Não é inédita a alusão à personagem que tipifica a lógica do “vencer a todo o custo”. É o português com mais sucesso internacional, mas não está nos negócios, nas artes ou na vida universitária, não é cientista, nem muito menos político. É treinador de futebol, trabalha em Londres. Agora dá a cara por uma campanha do BPI, tentando chamar mais clientes, chamariz da batalha concorrencial no mercado bancário. A publicidade que passa na rádio encerra com uma frase que crisma a personagem: “se não fosse para ganhar…eu não estava aqui”.
Ganhar, só conta ganhar. A bebedeira da vitória, em tudo o que fazemos. Nada contra o espírito competitivo. Começa a ser enraizado nos bancos da escola, quando queremos ter as melhores notas, mais popularidade, alcançar sucesso nas competições desportivas. O gene da competição instala-se e toma conta de nós, ensarilha-se nas veias. Quando damos conta, tudo o que fazemos tem a vitória como ponto de mira. É tanta a competição que a bitola cresce. Para muitos, educados a valorizar os fins desprezando os meios, desbrava-se o terreno para a batota, a maquinação, o caciquismo, espezinhando tudo e todos se necessário for.
Alguns, tentados a concordar com o diagnóstico, apontam o dedo acusador aos excessos do capitalismo. Vencer é o cimento da sociedade capitalista, que despreza os sentimentos humanos. Só olhamos à sede de suceder na vida, e como temos que derrotar os que se perfilam como rivais no objectivo, há que os calcar para vergar ao peso da derrota. Porque essa derrota é a nossa vitória. Dizem que a culpa é do capitalismo, numa ladainha que rebenta a bafiento por todos os poros.
O logro há-de ser encontrado algures. Não no capitalismo, na vontade de aumentar o bem-estar material, saciar desejos que se sedimentam no oráculo dos sonhos individuais. O problema vem de outro lado: da natureza humana, não das tendências individualistas que tantos asseveram ser perversão do destino de viver em comunidade. Há um gosto perverso em domar os que estorvam os objectivos projectados. A certa altura, em vez de saborear o gosto da vitória, servido com a derrota do adversário, exultamos com a sua derrota. Sabe melhor a derrota do outro do que a sua consequência – a nossa vitória.
Para lá chegar, tácticas que fariam corar de inveja os estrategos militares de séculos idos. Para diminuir o adversário, vale tudo: iludi-lo, mentir aos demais, dar as doces facadas pelas costas que servem, quente, o seu sangue que sorvemos no cálice que festeja a vitória. Cultivamos a arrogância. Dar o flanco é para os fracos. Por arrasto, outros diademas vêm atrás: a desconfiança de todos, o ensimesmamento, a bebedeira de quem vive deslumbrado pelas suas capacidades que roçam o sobre-humano. É mal do individualismo? Pelo contrário: é fruto da educação para viver em sociedade, que incute a necessidade de singrar às custas do próximo. É o preço da civilização que estimula o colectivo, a penumbra que oculta tantos pecadilhos individuais nos escombros da anónima sociedade.
Os que não escolhem o caminho da vitória são os fracos do novo século. São varridos para o canto, à espera de serem recolhidos pelo cavernoso aspirador que os traga no esquecimento da história. Os outros, os mestres do sucesso, são um escol reduzido. Arrotam a sua superioridade, nem que escondam o caminho ínvio que traçaram até ao estrelato. Cansam-me estas personagens cegadas pelo perfume da vitória. Cansa-me a retórica do sucesso, obliterando façanhas pessoais com o esvaziamento do espírito.
E sei que esta ingenuidade extemporânea a lado nenhum me leva. A não ser ao equinócio de mim mesmo: não sabendo às vezes o que sou, ter a certeza do que não quero ser – um vitorioso compulsivo que atropela quem aparecer pela frente, com a frieza de um carrasco desapossado do seu coração, sempre, sempre, torneado pelos imperativos da vitória. Gratificações fúteis, plenas do efémero que se consome no instante de cada vitória. Ao redor, um séquito de admiradores interessados, lapas incrustadas no sucesso alheio, elas em busca do zénite das pequeninas vitórias que fabricam tantos egos impertinentes.
Desta forma de ser levo nada, quero levar o maior nada que ela possa conter. E refugiar-me nas lapelas do que me abriga, esse local tão repleto das coisas que me fazem dobrar as páginas do amanhã. Não é ganhar que importa: ser, apenas.
Sem comentários:
Enviar um comentário