega esta altura do ano, em que a correcção dos exames me consome a paciência e me traz mais alguns cabelos brancos. Começo por um e-mail que enviei aos alunos de uma das disciplinas, após a correcção dos exames:

É vergonhoso que me tenham apresentado estes resultados. Vergonhoso, porque vocês sabiam o teor da frequência. Só a falta de estudo – e o laxismo de quem acha que a disciplina está feita à partida – pode justificar este comportamento lamentável. A minha compreensão merecia da vossa parte um esforço mínimo para apresentarem resultados decentes. Confesso que estou arrependido por ter facilitado a vossa vida nesta disciplina. É o preço que pago por ter tentado ajudar. Não se mostraram merecedores desta ajuda, porque nem sequer vocês (os verdadeiros interessados) tentaram o mais pequeno esforço para corresponder à minha ajuda.

Pondero seriamente mudar o sistema para o exame final: sem fornecer pistas sobre a matéria que vai sair, obrigando-vos a estudar tudo de uma ponta a outra. Num sistema universitário com um mínimo de exigência, e com alunos à altura, isto nem seria estranho...

Convém explicar o contexto em que esta mensagem aparece. Trata-se de uma disciplina de um curso que já não funciona. A licenciatura (Relações Internacionais) tem vindo a ser descontinuada nos últimos anos lectivos, por falta de alunos. Este ano apenas funcionam algumas disciplinas, de forma avulsa. As disciplinas que os “veteranos” têm em atraso. As poucas disciplinas que lhes faltam para concluírem o plano curricular. Nesta cadeira ainda tenho quase uma dúzia de alunos inscritos. Devido à excepcionalidade da situação, adoptei um critério de flexibilidade. Para ver se estes “veteranos” (alguns deles já estariam no seu 9º ou 10º ano, quando o plano curricular comporta quatro…) se vêm livres da disciplina – e se eu me vejo livre deles...

Combinei com eles que os exames deste ano seriam iguais – exactamente iguais – aos do ano passado. Confesso que esta solução me trouxe alguns amargos de consciência. Sempre evitei soluções de facilitismo, porque acredito que elas se voltam contra os alunos. Uma cultura de facilitismo afasta-os dos padrões de exigência que alguns podem encontrar lá fora, no mundo profissional. Depois saem da universidade impreparados. E culpam a universidade e os professores, aqueles professores que os deixaram imersos num mar de inconsequentes facilidades.

Apesar das hesitações que tive antes de tomar esta decisão, avancei para ela. Teria que fazer algo para que eu e estes “veteranos” nos víssemos livres uns dos outros. Para minha sanidade mental, esta seria a solução de último recurso. Mesmo pagando o preço da incoerência, por ir contra os padrões de exigência de que nunca prescindi. O resultado foi impensável. Talvez por estarem conscientes de que não teriam que estudar nem uma décima parte do que seria necessário em condições normais, estes espécimes da mediocridade nacional adormeceram no ponto. Aposto que estudaram no dia anterior. Deram apenas uma vista de olhos pela matéria. Pensavam que eram favas contadas. Até por terem percebido que o professor estava a facilitar para os livrar do peso da disciplina.

Os resultados deste exame são uma amostra de como as facilidades são contraproducentes. Quando sabemos que tudo é fácil, o esforço é menor. O laxismo vence e abdicamos de um mínimo de exigência. O que irrompe é a falta de qualidade. O disparate surge em catadupa, com respostas impensáveis – sobretudo para quem tinha todas as condições para tirar boas notas, assim houvesse um mínimo de vontade e de brio.

Ao fim de doze anos nestas lides, é o cansaço que me verga em momentos como este. Chego a pensar se não ando a pregar no deserto, quando deparo com os resultados decepcionantes e com respostas que revelam a queda para o absurdo. Já nem sequer ligo aos erros ortográficos e de sintaxe que abundam como cogumelos bravios (dois exemplos que vêm de outra turma, cujos exames corrigi no início da semana: “enexistência” e “elações” – esta última escrita por mais de dez alunos…). É a paciência que se começa a esgotar perante a inépcia, o desinteresse, a apatia.

