11.8.05

Bailinho da bandeira

Mais uma vez o estigma da bandeira nacional, que acorrenta fidelidades e deprecia a individualidade que habita em cada um. Os símbolos têm significado variável. Para uns a linguagem simbólica é empolada, como se os símbolos fossem o lenitivo da vida. Para outros os símbolos não passam disso mesmo – de símbolos, o arrebatamento retórico que mobiliza pessoas em torno da causa sinalizada pelo símbolo. E há os desprendidos, os que se alheiam da ilusão dos símbolos, desvalorizando-os.

Quando há competições desportivas que cativam a atenção de meio mundo, uma imagem recorrente prende a minha atenção. Com o sabor da vitória a bater à porta de um atleta de um país do terceiro mundo, na volta de honra o atleta carrega às costas a respectiva bandeira nacional. É um ritual que se repete, nos jogos olímpicos, nos campeonatos do mundo de atletismo, em competições onde os países do terceiro mundo formam atletas que se distinguem dos demais e tocam a sineta da vitória. É a forma que encontram de mostrar ao mundo que também existem. Para consumo interno, quantas vezes a maneira fácil de sedimentar regimes ditatoriais, enaltecendo a grandeza pátria através da façanha do desportista de eleição.

Ontem reparei num pormenor interessante, no final de uma corrida disputada no campeonato do mundo de atletismo, em Helsínquia. O primeiro lugar coube a um atleta do Bahrein. O segundo a um marroquino. O terceiro a Rui Silva, o que serviu para interromper o telejornal, mostrando um dos raros momentos de exaltação nacional, em que se afirma a grandiosidade pátria que nos irmana num grande destino perdido algures na bruma do passado. Não vi Rui Silva a passear a bandeira com o escudo armilar pelo tartan do estádio. Reparei que o marroquino e o atleta do Bahrein fizeram um desvio e pegaram nas suas bandeiras, que ali jaziam na esperança de servirem para um episódio de êxtase pátrio dos seus compatriotas.

Será que as bandeiras de países do terceiro mundo estão estrategicamente colocadas após a meta, à espera de passearem os louros da vitória? Pena que tantas fiquem adormecidas na frieza do tartan, à falta de sucessos. Os que saldam a sua participação com uma subida ao pódio recolhem a bandeira que o comissário político que os acompanha colocou, com a sua diligência profissional, uns metros depois de cruzada a meta.

Se o ritual é exclusivo dos atletas do terceiro mundo, é coisa compreensível. São países que se libertam do anonimato mundial à custa dos feitos desportivos. Uma espécie de Brasil, que aparece no mapa mundi por ser o país mais versado na “arte” do futebol. E os brasileiros sentem-se interiormente recompensados pela grandeza das vitórias futebolísticas, como se elas fossem a coisa mais importante do mundo, como se elas varressem a miséria que enxameia favelas sem conta. Políticos oportunistas vão à boleia. Colam-se ao fervor popular, e poluem a imagem com a subtil mensagem que a vitória dos desportistas é também a sua vitória enquanto grandes líderes da pátria exultante.

Fenómeno curioso, que liberta o odor da alienação a que somos convidados a aderir. A alienação colectiva: convocação para nos despirmos da nossa individualidade, esposando o fervor colectivo de pertencermos a um país que se engrandece com conquistas desportivas. Os atletas, ingénuos, carregam às costas um país inteiro, com a bandeira que abraçam na volta de honra que os glorifica – e ao país. Sabem que, nesse momento, são os estandartes de um país que sai episodicamente do anonimato. Esquecem-se que não foi o país a conquistar a vitória. Foi ele, ou ela, atleta que passou os sacrifícios de um treino intenso, da persistência de lutar contra si mesmo.

São vitórias pessoais. Misturá-las com conquistas de uma nação é ultrajar o feito do atleta. E sobrevalorizar o que não merece ser enaltecido. Não nos equivoquemos: ao festejar o feito de um compatriota desportista, ainda que os parabéns sejam para ele, no nosso íntimo sentimos o contentamento do vitorioso ser “um dos nossos”. Bem lá no fundo, é uma vitória que se divide por “todos nós” – mesmo que “todos nós” estivéssemos encaixados na indolência de um sofá enquanto o desportista se desunhava para levar de vencida os rivais.

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