19.8.05

Saudades do primeiro-ministro



Agora que o primeiro-ministro regressou das merecidas férias africanas, já posso falar sobre o assunto. Manda a decência que não se fala dos ausentes.

Deram brado, estas férias. Para uns, Sócrates ousou fazer umas férias de luxo enquanto impõe aos governados um aperto de cinto que é a única solução para lidar com a crise que nunca mais termina. Pura inveja. Estes moralistas de serviço, numa exibição de inveja alheia, destilam a frustração de não poderem fazer umas férias de sonho como as que o primeiro-ministro acabou de gozar. Houvesse dinheiro, e estas luminárias da decência alheia (que não da sua própria) não hesitavam em embarcar rumo a um destino exótico.

Para outros, o primeiro-ministro foi irresponsável por ter abandonado o barco durante quinze dias, logo numa altura em que o país que (se diz) governar estava mergulhado num imenso braseiro. Sócrates é acusado de insensibilidade. Manteve-se no remanso do safari queniano, sem querer saber da desgraça que atingia as pessoas afectadas pelos incêndios. Nem sequer quando a morte bateu à porta de corajosos bombeiros, nem aí Sócrates deu notícias. Desaparecido algures na savana, à cata de bicharada diversa, eis o desígnio do primeiro-ministro que votou o país que governa (é o que se diz) ao abandono.

Estas acusações não fazem sentido. De forma alguma aquelas que ilustram a dor de cotovelo pelas férias sumptuosas que o primeiro-ministro passou. A inveja é coisa feia. Que tem o inconveniente adicional de reforçar a posição de quem é alvo dessa inveja. Tão pouco faz sentido a acusação de abandono do país, como se na sua ausência ficássemos órfãos de uma referência que se quer sempre presente. O homem tem direito às suas férias. E tem direito a gozá-las quando o comum dos mortais entra de férias, no mês de Agosto. Sócrates não tem a varinha mágica para apagar fogos. Lá faria algum sentido que, ao menos, enviasse do longínquo Quénia uma mensagem de condolências quando os bombeiros tombaram em combate, ou quando tantas pessoas perderam os seus haveres na loucura das chamas. Vendo bem as coisas, nem tal se exigia, pois o primeiro-ministro passou temporariamente o testemunho ao delfim, Costa de seu nome.

A oposição indignou-se com a indiferença e a ausência do primeiro-ministro. Compreende-se o protesto da oposição. O seu estatuto de oposição supõe a existência, e a presença, do leitmotiv da oposição. Quando essa personagem se ausenta, a arte da oposição perde razão de ser. Esvazia-se de significado. Aqui aplica-se o velho adágio popular: “preso por ter cão, preso por não ter”. O primeiro-ministro estava ausente, foi criticado pela ausência; se estivesse presente, seria certamente criticado por algo que tivesse dito (o que, no caso do Santana Lopes do PS, nem é difícil acontecer, perante a vacuidade retórica de quem ainda acredita estar em campanha eleitoral).

Quem acusa Sócrates de ter ido de férias e se ter desligado do país que (pensa que) governa, enreda-se numa hipocrisia lastimável. Pela parte que me toca, tive duas semanas em que a sanidade mental se refrescou um pouco, mercê da ausência do primeiro-ministro. Notou-se a sua falta? Nem por sombras. Benditas férias africanas. Provaram que temos uma capacidade de auto-governo que dispensa estas figuras socialistas que, quando actuam, pioram o que já está mau.

Sócrates fez bem em ter passado duas semanas de férias na observação da fauna da savana queniana. Só lamento que não tenha prolongado as férias – mais duas semanas, dois meses, dois anos, quem sabe? Aliás, serve de pretexto para uma proposta inovadora: já que pagamos tantos impostos sem que se veja compensação à altura, porque não criar um fundo com parte desses impostos para garantir férias vitalícias a certas personagens da política que deviam ter vergonha na cara para perceber que estão a mais, que o tempo de serem protagonistas já ficou enterrado algures no passado?

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