E concluo, em reflexão interior pelo acontecimento: estes alunos que há anos consecutivos me aparecem pela frente (como se gostassem tanto da cadeira que a vão tentar fazer ano após ano…) seriam as últimas pessoas que recomendava para um emprego. Qualquer que ele fosse.

11.1.05

Um atentado ao feminismo militante, vindo de dentro

Para as feministas militantes, mais uma deliciosa provocação.

Contexto: uma reportagem sobre as transformações recentes na sociedade argelina. Os avanços registados, no sentido da forçosa ocidentalização, chancela de um devir que se encontra com os caminhos do progresso. Entre os vários aspectos que sinalizam a lenta marcha do progresso, às mulheres já é reservado um papel condigno. Tanto que, no entender de uma representante do sexo feminino a quem foi dada a palavra, esta igualdade é nefasta para as mulheres!

Cá está como a igualdade entre sexos é um anátema. Vale a pena reparar na argumentação da realista argelina. Ela confessou que a partir do momento em que os estigmas da desigualdade de sexos foram sendo banidos, os homens interiorizaram um comportamento igualitário que coincidiu com a falta de respeito pelas mulheres. Estranha contradição: será que antes, nas trevas da vergonhosa desigualdade que campeia nas sociedades islâmicas, o homem respeitava a mulher? Como entender a confissão desgostosa da senhora, descontente com a falta de respeito pelas mulheres que grassa nos últimos tempos?

A imagem traz perplexidade. Vou esquecer o que está para trás (o papel menor reservado às mulheres nos países árabes). Olho apenas para o diagnóstico que emerge das palavras revoltadas daquela argelina. A ideia é cristalina: agora que os homens foram habituados a dedicar o mesmo tratamento às mulheres, acabaram as deferências. A avenida da igualdade foi o nutriente para os homens dedicarem às mulheres o mesmo tratamento abrutalhado a que, nas relações recíprocas, se habituaram. Nos tempos da vetusta desigualdade havia algum respeito pela diferença que viam corporizada nas pessoas do sexo feminino.

Aqui uma interrogação assoma à superfície: será que existe uma relação inversa entre igualdade de sexos e respeito pela mulher? Vou ignorar o contexto muito particular das sociedades árabes. Passando por cima deste aspecto, chegar à conclusão de que ou se tem uma coisa (igualdade dos sexos) ou se tem a outra (respeito pela mulher como alguém que é diferente do homem) pode invalidar muitas das reivindicações das militantes da causa feminista. Se elas querem igualdade, mas ao mesmo tempo querem conservar as convenções sociais que passam pela consideração masculina, há aqui uma contradição insanável. Ou uma coisa ou a outra.

A ambiguidade de algumas feministas ocupa um lugar visível. Querem estar num plano de absoluta igualdade com os homens. Mas querem, ao mesmo tempo, que os homens as tratem com salamaleques que estão ausentes do relacionamento quotidiano entre homens. Elas deviam saber que, para os homens, estas deferências são um sinal de respeito pelo sexo oposto. E que, de forma surda, prolongam um tratamento de diferenciação que vem de tempos imemoriais. Como se fosse o sinal identitário de uma diferença que existe, por mais que lhes custe reconhecer.

Não vale a pena atirar mais lenha para a fogueira dessa coisa inútil que é a “guerra dos sexos”. Um pormenor da natureza, ou os descaminhos da genética, fazem com que sejamos a imagem da diferença dos sexos. Que não exista qualquer pudor em admitir que homens e mulheres encerram em si diferenças que saltam à vista. Seria meio caminho andado para acabar com os traumas do passado. Achar que a solução passa pelo estigma invertido da discriminação positiva, como se fosse imperioso recuperar o tempo perdido no passado dando agora privilégios às mulheres, é um dos dogmas do politicamente correcto contemporâneo. Uma simples fachada, sem resolver os problemas que hão-de continuar a existir enquanto se persistir em ver na diferença um sinónimo de desigualdade.

