9.8.05

Rebeldia fiscal


Espreito na televisão um participante num concurso. Nome, proveniência, profissão, são as perguntas do apresentador. Resposta garbosa, à última pergunta: "trabalho numa repartição de finanças".

Os estereótipos podem ser uma trapaça. Generalizar é uma arte esguia, exposta a mil e uma excepções que derrubam a generalização pela base. Mas no que toca a funcionários que zelosamente tratam de arrecadar os nossos impostos, não consigo resistir à tentação. Até porque o indivíduo que acabava de se sentar no lugar de pretendente a uma pequena fortuna personificava o retrato que construí dos funcionários de repartições de finanças, depois de algumas infelizes e necessárias visitas a estes locais.

Zelosos funcionários que se enchem da importância que, na sua maneira de ver, é a função de tratar dos impostos devidos pelos contribuintes. Entre os funcionários públicos, os das finanças batem os demais em arrogância e no desprezo com que tratam os utentes. É a experiência, do contacto imediato e do testemunho do atendimento a outras pessoas que me antecediam enquanto esperava na longa fila de uma repartição de finanças. Má educação, o ar de quem está a fazer um frete por ser obrigado a atender os contribuintes que ali se dirigem, as soluções que são sempre mais complicadas a partir do momento em que eles são chamados a intervir, enfim, o contribuinte que nunca tem razão, o Estado que nunca pode ser lesado.

Estes fiscais dos impostos são uma autoridade desfardada, que nem por isso se coíbe de exibir o complexo da farda de qualquer agente policial ou militar. Como agentes que exprimem a autoridade do Estado, acham-se investidos de um estatuto de superioridade em relação aos utentes. O que os autoriza a um tratamento despersonalizado, pretensioso, deseducado. Pensam que têm os contribuintes na mão, quando, em estado de necessidade, aos utentes só resta uma desagradável deslocação a uma repartição de finanças. Nem que o desempenho fosse meritório, que o produto do seu trabalho tivesse qualidade, nem assim se aceitaria o desplante e o desinteresse com que nos tratam. Para piorar, os padrões dos serviços não se distinguem pela qualidade. E depois temos os sindicalistas do costume, abraçados ao estigma do corporativismo, sempre prontos a defender estes funcionários medíocres que não se desprendem dos "direitos adquiridos" - como se tudo o que se conquista fosse eterno…

A existência destes funcionários desmazelados é uma das razões que me leva a lamentar os impostos que pago. Sejam os impostos que imediatamente incidem sobre o consumo (o IVA), sejam os impostos que levam parte substancial do rendimento do trabalho, ou outros impostos que episodicamente sou chamado a pagar (quem compra habitação própria sabe do roubo protagonizado pelo Estado). Não é a única razão. Aqui devia valer um princípio que se vai enraizando na educação cívica: os direitos dos consumidores. Havendo uma troca entre o consumidor e quem lhe vende o produto, deve imperar uma contraprestação. Em troca do preço pago, o produto ou serviço devem corresponder às expectativas do consumidor. De contrário, assiste-lhe o direito de devolver o produto ou ser ressarcido da quantia paga.

Porque não estender este princípio aos impostos? É utopia, bem sei. Vai contra a técnica dos impostos, educados que fomos a ver no imposto algo que não dá origem a uma contraprestação específica do Estado. Quando se faz uma retrospectiva da conduta política dos sucessivos governos, quando se avalia o atraso que nos domina e como grande parte dele se deve à incúria dos governantes, o diagnóstico é cruel: os serviços (a governação) não encontram paralelo nos impostos que somos obrigados a pagar. Há um hiato desfavorável aos governantes, que alicerça um crédito em favor dos contribuintes.

Perante este quadro, invejo aqueles que fogem aos impostos. Não vejo nesse comportamento uma posição de irresponsabilidade social. Dir-me-ão que é um imperativo de cada cidadão contribuir, com os seus impostos, para a contínua construção da sociedade em que vivemos. Mas quando se observam as persistentes lesões ao erário público, a forma irresponsável como os detentores do poder usam os impostos que nos são subtraídos, a lógica da "responsabilidade social" é questionada.

Os que conseguem fugir aos impostos são os Robin dos Bosques dos tempos modernos. A comparação não será fiel, se funcionar uma analogia absoluta - afinal Robin dos Bosques tirava aos ricos para dar aos pobres. Os que se evadem da obrigação de pagar impostos desempenham esse papel, com uma adaptação de termos: tiram a um rico que insiste na prodigalidade (o Estado que gasta mal) e ficam com o dinheiro que ia engrossar os cofres do Estado. Do que se trata? De um contribuinte que não empobrece ao fugir aos impostos. São os Robin dos Bosques modernos, alvos da minha salutar inveja!

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