16.8.05

Da incoerência

Dá-me um imenso prazer denunciar as incoerências dos outros. Sobretudo as que partem de sectores que desfilam com a proeza das certezas inquebrantáveis. Acontece muito com certas esquerdas que por aí andam. Já por algumas vezes escrevi textos que desmontavam incongruências que só o meu pretenso iluminismo teve o condão de detectar.

Há momentos em que se deita o olhar para trás, em jeito de balanço. Neste caso, para reconhecer como é fácil desmontar o pensamento alheio com as brechas que ele abre, sem que os seus defensores sejam capazes de nelas reparar. É fácil, muito fácil, apontar o dedo às incoerências alheias. Mais difícil é admitir as nossas próprias incoerências. E, no entanto, deve ser ainda mais fácil encontrá-las no pensamento que esboçamos. É um problema recorrente: olhamos para fora de nós, quando primeiro devíamos ter o cuidado de varrer a casa por dentro, soltar os esqueletos guardados em armários fechados a sete chaves.

E será importante ter a percepção das falhas que rompem a “solidez” das nossas ideias? É um acto de humildade intelectual. Mesmo quando aqui escrevo coisas que parecem encobrir certezas inabaláveis, reparo que elas são um exercício de desconstrução de ideias alheias, ideias com as quais não me identifico. Mais do que expor um pensamento próprio, tento denunciar as falhas que desmontam a coerência de ideias que estão nos antípodas do meu posicionamento. Só através deste exercício de desconstrução é que acabo, indirectamente, por revelar as minhas próprias posições. Expondo-me. Às contradições que, mais tarde ou mais cedo, questionam a consistência do meu pensamento.

Tudo isto seria importante se houvesse a pretensão de doutrinar. Como ela não existe, como parto de um princípio de tentar destruir pela base ideias a que me oponho, satisfaço-me com o exercício. É nesta altura que os críticos, exibindo algum incómodo (com razão), contrapõem que me limito a destruir, sem querer gizar a alternativa. Terão razão. É uma coisa feia que confesso, mas que me traz um prazer incomensurável: quando detecto as tais manifestações de incoerência que desmantelam a razão suprema com que esses sectores se apresentam.

Incontáveis incoerências que um dedicado crítico que passasse a pente fino os meus escritos conseguiria encontrar. Acontece que, passados alguns dias após a escrita de um texto, sou o primeiro a observar as falhas. Já foi tempo em que isto era motivo de tormento interior. Ficava incomodado ao descobrir que, inadvertidamente, hoje defendia algo que era a contradição de ideia exposta dias antes. Entretanto, passa o tempo e acumulam-se os anos, crescem alguns cabelos brancos, e abeira-se a maturidade que remete para os fundilhos os tempos da adolescência vivida a grande velocidade. Com uma deliciosa consequência: aprender a não me levar muito a sério…

Se estes textos aspiram a alguma coisa é apenas ao efémero. Consomem-se no instante – no instante da sua escrita, da sua leitura. Como tanto gosto de fazer as vezes do detective que encontra as ranhuras na parede do pensamento alheio, prestes a desmoronar-se, aceito que o mesmo se faça quando alguém lê o que por aqui escrevo. Com o salutar efeito de suscitar a controvérsia, a troca de ideias – reconheço, nem sempre com espírito desportivo, porque é mais fácil pregar a tolerância do que praticá-la.

O niilismo é levado ao limite: para chegar a uma dimensão em que nem o próprio eu é encarado com grande seriedade. Num registo confessional, para dizer que sou, talvez, o maior crítico dos meus textos. Tantas são as vezes, quando os acabo de escrever de uma penada só, e os releio para corrigir erros que escaparam à primeira revisão, que chego ao final descontente com o ensaio. No diagnóstico que se repete: ser incapaz de me levar a sério!

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