Relembro as palavras da senhora argelina. E fico sem perceber se ela estava do lado das mulheres realistas que se recusam a confundir diferença com desigualdade, ou se é um espécime das fanáticas feministas que nunca estão satisfeitas com nada. No caso, outrora insatisfeita com a desigualdade que asfixiava o sexo feminino, agora insatisfeita com as consequências da igualdade – o respeito que se ausentou para outras paragens. As mulheres, esse bicho eternamente insatisfeito!

10.1.05

Um coro de abjecções (a teimosia em mostrar a desgraça nas terras atingidas pelo maremoto)

Já lá vão duas semanas. E todos os dias novas imagens retratam a tragédia nas zonas afectadas pelo maremoto. As mais mediáticas mostram a enxurrada de água salgada que tragou tudo o que se encontrava à sua frente. Do fim-de-semana vêm imagens de uma estirpe diferente. Imagens captadas algures (não me recordo se no Sri Lanka ou na Indonésia), horas depois do maremoto.

Nestas imagens somos testemunhas dos despojos da tragédia. De como tudo ficou arrasado. De como a devastação se misturava com os cadáveres espalhados de forma aleatória. E, mais pungente ainda, do desespero com que os sobreviventes procuravam os familiares desaparecidos. Do drama dilacerante nos casos em que as pessoas que conseguiram escapar com vida descobriam que um ente querido jazia, vida ceifada pelas águas vingativas.

Isto mereceu honra de abertura de um noticiário. Duas semanas após a tragédia, os órgãos de comunicação social insistem em mostrar mais desgraça. Comportam-se como o abutre que vagueia, vigilante, sobre a carcaça de um animal que pereceu, esperando que ela arrefeça para a debicar de forma animalesca. Este comportamento é de uma atrocidade ímpar. Confirmando que a comunicação social vem ao encontro do povo que somos, ávido de desgraça, sequioso de partilhar a adversidade alheia, sobretudo nos aspectos sanguinários que ela tem. Diria que tudo se apazigua: um povo e uma comunicação social com tendências necrófagas.

Os mais condescendentes dirão que estas imagens são o passaporte necessário para a solidariedade exigida para com as vítimas do cataclismo. Sem elas as consciências continuariam semi-adormecidas. As imagens com as lágrimas de desespero de pessoas já causticadas por uma pobreza extrema são a razão poderosa que conduzem à condoída solidariedade. São imagens chocantes, o gatilho dessa solidariedade que cresce para ultrapassar a dimensão gigantesca das vagas alterosas que varreram vidas sem conta no sul da Ásia.

Discordo do diagnóstico. É um incrível voyeurismo que invade o país, que nos faz juiz das vidas alheias. E que, nos momentos de desgraça, nos leva a espreitar com uma curiosidade mórbida para a desdita dos outros. Faz lembrar os acidentes de automóvel com que nos cruzamos, as filas que se formam, a curiosidade que leva alguns a parar para dar uma espreitadela ao espectáculo macabro da chapa retorcida, da chapa ensanguentada. Estas pessoas querem ser testemunhas do acidente, querem cheirar o odor do sangue vertido sobre o asfalto. Gostaria de perceber o que as leva a partilhar momentos tão trágicos. Gostaria de adivinhar o sentimento que as percorre por dentro nas horas que se seguem à observação de imagens tão dilacerantes.

Talvez isto explique algumas idiossincrasias nacionais. A tourada, com o sangue a jorrar abundantemente do dorso do infeliz touro. Os pratos da gastronomia nativa que têm doses industriais de sangue como ingrediente (sarrabulhos, arroz de frango, lampreia, morcelas). Aposto que se os Institutos de Medicina Legal abrissem cursos livres para a população eles seriam um sucesso. Nada melhor do que dissecar cadáveres até à exaustão para um povo ávido de sangue. Ou talvez não: porque afinal dos cadáveres que jazem há longas horas à espera de autópsia já não verte gota de sangue.

Assim continuamos com uma comunicação social que se empenha em ser a antítese da pedagogia das massas. Pelo contrário, ela é “educada” pelas massas. É uma comunicação social que se afasta das elites e aproxima do povo chão, num esforço de “democratização” que leva ao nivelamento por bitolas inferiores. Numa perigosa deriva: quanto mais o povinho sente que a imprensa vai ao encontro das suas preferências, maiores serão as exigências para descer o nível, ao nível do abastardamento total. O que virá a seguir: filmar os pormenores de funerais, com câmaras que dão os pormenores da preparação de uma urna?

