18.8.05

Bombas atómicas virtuosas?

Há sessenta anos, Nagasaqui e Hiroxima presenciaram o horror das deflagrações atómicas. Pela primeira vez com vítimas humanas, as bombas lançadas pelos Estados Unidos espalharam a morte naquelas cidades japonesas. Ao passarem sessenta anos (ia escrever “nas comemorações dos sessenta anos…” quando dei conta que não há nada para celebrar; antes, expiar a bestialidade humana), a análise destilou-se por entre as conveniências ideológicas dos analistas.

Por cá, nas páginas dos jornais, duas teses opostas. De um lado, os habituais falcões da paz, tingidos de vermelho, que não se cansam de apontar o dedo às diabólicas maquinações dos Estados Unidos. Por entre a razão que lhes assiste – condenar o uso de armas nucleares em cidadãos inocentes – o oportunismo e a desonestidade intelectual. Descobriram, sessenta anos mais tarde, que as bombas despejadas em Nagasaqui e Hiroxima foram percursoras do terrorismo de Estado. Como se este fenómeno já não viesse de tempos ancestrais, de todas as guerras patrocinadas por Estados em nome das causas mais estúpidas. Do outro lado, esforços malabaristas para justificar o acto tresloucado dos Estados Unidos. Distinguiram-se o director do Público, José Manuel Fernandes, e Vasco Pulido Valente, nas páginas do mesmo jornal.

A tese é simples: depois do covarde ataque kamikase dos japoneses a Pearl Harbour, e já com os alemães vergados ao peso da derrota, fazia sentido encontrar um meio que colocasse um ponto final numa guerra que já durava há tempo demais. Se esse meio tivesse que ser uma bomba atómica, nunca antes utilizada em conflitos bélicos, que fosse. Os meios justificam os fins (mais uma vez). A machadada final para impedir que a guerra sangrenta se perpetuasse, para que mais vidas não fossem levadas pela sua mão traiçoeira. Que importa se as duas bombas atómicas guilhotinaram, em escassos segundos, centenas de milhar de vidas? Seria o preço necessário para a civilização se livrar da guerra prolongada que parecia não querer findar. Vasco Pulido Valente foi ao extremo de asseverar que (cito de cor) para as vítimas das bombas atómicas foi indiferente o meio e a forma como morreram. Apetece dizer: “importa-se de repetir?”

Não tenho conhecimento que Pulido Valente seja um neo-conservador, enfileirando com aqueles que encontram as justificações para legitimar actos de agressão externa e as incongruências diplomáticas dos Estados Unidos. Já José Manuel Fernandes é um lídimo embaixador da corrente neo-conservadora. Perturbam-me os malabarismos intelectuais dos neo-conservadores para justificar os actos das autoridades norte-americanas, como luva protectora do intervencionismo externo que consolida a posição de única super-potência no xadrez mundial. Essa sinuosa retórica é ofensiva à inteligência humana. Os passes de magia conheceram novo episódio com os sessenta anos das deflagrações nucleares em Nagasaqui e Hiroxima: um estulto revisionismo histórico em que os neo-conservadores puxam lustro à imaginação para provar a bondade dessas bombas atómicas. A cartilha de Estaline serviu-lhes!

Sou daqueles que pensa que tudo é discutível. Mesmo quando as evidências sugerem que pouco há a discutir, tenho abertura para compreender as vozes dissonantes. Mas agora os limites foram ultrapassados. Que se diga que os Estados Unidos foram feridos no seu orgulho pelo acto covarde da aviação japonesa e que quiseram retaliar, ainda se compreende. É injustificável que se tente legitimar a acção desproporcionada dos Estados Unidos, quando tiraram do paiol duas bombas atómicas com os efeitos devastadores que se adivinhavam.

É nestas ocasiões que levo por diante o pessimismo metódico sobre a natureza humana. A estupidificação que nos cobre, numa assomo auto-fágico que há-de levar a humanidade ao descalabro final. A racionalidade que nos distingue dos animais irracionais é o mote para a vergonha que enxameia a história da humanidade. Uma história de viciosa dependência de abstracções colectivas que levam o indivíduo a sacrificar-se por causas que lhe são vendidas como causas de todos, e portanto dele também. Quando, no final, ele é apenas a anónima carne para canhão de vaidades alheias.

Por mais voltas que dê, não consigo descobrir uma nesga de razão que seja na reinterpretação histórica dos neo-conservadores. Branquear a história, procurando passar lixívia nas duas bombas atómicas que caíram em solo japonês, é o mostruário da vergonha que cai sobre a humanidade. É aqui que fujo da abertura de espírito para compreender teses minoritárias: a atitude dos Estados Unidos é um episódio que envergonha a humanidade.

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