15.8.05

Meter água

As autoridades andam numa azáfama em busca de prevaricadores, dos que ousam fazer “furos ilegais” em busca da água que escasseia. Andam, que nem abutres, farejando os vestígios de furos que escapam à alçada da lei. Talvez desconheçam que este é um ano excepcional em termos de secura. Talvez desconheçam que quem, em desespero, procura água através destes furos o faz não por capricho, mas por necessidade.

“Furos ilegais” dão direito a multa que pode ir até 10.000 euros. Ponho-me a reflectir na expressão “furos ilegais”. Quem ouvisse a notícia podia pensar que os transgressores tentam encontrar água em terreno alheio. Nada disso se passa. São agricultores alentejanos em desespero de causa que têm sido apanhados nas malhas da lei. Á míngua de água, com o cutelo fantasmagórico da morte a pesar sobre as rezes, lançam-se na busca de água. Fazem-no nos seus terrenos, não em terrenos públicos ou pertencentes a outras pessoas. Nos seus próprios terrenos. Como se esquecem de pedir a devida autorização, ou não querem comunicar intencionalmente a fonte descoberta, apanham com a desagradável multa que vem piorar mais ainda a sua situação que não anda longe da falência.

“Furos ilegais” são aqueles que fazemos na nossa propriedade. No Estado colectivizante em que vivemos, convencionou-se que a água é um “bem público” – mesmo que haja uma nascente ou um lençol freático no subsolo do meu terreno. É daqueles dados adquiridos que fomos educados a não contestar. A água é um bem público, só a colectividade é que dele pode dispor. Quem fizer tábua rasa deste sagrado princípio fica exposto à mão pesada das autoridades que, zelosas, não se cansam de defender o património público.

Falta a ousadia para questionar os dogmas que nos meteram na cabeça. A água é um bem precioso. Daí a concluir que é um bem público vai uma longa distância. Que os rios sejam bens públicos, que as águas de lagos e albufeiras estejam nesta categoria, dou de barato. Inaceitável é a limitação espacial do direito de propriedade à fina camada de terra onde repousa o terreno de que somos proprietários. Se no subsolo encontramos água, ela só nos é garantida depois de pedirmos as devidas autorizações para os furos que partem na sua peugada. Não andamos longe das soluções soviéticas que atropelam a propriedade privada. Com a chancela que remonta aos tempos do salazarismo, num estranho conluio que ensaca os extremos na mesma categoria.

No Alentejo ferido de morte pela seca assassina, agricultores são multados por terem buscado fios de água que resgatem da morte os seus animais; em Trás-os-Montes um deputado obrigatoriamente socialista (Adão qualquer-coisa) foi protagonista de um atentado à decência, de um recalcamento à inditosa igualdade que é bandeira da retórica destes socialistas bafientos. Na sua santa terrinha, lá para os lados de Bragança, o deputado construiu uma mansão. Com piscina e tudo. Imagem larvar de reminiscências feudalistas: é a maneira destes senhores serem vistos como os todo-poderosos da aldeia, com a vistosa mansão que mete na algibeira as modestas condições de vida dos aldeões que por lá se quedaram. Quis o parlamentar encher a piscina. A solução não podia ser mais óbvia: esvaziar o depósito que serve a aldeia!

A retórica da igualdade apregoada por estes malditos socialistas não passa disso mesmo, de retórica. Falam uma coisa, praticam outra bem diferente. Enquanto no Alentejo há agricultores que vivem com a corda bem apertada à garganta e que são multados por tentarem encontrar uma solução em desespero de causa, em Trás-os-Montes um homem de uma casta elevada exaure a água que serve a aldeia para se dar ao luxo de encher a sua piscina.

Gostava de viver naquela aldeia transmontana. Gostava de ficar, umas horas que fosse, sem água devido ao requinte do deputado. Garanto que não pedia licença ao deputado e ia-me banhar na sua piscina. A caminho do local, convidava todos os habitantes da aldeia para me seguirem. Havia de ser uma imagem cheia de encanto: uma aldeia inteira acampada na piscina do deputado, desfrutando da água que ele desviara dos aldeões! Afinal ele meteu água: desviou-a do consumo público para satisfazer um capricho pessoal. Meteu água, na deplorável tentação da casta política para se auto-colocar acima dos comuns mortais que os elegem e que ela supostamente serve.

Faltará coragem às zelosas autoridades para, aqui sim, actuarem como devem?

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