1.8.05

Embirrações pessoais (os xanatos)

Começa Agosto, entram as férias em acção. Mais de meio mundo vai a banhos, na paralisação necessária para retemperar forças. Os cérebros ficam em salmoura, na recuperação das energias levadas por um ano desgastante. É sempre um ano desgastante. Ao fazer o balanço estival, olha-se para trás e o ano que passou é sempre o ano mais cansativo de que há memória. Quando a cabeça entra em piloto automático, vence a tentação da silly season. Disparata-se além do habitual.

Pela parte que me toca, dou início à silly season com uma embirração pessoal que é uma imbecilidade. Só que nisto de embirrações – quem as não tem? – raras vezes a racionalidade as consegue explicar.

Há quem se irrite com os domingueiros que se arrastam estrada fora no passeio familiar dos tristes. Outros exasperam-se com a música pimba. Há os que perdem a paciência quando o presidente do governo regional da Madeira, toldado pelos vapores etílicos, asneira com a sua verborreia castiça. No capítulo da retórica, outros exibem urticária comichenta quando Sampaio lê os famosos discursos com frases intermináveis embrulhadas num português indecifrável. Há os que se aborrecem ao ver o presidente do Benfica asseverar a grandiosidade universal do “maior clube do mundo”. Certos sectores incomodam-se com o activismo militante do pseudo-cantor Abrunhosa, defensor das causas justas e denunciador de políticos que espezinham os interesses do povo. De outros quadrantes vêm os que se impacientam com a bolorenta capa de glamour que cobre os pretendentes ao estrelato social. Ou os que denunciam a hipocrisia e insensibilidade do jet set da linha de Cascais, com os tiques de ostentação que os elevam ao altar de uma casta inacessível. Como há quem se abespinhe com a vacuidade de surfistas e afins, cabeças cheias de nada, quem sabe se lavadas pela abundância de ondas que os perfuram. E muitas outras irritações pessoais que se possam imaginar.

Por mim, é a tendência varonil para usar sandálias que me perturba os sentidos – os “xanatos” que o povo tece loas. À partida, uma discriminação sexista: não me choca a vista quando são elas a usar o calçado que desnuda os dedos dos pés. Talvez por preconceito pessoal, não sei se motivado pela desdita masculina de ter um corpo carregado de fealdade. Quando são eles que se enfeitam com xanatos de formas estilizadas, acompanhados de calções ou de umas calças que descem até à peça de calçado minimalista, é a irritação que se apodera de mim. Num contra-senso que me consome, porque deve vingar a liberdade de cada um se vestir e calçar como bem entender.

A estética é um domínio muito pessoal. Quando se casa com irritações pessoais, o resultado é explosivo. Se há alguma racionalidade nesta irritação pessoal, ela está na ideia, também ela muito pessoal, de que os pés são a parte menos atraente do corpo humano. E é curioso o contraste oferecido pelo corpo: se os pés são o contraponto natural das mãos, a desarmonia oferece-se na beleza de tantas mãos que não consegue ser replicada pelos pés geralmente tomados pela fealdade. O meu ausente pragmatismo leva-me à conclusão: se é parte do corpo que exibe tanta feiura, então que ande escondida do olhar alheio.

E nisto me consumo, numa contradição inexplicável. Na postura pessoal, esforço-me por ser indiferente ao que o outro pensa sobre o que digo ou o que faço. O famoso “estou-me nas tintas”. Contudo sou incapaz de trajar xanatos – nem quando vou à praia. Concedo, é um calçado prático, mais ainda em tempo de cálidas temperaturas, para evitar a sudação excessiva que semeia um odor pouco agradável. É como avisava no início: estas coisas das embirrações pessoais fazem vencer o inexplicável sobre o racional. Quando o pragmatismo aconselha a desnudar os pés ao leve sinal de canícula, a ditadura da estética (nas opções pessoais) emoldura os xanatos no lugar cimeiro do pódio das minhas embirrações.

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