7.1.05

A vida é um círculo (bebés e idosos, o mesmo tratamento)

Um dia destes cruzei o olhar com um qualquer programa de televisão onde passava uma entrevista a uma senhora de 94 anos. Dei comigo a pensar como o avanço para provecta idade faz regressar os idosos à dilecta atenção que costumamos reservar aos bebés.

Não é segredo que na tenra idade a dependência de outrem atinge o auge. Os bebés dependem dos pais em tudo. Além de que a fragilidade suscita o embevecimento. À medida que vão crescendo, a dependência vai-se esbatendo, assim que eles conseguem conquistar, passo a passo, autonomia. Quando o corpo e a mente definham em direcção da morte, e quando as forças se esgotam, as atenções voltam a estar concentradas em quem teve a coragem de ultrapassar a barreira dos noventa. A dependência volta a ser um posto. O carinho com que os velhinhos são tratados quase que os faz regressar ao afecto que receberam muitos anos atrás, quando irromperam do ventre materno e deram os primeiros passos na vida.

Aqui a vida aparece retratada como um círculo. Percorre-se um longo trajecto para, com o ocaso que se avizinha, todo o afecto voltar a ser concentrado nas pessoas que conseguiriam atingir uma idade avançada. Passam a ser tratadas como se fossem crianças indefesas, dependentes de outros para osactos mais banais. Será uma reacção que revela um misto de admiração (a provecta idade a que poucos chegam) e o reconhecimento de que a debilitação da idade merece um porto de abrigo com todo o carinho repousado na pessoa que teve a arte de entrar na idade da admiração.

É um fio que se alonga por anos sem conta, para finalmente a ponta se unir com a origem. O império dos afectos vem à superfície quando os velhinhos são acarinhados como se bebés fossem. Separados por um vasto terreno feito de uma prolongada vida, recém-nascidos e velhinhos comungam do mesmo espírito: motivam uma atenção especial ausente em todos quantos já deixaram a dependência pueril e ainda estão longe dos afortunados que sopram mais de noventa velas no bolo do aniversário.

É o tributo que se presta a uma vida tão longa, que tão poucos mortais conseguem saborear. Quando vejo este tratamento afectuoso vertido nos anciãos, sinto que há uma salutar inveja no acto. Inveja de chegar a essa idade avançada, sobretudo se formos bafejados com o dom do discernimento intelectual e de alguma vitalidade física. Quando se deposita nos velhinhos tanto carinho, projecta-se o que gostaríamos de ter no ocaso da vida – como se os instantes finais fossem o motivo para uma homenagem (que julgamos ser merecida) pela vida que vivemos. Uma espécie de “prémio de vida”. Mais reconfortante do que a estafada mania de homenagear quando a morte tirou a vida. Aí não estamos vivos para presenciar a dor sentida de quem se despede. Nem para percebermos se a dor é pela partida do finado ou se é apenas o estremecimento interior porque a pessoa em falta representava algo para quem se condói.

Descontando os excessos de alguns que exageram na ternura que dedicam aos velhinhos (o tratamento mais próprio de quem está a lidar com débeis mentais…), esta representação da circularidade da vida tem um significado importante. Do nada viemos e ao nada regressamos. Uma elipse que se preenche com o tempo que deixa as suas marcas. Mais acentuadas quando os idosos atingem uma idade respeitável que os eleva ao altar da admiração. As rugas marcadas, os passos entorpecidos, a vista que ofusca, a audição que se dilui, a voz que se esvai – fronteiras que se abrem a um novo fôlego da ternura, à contemplação de uma vida prolongada que merece ser festejada e acarinhada.

É a melhor homenagem que se pode prestar à vida, ao inestimável valor que a vida é. Abstraindo das curvas sinuosas que se atravessam no caminho, dando mais valor ao projecto que tanto tempo durou. A dedicação a uma vida prolongada recupera os afectos que os anciãos buscam no baú das memórias, nas recônditas recordações da tenra idade. Assim como foram recebidos pela luz da vida, dela se despedem, imersos numa reconfortante ternura.

