Não é preciso ser entendido em política internacional para perceber os ilogismos que a caracterizam. As relações internacionais são o domínio da anarquia, na má acepção da palavra. Sobrepõe-se a hipocrisia, vale o “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”. A regra do mais forte brilha com toda a pujança, com o vigor autorizado pela força das armas. A opinião pública mundial é instruída para caucionar os regimes bons e censurar os regimes maus, distinguindo entre os países que zelam pela paz mundial e os párias, que teimam em desestabilizar a ordem instituída. Daí que os primeiros se ofereçam, magnânimos, para acções de policiamento da ordem mundial. Para que a paz persista, nem que seja pela força das armas.
O mundo, chocado, deparou com o ressurgimento do programa nuclear do Irão. Era de prever: com as recentes eleições, o Irão dogmatizou-se ainda mais. Esperava-se um extremar de posições, com prejuízo para a estabilidade regional e sequelas na ordem mundial. Com a recuperação do programa nuclear, logo se fizeram sentir as preocupações e os protestos em muitos países ocidentais. Teme-se que o Irão venha a possuir armas nucleares. Cenário fantasmagórico, porque um Irão mergulhado na ortodoxia islâmica e na posse de armas nucleares é uma séria ameaça à paz mundial.
Não tenho a mínima simpatia pelo regime fundamentalista do Irão. Como não tenho simpatia alguma pelos países que gastam rios de dinheiro no armazenamento de armas nucleares, num esforço de dissuasão alheia. O que me causa espécie é o entendimento dominante: há países que podem (e devem) ter armas nucleares; outros, impedidos de as obter. As armas nucleares só devem estar ao alcance de pessoas de confiança, ou “pessoas de bem”. E essas residem nos países ocidentais, sobretudo nos Estados Unidos. Tendo-se assentido na sua qualidade de polícia do mundial, manda a lógica que só os Estados Unidos se possam dotar de abundante artilharia nuclear. Aos países desalinhados da ordem instituída, há que vedar a utilização deste perigoso armamento.
Que se saiba, uma arma nuclear tem efeitos devastadores independentemente da sua localização, sem importar quem a pode manusear. Haverá pequenas nuances nos efeitos catastróficos: o know-how mais avançado dos Estados Unidos permite que as suas ogivas sejam mais destruidoras que as dos aspirantes à condição nuclear. E, no entanto, só os países que desafiam a ordem mundial devem ser perseguidos, se teimarem em amealhar um arsenal nuclear. Como se as armas dos norte-americanos fossem generosas nos seus efeitos, e só as detidas pelos países párias espalhem os efeitos mortíferos que se conhecem.
Lamentável é a insistência na loucura do arsenal nuclear. As lições do passado ficaram perdidas na memória. Os realistas aceitam a opção nuclear. Resgatam da memória os tempos da guerra-fria, em que a paz podre entre Estados Unidos e União Soviética se alicerçou no medo das armas que ambos armazenaram. Era uma paz podre, uma falsa paz que dependia da existência de armas. O simples facto delas existirem é a revelação da autofágica natureza humana, do limiar do abismo em que nos encontramos. Concedo: será ingenuidade – a descrença na natureza humana – ou mesmo catastrofismo – pelo receio de uma arma ser detonada e dos efeitos em escala que se podem seguir. Mas alguém consegue viver descansado sabendo que as armas nucleares existem, que o erro humano está sempre à espreita e, pior ainda, que há loucos que inscrevem a destruição como projecto de vida (de morte)?
É indigna a ideia de que certos países são locais perigosos para a localização de armas nucleares. Perigosas são as armas nucleares, ponto final. Apesar dos exaustivos mecanismos de segurança, pode alguém garantir que uma ogiva nuclear dos Estados Unidos não seja disparada (inadvertidamente ou não)? E se os Estados Unidos não admitem que se ponha em causa o direito ao armamento como extensão da sua soberania, terá o Irão (ou qualquer outro país) soberania diminuída para lhe ser vedado o mesmo direito?
É a ordem internacional que temos. Apregoa-se a igualdade dos países, mas trata-se apenas de uma ilusão da retórica. Porque há países mais iguais do que outros, soberanias mais dignas e mais fortes, dnfim, direitos desiguais. Passando ao lado do essencial: que a paz só vinga quando as armas nucleares forem todas, sem excepção, banidas.
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