Uns ventos, soprados do Atlântico, de mansinho fazem penetrar uma brisa que tresanda a censura. Podemos surgir como democratas; podemos jogar o jogo, meramente eleitoral, da democracia; mas quando chegamos ao poder, exercemo-lo com o jugo do absolutismo, numa espécie de democracia ditatorial (ou ditadura formalmente democrática) onde apenas vale a vontade dos iluminados governantes. Mais ainda quando, por artes da vontade popular manifestada no voto, existe maioria absoluta. Já tivemos uma experiência, no consulado cavaquista. Temia que a maioria socrática descambasse para desarranjos de autoritarismo pouco consentâneos com a retórica de “diálogo” e “tolerância” de que os socialistas se dizem tributários.
Vem isto a propósito de uma diatribe do Costa. (Um parênteses necessário. Sei que este tratamento, em que o artigo definido “o” aparece antes do nome, é usado por Louçãs personagens e camaradas saudosos da União Soviética. É a manifestação de desrespeito pela pessoa a quem eles aglutinam o artigo definido ao nome. Aliás, uma redundância: para quê juntar “o” antes do nome – “o Cavaco”, “o Portas”, etc. – se sabemos que Cavaco, Portas, etc. são masculinos, logo não carecem do tal artigo definido? Sei da táctica, usada como sofisticado meio de achincalhamento de adversários. Acho-a lamentável. Arriscando mais uma incoerência, vou lançar mão do tratamento para António Costa, o primeiro-ministro em exercício que herdámos nas férias africanas de Sócrates. Porque “o Costa” ilustra a tacanhez da ascensão a expensas do aparelho partidário, é imagem do caciquismo partidário, da mediocridade política, por tudo isto só merece ser tratado por “o Costa”).
Regresso ao tema: a diatribe do Costa. Escaldado por uma temporada catastrófica de incêndios, o Costa anda aflito. Nos dois anos anteriores, em que também houve recordes de área ardida, o Costa e camaradas não se cansaram de apontar a dedo à incompetência dos governos PSD. Agora a tempestade desabou em cima da cabeça do Costa. Bem feito! Já teve tempo para notar que a opinião pública cai em cima dos ministros que lidam de perto com incêndios – é o caso do Costa – porque não podem escapar à responsabilidade política. No caso do Costa, irresponsabilidade: ao querer justificar as “ignições” (termo em que ele foi pioneiro) se explicam por motivos que não estão sob o controlo do governo: ele é a seca extrema, a irresponsabilidade das populações que não se previnem com a limpeza do mato, o desordenadamento florestal que é herança do passado, a descoordenação no combate aos fogos que também é herança do passado. O Costa, esse, com uma aura de inocência.
Como o clima tem sido inclemente com os socialistas que se abarbataram com o poder, e como os incêndios regressam uma e outra vez, o Costa anda aflito. Daí que tenha tirado uma jogada magistral da cartola: “sugeriu” (e aqui as aspas têm toda a propriedade…) que as televisões tivessem o pudor de não passar imagens dos fogos. Se o Costa negociasse com os canais de televisão um código de conduta para que eles não difundissem imagens do pânico dos populares que sentem o fogo mesmo à porta, prestes a tragar os seus bens, compreendia-se. Até se aplaudia. Não foi isso que o Costa “sugeriu”. Ele quer que os incêndios desapareçam da agenda noticiosa. Menos uma preocupação a chamuscar a agenda mediática do governo. Menos um motivo para que o governo continue a sua escalada rumo aos píncaros da impopularidade.
Os governantes têm um poder de persuasão diferente do comum dos mortais. A “sugestão” do Costa soa a censura encapotada. Estamos num Estado de direito, com garantias de liberdade de expressão. E são intoleráveis as intromissões do poder político nos órgãos de comunicação social. Mas, contudo, elas existem a toda a hora, umas mais subtis, outras nem tanto. O Costa não ordenou nada, não fez censura directa. Mas esta “sugestão” é um aviso para os canais televisivos. Se não corresponderem à “sugestão” do Costa, podem mais tarde sofrer retaliações de outro tipo. Quem sabe se as imagens pungentes da floresta a arder não vão começar a desaparecer dos ecrãs, fazendo de conta que as chamas não reduzem a cinza hectares de floresta? Para contentamento do Costa, e fingimento de um país que ficará anestesiado perante o controlo, feito censura subtil, do Costa e capangas de serviço.
Há formas diferentes de fazer censura. Há a modalidade brutal, dos regimes ditatoriais. E há as censuras subtis, cujos autores se recusam sempre a chamar censura, mas que do estigma não se livram. A censura em ditadura é rejeitada, e bem, com todas as energias. Já a censura democrática, com toda a sua subtileza, é tolerada. É nestes momentos que me recordo que Hitler, quando assumiu o poder pela força dos votos, também se dizia socialista, nacional-socialista. De génese socialista, há que não o esquecer. Estar-lhes-á nos genes, esta propensão para a censura?
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