6.1.05

Aniversário

Do Felino. O blog cumpre hoje um ano.
Anunciam-se mudanças para breve. No formato, no conteúdo e, espera-se, nos humores do autor.

Não receies o medo

Não receies o medo. Das trevas não se desprende o odor pestilento que te faz recuar. Desconheces o que te espera nas esquinas da vida que desfilam à tua frente. E, no entanto, precedes a acção com as hesitações que te fazem temeroso. Recusas arriscar. Receando que na volta tenhas que lutar contra monstros que se acastelam, ameaçadores, na linha do horizonte.

Não receies o medo. Os castelos de sombras são isso mesmo – sombras, que perfuradas se perdem numa espessura não existente. Olhas em redor e sentes a ambição que lateja nas veias de quem se passeia. Paras diante de almas que se refugiam de si mesmas em recônditas quimeras. Ambições que não chegam, tectos altos demais para alcançar. Ambições que se confundem com sonhos. Irradiações de quem olha para além do que a vista alcança. Diagnóstico do risco sem medida. E da teia que não cerceia a ambição – não olhar a meios, atingir os fins a qualquer custo. Manifesta-se um estranho incómodo: não te sentes ambientado a esta perfídia.

Não te confundas. Em nada esta percepção te faça desviar das metas que estão à tua mão. Dos afectos, das pessoas, das realizações mais pessoais, de pequenas coisas que de inúteis têm tanta importância para ti. É esse o teu mundo. És tu que o edificas, que lanças as sementes donde jorra a sua vitalidade. De justificações não careces. Apenas de te sentires em harmonia.

Tens que combater o medo que te deixa lívido perante desafios. Ultrapassar o dilema: crente nas tuas possibilidades, céptico de que o futuro também foi esboçado para ti. Desemaranha-se o paradoxo. Porque não dás valor ao passado, mas perdes-te nos ínvios caminhos do porvir com que te recusas reconciliar. Teimas em ser alguém adiado. Escondes-te detrás da tua ausência, como se ela fosse o melhor caminho para te voltares a reencontrar. Uma ilusória veia circular: partir em busca da harmonia para descobrir, no regresso, que o destino é a casa da partida.

O labirinto é indecifrável. Mas sabes que a solução não está fora de ti. Insistes em desculpar a tua inércia com culpas alheias, como se não fosses juiz das tuas próprias ausências. Na cortina de fumo que oblitera as tuas fraquezas, rodeias-te de penumbras que só tu consegues idealizar. São estes os algozes do teu devir. Só tu podes ser o seu carrasco. Cravar um punhal afiado sem receio da dor que lhes vais provocar – ainda que parte da dor te seja infligida num primeiro momento. Um passo indelével, mas custoso. Essa singeleza é parte da complexidade que irmana os obstáculos do medo.

No fundo, receias ter medo de ser. De ser o que és. Temes enfrentar um Bojador necessário para, então, cresceres com o tempo que não queres perder entre os dedos. A imagem do tempo que se consome com a voracidade dos dias correntes é o espelho dos temores que te aprisionam. Quando aprenderes a conviver com o tempo que se esvai, dia após dia, terás marcado encontro com a reconciliação de ti mesmo.

Até lá, aprender a dissipar as dúvidas da existência como se elas fossem um diabólico cutelo que paira, ubíquo, sobre a tua cabeça. Desconheces que o cutelo não oscila sozinho sobre ti. Sem dares conta, um braço retráctil báscula com a ameaça que te amedronta. Só falta teres consciência que, na dormência dos pavores, és tu que comandas esse braço que julgas indomável e que te impede de seres plenitude.

Não receies o medo. Porque ter medo do que amedronta é o veículo da redenção. O segredo é mudar o sentido dos medos. Quando eles deixarem de pesar como nuvens de chumbo que anunciam a tormenta violenta dos sentidos, deixarão de ser medos. Então será fácil deixar de recear o medo. Estarás preparado para cumprir o desígnio. Espaventar os medos que te consomem e adiam a tua essência ímpar. Aprenderás então que não compensa fugires de ti mesmo, uma vez derrotados os medos.

