8.8.05

Lei da selva


A leoa corre, desenfreada, atrás da gazela que se pôs à mão de semear. Uma coreografia que se apresta a acabar num acto macabro, quando a gazela perde o fôlego e escorrega, embrulhando-se nas suas patas. Fica indefesa, perante o olhar esfaimado da leoa. Num salto mortífero, a leoa dá a estocada final. As suas garras afiadas ferem de morte o pequeno animal, que esboça os gritos de dor que lhe arrancam as amarras da vida. As poderosas mandíbulas do felino sabem onde arpoar: os dentes cortantes espetam-se no pescoço da gazela, sangrando-a até à morte.

Revejo as imagens da macabra coreografia. Os segundos infindáveis, na desesperada tentativa de fuga da morte empreendida pela pequena gazela. As imagens passam em câmara lenta, emprestando uma inaudita beleza aos passos harmoniosos da gazela e da sua perseguidora. Na velocidade da câmara lenta, parece que tudo se passa numa agoniante lentidão. A aflição da presa que o está prestes a ser, no desespero dos pinotes que a levam a mudar de trajecto, a tentativa final de despistar a leoa. E a agonia famélica da caçadora, a urgência de abocanhar o pequeno animal que desfila perante os seus olhos ávidos, na antecipação do repasto que as árvores da savana irão testemunhar.

Essas imagens em câmara lenta mostram uma beleza arrepiante. Pudesse esquecer no que culmina o acto da perseguição, e diria que a coreografia dos dois animais não pede meças aos actos de criação artística de bailarinos profissionais. Decerto há um arremedo deste bailado negrume quando coreógrafos profissionais ensaiam bailados modernos que se revêem na linguagem gestual de animais selvagens, na sua selvática luta de morte e sobrevivência por entre o terreno aberto da savana.

Os passos articulados, em velocidade estonteante, irmanam a caçadora e a presa. No macabro pas-de-deux exprimem a urgência da vida que as leva à parceria. A presa, num esforço aflito para escapar das garras assassinas da caçadora. A fuga da morte certa, que exige a mestria para despistar a leoa. Esboça as súbitas mudanças de direcção, na esperança que a corpulenta leoa não tenha agilidade para adivinhar por onde segue, de surpresa, a gazela de coração palpitante. E a leoa, já enfraquecida pela ausência de alimento por dias consecutivos, ao saber que não pode falhar a investida, não se vá prolongar a fome que a agonia no definhamento das forças. Quanto mais tempo tardar a captura, vai ficando exangue de forças que não a deixam preparada para a arte da caça que lhe traz a sobrevivência.

Os instantes da perseguição encerram uma hedionda beleza. Pela coreografia que leva os dois animais a percorrerem furiosamente os trilhos empoeirados da savana. Pela velocidade alucinante que se solta da sua louca vontade de serem antagonistas. A sórdida beleza perde os atributos do belo, e faz-se apenas hedionda, quando a lei da natureza se consuma. A leoa derruba a pequena gazela, que ainda esboça um derradeiro olhar de piedade. É então que as duas vidas se transformam numa morte para saciar a sobrevivência da caçadora. É a lei da selva, o ciclo da sobrevivência na ordem natural da cadeia alimentar, que culmina. Violentas são as imagens que se seguem. Da violência de uma carcaça ensanguentada, alarvemente despedaçada pelas mandíbulas da leoa entregue à sua fome.

Tudo termina nos despojos indiferenciados da gazela, saciada que está a leoa. A fome animalesca na sua imagem sublime, mas ao mesmo tempo brutal. A leoa satisfeita repousa nas imediações da presa. Os bigodes ensanguentados são a ilustração do troféu conquistado, o troféu acabado de devorar. Arfante, porque tomada pelo pino do calor, descansa ostentando o orgulho da peça de caça que esteve a comer desalmadamente. As gazelas felizardas passam nas imediações. Dir-se-ia que fazem o luto entristecido pela companheira que se entregou às garras da leoa. Passeiam o luto, em passo lento, não longe da leoa. Sabem que o podem fazer, para infelicidade da gazela devorada, porque a leoa se saciou. Ela olha as gazelas curiosas que se abeiram, sempre com uma distância de segurança. Olha-as com a indiferença de quem está refastelada com a iguaria.

É a lei da selva, a cadeia alimentar que serve certos animais indefesos na bandeja dos reis da selva. E uma lição: se há momentos em que me incomoda ser carnívoro, pela violência gratuita sobre os animais que enviamos para o matadouro, interrogo-me se a lição da lei da selva não é um sinal que afasta as dúvidas que me atormentam.

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