29.8.05

Cartografia dos sonhos

Há dias que começam com a incógnita do sonho visitado durante a noite. Sonho intrigante, que faz pensar. Muitas vezes sonhos estranhos, conversas absurdas, personagens impensáveis. Por vezes, nos sonhos, uma vida dentro doutra vida – ou uma vida que se desprende da vida inteligível, nem sei bem qual das hipóteses retrata com fidelidade o que se passa.

Há uma dimensão fantástica na matéria onírica. O poder de um subconsciente que se liberta dos espartilhos da razão, manietada pelos sentidos alertas nos seus postos de sentinelas, vigilantes com a luz do dia. Quando a cabeça repousa na almofada, libertam-se as amarras para o subconsciente asfixiado, torturado pela ditadura da razão que acompanha os sentidos, os olhos bem abertos. Pela calada da noite, assim que os olhos se cerram sobre si mesmos, a voz de comando para um outro eu escondido. É a hora da visita dos sonhos bizarros, de pesadelos indesejados, de sonhos que acompanham angústias pontuais.

Nos sonhos, levado por caminhos insondáveis, caminhos não escolhidos na sementeira dos sentidos. Por isso digo: possuídos pelos sonhos somos matéria incandescente, cinzas que flutuam ao sabor das conveniências de uma força que só se revela nos sonhos, mas que também habita em nós. Será uma vida agrilhoada pelo eu que dizemos conhecer? Ou uma vida que se desprende do desconhecido para algures, como um braço de ria que a certo ponto diverge num sentido diferente da maré dominante?

Haverá especialistas oníricos. Haverá a famosa “sabedoria popular” que, célere e penhora das suas certezas, assevera um simbolismo que interpreta cada sonho. Na complexidade da mente humana; na complexidade da própria espécie humana, com a diversidade que separa cada pessoa; esses ensaios, apenas manifestações de padronização condenadas à futilidade. Os meus sonhos serão diferentes dos sonhos de todas as outras pessoas, como os sonhos da pessoa ao lado diferentes serão dos demais. Acredito que haja um mapa genético dos sonhos de cada indivíduo, trilhado pelas referências do passado, pelas experiências marcantes – as traumáticas e as que mostram felicidade. O código genético dos sonhos será como o ADN, um roteiro individualizado, irrepetível.

E pouco me interessa saber se há um significado especial para este ou aquele sonho que me visita com mais frequência. Os especialistas encontram aí terreno para divagar, discordar, fermentar a subjectividade. Não são eles que vivem por dentro os meus sonhos. Não são eles que sentem na pele um sono mal dormido se, pela enésima vez, sonho que fui testemunha da queda de um avião. Nem são eles que acordam sobressaltados com os traços vivos de um sonho em que fui atacado por serpentes venenosas. Nem sequer pelas imagens reais guardadas na memória, que semeiam a confusão nos instantes que se seguem ao despertar – parece, nesses breves momentos, que o sonho o não foi, antes realidade; só depois, ao calibrar os sentidos, assentar que realidade não foi, antes um mero sonho.

Certos sonhos são roteiros pelo terreno do surrealismo. Se houvesse tempo para passar à escrita – e de forma fidedigna, para além dos esparsos aspectos que a memória acordada consegue resgatar – abundante material para literatura surrealista ficaria em minha posse. Para além das angústias que consomem, e que transitam para os sonhos; para além das pessoas que vêm de longe, numa revisitação desejada, ou não; para além dos sonhos que estendem a vida acordada para o tempo do sono (querendo selar o absurdo que é dormir, o tempo perdido com o sono, o tempo que se perde em viver enquanto os olhos estão cerrados no tal “sono retemperador”); para além de tudo isto, o mapa surrealista traz a nota intrigante ao tempo da vida diferente enquanto repouso na quietude do sono.

Ao tactear o percurso dos sonhos surrealistas, naquilo que a memória consegue resgatar, há algo que me perturba: sonhos estranhos, sem sentido, absurdos, sinalizando o absurdo da vida; ou traços de uma vida que existe para além do sensorial, entrando no domínio do especulativo, irrompendo pelos limites do fantástico. Para concluir: uma vida escondida dentro da vida que sabemos ter, revelada pelo olhar onírico?

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