5.1.05

Dívidas ao fisco vão justificar escutas telefónicas

Para quem acusa este governo de se deixar “contaminar” pelo “tenebroso neoliberalismo”, a proposta descoberta há dias revela o contrário. Alguém tirou da cartola a hipótese de colocar sob escuta telefónica quem seja apanhado nas malhas do fisco. Já não bastava o levantamento do sigilo bancário, regra de ouro que alicerça a confidencialidade que é um esteio do negócio bancário (e da confiança que os clientes têm nos bancos onde depositam o seu dinheiro); já não bastava o Estado poder deduzir processos contra quem faltou ao pagamento de impostos com base em movimentações bancárias suspeitas; agora temos uma medida que vai para além dos limites da razoabilidade. É a lei da selva: vale tudo para combater a ignominiosa fraude fiscal.

O que está em causa é a desproporção de meios quando um qualquer burocrata decidiu estender as escutas ao gravíssimo crime de não pagar impostos. Aqui devo fazer uma declaração de interesses: sou contra os impostos. Considero-os uma invasão inadmissível na riqueza gerada por cada indivíduo. Não é o preço da civilização, ou da vida em colectividade, como alguns supõem em defesa dos impostos. É apenas um meio de subtrair riqueza, como se todos fôssemos (e somos) obrigados a trabalho comunitário. Como tenho alergia a todos os deveres sem possibilidade de dissidência, vejo os impostos como algo deplorável. Tenho inveja de quem consegue fugir aos impostos. Não vejo na evasão fiscal uma manobra de pura irresponsabilidade, um escape às obrigações que todos devemos assumir perante a sociedade.

É neste contexto que a ideia de fazer escutas telefónicas aos infractores fiscais me causa repulsa. No fundo, os devedores de impostos são equiparados a outros criminosos de delitos maiores. Parece que os devedores ao fisco cometem o mesmo pecado de traficantes de droga, de suspeitos de crimes de colarinho branco, ou de outro tipo de criminalidade que dá origem a penas de prisão de duração considerável. Quando as sanções são bem diferentes. Por maior que seja o esquecimento voluntário do (não) pagamento de impostos, a pena de prisão nunca se assemelha ao tempo que passam na cadeia os acusados de crimes maiores.

Daí a desproporção da medida, um absurdo inexplicável. Melhor dito: a única explicação possível passa pelo desespero que o Estado mostra em conseguir controlar as contas públicas. Escaldados pela meta dos 3% do défice orçamental, os governos têm que puxar da imaginação para não cair em incumprimento. Por comodismo, em vez de se cortar a eito nas despesas, a cura milagrosa está sempre do lado das receitas. Quando toca a encontrar as receitas para evitar défices excessivos, só resta penalizar o contribuinte. Neste caso, rapar o fundo do tacho, encontrando as migalhas que resultam do pagamento dos impostos em falta.

Tenho pena de não poder ser um garboso incumpridor de obrigações fiscais. Se conseguisse ter este estatuto, muito me custaria ser colocado no mesmo saco de Pintos da Costa, Valentins Loureiros, Paulos Pedrosos, Jorges Rito e quejandos. Até porque é duvidoso que quem não paga impostos confesse essa falta em conversas telefónicas. Quando o crime não tem comparação, e se usam os mesmos mecanismos para o combater, o desespero expõe a falta de credibilidade do Estado.

O que acaba por não ser má notícia: um Estado desautorizado é caminho para menos Estado. Por mais que os iluminados burocratas que o servem se esforcem em engordar a visibilidade do Estado e a sua intrusão na vida dos cidadãos.

4.1.05

Jet-set, cultura geral

Woody Allen actuou no reveillon do Casino do Estoril. Não, não encenou uma peça de teatro a partir de um dos seus textos. Veio a Portugal integrado na sua banda de jazz, como instrumentista de clarinete. Figura da iconografia cinematográfica norte-americana, cativou a presença de aspirantes ao putativo jet-set doméstico. Muita gente de Lisboa e arredores pagou a fortuna usual para alindar com a sua presença o Casino. Aposto que muitos acreditavam que Woody Allen é uma figura emblemática de Hollywood. Desconhecem que todo o imaginário do autor se centra em Nova Iorque – pequena diferença de uma vasta distância que vai da costa oeste à costa leste do continente americano...

