12.8.05

A hipnose da publicidade

A minha filha pára quando a publicidade invade o ecrã. Fica estática, como se estivesse hipnotizada pelos spots que se sucedem a um ritmo infernal, durando longos minutos. Consta que é comportamento habitual entre as crianças. Os especialistas saberão dar explicações elaboradas, com base científica incontestável. Há traços na publicidade que permitem perceber o alheamento provocado nas crianças. As cores berrantes, os ritmos musicais frenéticos, a sucessão de imagens que imprime dinamismo às mensagens publicitárias. Quando a vejo aturdida e absorta por causa de um spot publicitário, pergunto-me se não será verdade que eles contêm mensagens codificadas que apenas o subconsciente consegue captar.

Não vale a pena alimentar a teoria da conspiração sustentada por aqueles que acreditam que há mesmo linguagem cifrada por detrás de um anúncio publicitário. Fico pelas evidências que os sentidos conseguem captar. E pela persuasão da publicidade. É uma arte requintada, não fosse a publicidade um instrumento crucial para a estratégia empresarial. As empresas investem rios de dinheiro em publicidade. Se o fazem é porque o retorno é compensador. Sem a publicidade, as vendas seriam menores. É um investimento que se justifica em cada cêntimo gasto.

Sendo um veículo de comunicação, a publicidade supõe a existência de alguém que envia a mensagem e o destinatário. A ciência está em embelezar a mensagem, torná-la atractiva, pescando potenciais consumidores que ficam encantados pelo pacote publicitário que embrulha o produto. Quantas vezes é o consumidor atraído por um bem ou serviço devido à dinâmica publicitária, e não tanto pelos predicados do bem ou do serviço? O consumidor deixa-se atraiçoar pelo acessório, perdendo o rasto ao essencial. A publicidade sobrepõe-se ao bem publicitado, numa estranha inversão de prioridades – o instrumento, mais importante que o objecto.

Para isto também contribui a sede consumista que nos domina. Sinal do bem-estar material que tem vindo a aumentar, quem sabe, também, se sinal da materialização que supõe a desvinculação de valores humanos, a fobia do consumo motivou a sobrevalorização da publicidade. Daí que os bons publicitários sejam dos profissionais melhor remunerados (se exceptuarmos os futebolistas de elite e os que se alambazam com dinheiro farto debaixo da mesa). São pagos a peso de ouro, porque o produto da sua criação intelectual faz a diferença entre o sucesso e a mediania de um produto no circuito comercial.

A imaginação passou a ser o atributo mais valorizado na publicidade. Há anúncios geniais, que nos põem a pensar que a imaginação é um campo fértil, tão fértil que parece não ter limites. Há outros que se afirmam pela sua originalidade, por conterem uma mensagem subliminar que não é compreendida ao primeiro contacto. Põe os destinatários a reflectir, mantendo o produto em mente por mais tempo do que a simples observação do spot. E há a publicidade ridícula, por norma os anúncios a detergentes e outros produtos destinados a um público pouco “intelectual”.

O requinte da mensagem publicitária tem levado os profissionais do ramo por caminhos pouco aconselháveis, por pisarem o risco do “politicamente correcto”. Por sorte (para eles), têm passado incólumes, não sei se pela desatenção dos guardiães do tal politicamente correcto. Um exemplo de escola: um anúncio dos desodorizantes Axe, onde se vê um jovem a perfumar-se abundantemente com o dito desodorizante, fazendo um percurso que começa nos pulsos, prossegue nos braços até ao pescoço, e depois desce pelo tronco. A imagem que se segue é a de um encontro entre o jovem e a sua namorada (ou engate de ocasião, para o caso não interessa). Testemunhamos o efeito hipnótico do desodorizante: a rapariga, inebriada pelo odor, percorre o corpo do seu companheiro obedecendo à mesma sequência – pulsos, braço acima, pescoço, dorso abaixo, quando a imagem é interrompida por sugerir que ela se aproxima de zonas ainda mais erógenas.

E ninguém se insurge contra a instrumentalização da mulher? Ninguém levanta a sua voz de protesto contra a ignominiosa desigualdade de sexos, que trata a mulher – neste como em tantos anúncios – como um objecto ao serviço dos prazeres carnais masculinos? Andam desatentas, as seráficas, sibilinas protectoras dos direitos das mulheres. Deviam prestar mais atenção a esta publicidade vergonhosa, e denunciá-la, lutar pela sua proibição. Já que tanta coisa se proíbe e regulamenta…

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