Em menos de um mês, por duas vezes assisti ao espectáculo macabro. Primeiro na Festa da Cerveja, depois na Feira de Artesanato, sempre no Passeio Alegre – onde o Douro vem repousar nos braços tormentosos do Atlântico. Dizem-me que é estratégia de marketing da reputada casa que confecciona os bacorinhos. A espaços, os recos, que mal chegam a ter uma impressão da vida, desfilam esticados e prontos a degustar, rua fora, perante a exaltação das papilas gustativas dos comensais.
Dizem-me que se trata de uma inteligente estratégia de marketing. O empresário que se especializou nos leitões sabe que temos mais olhos que barriga. A melhor maneira de atrair a clientela é organizar o desfile dos porquinhos, com a sua pele bronzeada pelo tórrido forno. Eles passam, deitados numa travessa de madeira, numa lentidão bem estudada, mesmo à frente dos olhos de quem se passeia para afagar o estômago. Inteligente estratégia de marketing, repetem-me. Ou concorrência desleal; ou falta de rasgo dos outros restaurantes, por não terem a sagacidade de encontrar um chamariz deste calibre.
Não adiro à tentação. A “estratégia” não me é destinada, pois leitão é carne que não entra pela minha boca. Sempre me custou saber que os pobres leitões nascem para, pouco tempo de vida depois, estarem fadados para embelezar uma travessa, enfeitados com gomos de laranja. Para delícia de quem se amesenda na lúgubre expectativa de lambuzar o sentido gustativo com a iguaria. Na repetitiva covardia de quem se mantém, a custo, carnívoro, sempre vi o consumo dos bacorinhos como manobra de horrendo infanticídio.
A descoberta do empresário da restauração assenta que nem uma luva à nossa feição animalesca. A gula vence todos os demais predicados dos sentidos, derrota mesmo as barreiras que a racionalidade pudesse erigir, fustigando-nos pelo dó de alma que é comer um inocente, infante animal. A gula pode com tudo isto. É o império do sentido gustativo, apadrinhar o paladar com o apetitoso bacorinho que se revolve entre os dentes, a língua e as gengivas, para prazer das células que captam o gosto. Não importa que haja algo de macabro na ceifa de vida de um infante animal. Outra vez: é a cadeia alimentar, um fruto da natureza. Há animais que existem para servir os prazeres (ou as necessidades) humanos.
Nem a voraz gula é obliterada pelo deplorável desfile dos leitões rua fora, como se tratasse de uma passagem de modelos. O povo celebra a sua imbecilidade, respondendo ao chamamento de um dos seus pares que teve a “inteligência” (esperteza saloia) de organizar o desfile. Tudo cuidado ao pormenor: as iguarias podiam entrar no recinto de forma mais discreta, directamente para o estaminé em causa. Não, a “estratégia de marketing” foi muito bem pensada: os bácoros entram pelo lado oposto da rua, atravessando todo o recinto em pose triunfante. Quando, no fundo, o que aqui triunfa é a esperteza saloia do empresário e a bestialidade humana, que não se coíbe de aplaudir de pé enquanto os olhos antecipam os prazeres do paladar. Não sem antes a horda se deslocar, em hipnose colectiva, à barraquinha dos leitões.
É a sede consumista, bem nutrida pela fobia capitalista que nos cerca por todos os poros, dirão os arautos da desgraça. Em réplica, direi que é a simples natureza humana a funcionar, por cima de quaisquer divergências de ideologia, que para aqui não é coisa que deva ser chamada. E se o espectáculo a que assisti por duas vezes num espaço de um mês é, para mim, degradante, tenho que aceitar que seja uma visão tentadora para uma larga fatia da população habituada a este expoente da gastronomia tradicional.
Tenho bom remédio: ou deixo de frequentar festas de cerveja, feiras de artesanato e coisas do género (evitando um contacto próximo de mais com o povinho que vota PS), ou viro a cara para o lado, num ensaio de hipocrisia, fazendo de conta que não vejo o que agride a vista. Assim como assim, não consigo escapar de uma incoerência pessoal: quando ingiro vitela, incorro no mesmo “pecado” do infanticídio carnal.
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