Aposto neste desconhecimento porque a reportagem da RTP apanhou muitos destes figurantes imersos na mais pura ignorância. Quando inquiridos pela jornalista de serviço qual o instrumento que Woody Allen vinha tocar, da dúzia de pessoas abordadas apenas uma jovem soube responder com acerto. De resto, as mais variadas respostas (e não respostas, sinal de uma franqueza que, no meio de tanta insciência, acaba por cair bem). Uns apostaram no saxofone. Sempre é um instrumento de sopro, tal como o clarinete. Para estes duros de ouvido, flautas, saxofones, clarinetes, fagotes, oboés e afins é tudo a mesma coisa. Toca-se com um sopro vindo dos pulmões do artista. Se produzem sons diferentes, se são instrumentos que se diferenciam à vista desarmada, tudo pormenores sem importância – ou apenas importantes para os melómanos.

Um senhor varonil, do alto da sua impecável cabeleira branca, respondeu com a convicção de quem se assenhoreia da verdade: “sexofone” (sic). Ou a pessoa estava apoderada pelos vapores etílicos antes do tempo, ou estamos perante um instrumento novo que só ele conhece. Ensaia-se uma explicação: talvez inquietado pelos fantasmas da andropausa que batem à porta, a boca fugiu-lhe para as suas angústias. O saxofone convertera-se em “sexofone”. Logo de seguida, uma pressurosa dona de casa respondeu com falta de convicção. Disse que Woody Allen vinha tocar um instrumento chamado…jazz! No meio do disparate, este foi o auge.

Adivinho estes aspirantes do jet-set da linha de Cascais, em estremecimento delirante, espumando vaidade, no dia em que por fim apareceram nos ecrãs. Glória efémera, mas glória de uma vida que já valeu a pena ser vivida só por aqueles fugazes instantes de notoriedade mediática. Não hão-de sair do anonimato, decerto. Nem sequer lhes interessa a fraca figura que fizeram perante a audiência. Aliás, talvez nem sequer cheguem a ter consciência da agnosia que destilaram em público. Mesmo os que desconfiam que a jornalista emprestou à reportagem uma dose de cinismo indisfarçável terão a apetência para fazer de conta que isso não interessa. Apareceram, mostraram-se como figuras dignas de pagar mais de 500 euros para passar o fim do ano no Casino do Estoril. Viram Woody Allen a tocar uma coisa esquisita, com um nome quase impronunciável. Isso é que conta. O resto fica por conta da inveja de quem não pôde lá estar, e muito menos desfilar perante o país.

O que dizer perante tamanha manifestação de grotesca ingorância? O que dizer de pessoas que se fazem passar por entendidas de um espectáculo que pagaram para ver, afinal desconhecendo alguns dos aspectos mais importantes desse espectáculo? À incultura junta-se a incapacidade para encontrar a informação. Se esta gente fosse capaz de detectar os sinais de burrice que os preenchem no interior da sua vacuidade, teriam ao menos a humildade de gastar uns minutos – uns parcos minutos – para encontrar a informação que evitava as tristes figuras que fizeram.

Não é de estranhar. Quem tudo dá, a mais não é obrigado. As frugais capacidades impedem o discernimento, o espírito humilde ausenta-se e evita nada dizer quando não se sabe dar resposta à pergunta colocada. Ainda que do mais fundo viesse à superfície um vestígio de inteligência, a espessa laca dos penteados das senhoras e as doses industriais de gel na cabeleira dos cavalheiros impedia que inteligência se soltasse cá para fora.

Quando vi esta reportagem não consegui reprimir umas sonoras gargalhadas. E apeteceu-me, naquele instante – mas só naquele instante – ser comunista…

3.1.05

Os prazeres da cozinha

É engraçado: por vezes temos que estar longe das coisas para lhes dar mais valor. Sempre gostei de me entreter na cozinha, entre tachos e condimentos. Em tempos frequentava os prazeres da cozinha com mais assiduidade. Ultimamente tenho andado relapso. Ou por preguiça, ou por cansaço, ou porque não tem havido a oportunidade para deixar o tempo correr entre os cheiros libertados pelos cozinhados. O que é estranho, para quem sempre teve na cozinha uma válvula de escape, em especial naqueles momentos avassaladores de trabalho em que a cozinha é um refúgio para a tranquilidade de espírito.

É verdade que é diferente ir para a cozinha por necessidade ou por ócio. Confeccionar almoços e jantares em dias sucessivos não transporta o aprazimento da cozinha. Porque a rotina se instala, porque chega o momento em que é difícil puxar pela imaginação para solucionar o dilema do que há-de ser cozinhado no momento. Tonificante é estacionar na cozinha sem receio de perder o rasto do tempo.

O verdadeiro prazer está nos jantares em que se reúne a família ou os amigos. Jantares com um cardápio composto: entradas, prato principal e sobremesas. Todo um ritual bem medido, uma sequência de actos em que os comensais fruem do convívio, dos deleites da amizade, com a inestimável ajuda dos garfos que levam as iguarias a aconchegar o estômago – de preferência com um vinho tinto bem escolhido. Tentar decifrar a torrente de sabores que se combinam num prato é o acto final das horas gastas na cozinha a desemaranhar os segredos do resultado final que aparece nos pratos de quem se senta à mesa. Para mim o verdadeiro prazer está nesse interlúdio, mais do que na consumação do acto.

O deleite está mais ainda naqueles momentos em que a imaginação ensaia novas experiências gastronómicas. Às vezes o resultado não é apetecível. Mas quando a recompensa vem na forma de um produto bem acabado, sinto o gosto interior de ter posto a imaginação ao serviço das artes culinárias. Quer se trate de adaptações de receitas já conhecidas, que por vezes dão resultados interessantes, quer se trate de misturar os ingredientes sem que antes se tenha experimentado algo de semelhante, o cerimonial de escolher os ingredientes e de os combinar em proporções adequadas é o grande desafio, o mistério por desvendar que a cozinha oferece.

Este exercício estimula os paladares. Os gustativos e os da alma, que são requentados quando o estágio na cozinha é acrescentado de uma companhia de quem partilha o mesmo gosto pelas artes culinárias. É aqui que a obra colectiva faz sentido. Os artífices dão, à sua maneira, um contributo que se congemina no resultado final. As diferentes percepções dos sabores, as diferentes experiências gastronómicas – tudo conflui numa iguaria enriquecida pelo dom construtivo de pessoas diferentes. Nunca tive a experiência de estar na cozinha com estrangeiros, mas é um desafio apelativo. A diversidade cultural, produto de diferentes enquadramentos nacionais, seria um dado para enriquecer uma obra gastronómica colectiva. Basta recordar as iguarias que resultam de diferentes cruzamentos civilizacionais: a cozinha crioula, nos países onde se misturam as influências nativas com o toque dos civilizadores europeus, por exemplo.

É interessante ver como se consome o afluxo de energias que leva ao produto final. Uma libertação da imaginação pessoal, um contributo vindo do interior que vai percorrendo o espaço entre a escolha dos ingredientes, a sua manipulação, a confecção que culmina no preparado final. Os prazeres concentram-se nessa fase. Assim que a iguaria fica pronta a ser desbastada pelos talheres dos comensais, o prazer esvai-se na exacta proporção do que ficou para trás, do prolongado interlúdio que consumiu os verdadeiros prazeres da alma. As delícias da gula não são prioridade. Apenas a curiosidade de tragar o produto final para examinar a proficiência do orquestrante dos ingredientes, avaliar a sapiência que a imaginação momentânea facultou.

É a curva descendente dos prazeres gastronómicos. Exangue pelo acto de criação, não sou convocado ao deleite gustativo que convida ao consumo ávido do que foi confeccionado. Aí uma boa mesa não é feita pelo cardápio que a preenche. É feita pelo prazer de conviver com quem se senta à mesa, com o lânguido correr do tempo em que a conversa percorre os instantes do tempo como se os prolongasse para além do intemporal. Saber que se prepara um jantar para atingir este resultado é o maior prazer que a cozinha pode legar. Afinal, dois prazeres num só.