8.7.08

O que é a desonestidade intelectual?


É isto, outra pérola quinzenal de Carla Machado no Público (de ontem):

26 de Juuho foi o Dia Internacional contra a Tortura. Um estudo recentemente divulgado pela Universidade de Maryland revelou que a maioria dos Europeus rejeita a tortura, enquanto esta é aprovada por cerca de metade dos Americanos. À partida, são resultados que nos agradam. Reforçam a convicção de uma certa superioridade civilizacional e permitem tratar a tortura como “coisa dos outros”, dos bárbaros. Com o paradoxo de neste caso os bárbaros serem os donos do mundo.

Não tenho a menor simpatia pelos Estados Unidos. Só que não sou anti-americano primário. Uma diferença abismal. Que me impede de resvalar para a irracionalidade de afirmações como a reproduzida. Aliás, quando leio estas excitações de anti-americanismo primário, logo me apetece descair para uma herética (considerando o meu pensamento) adoração dos Estados Unidos. Às palavras da “docente da Universidade do Minho”: cá na Europa a tortura é rejeitada em larga escala, atributo que os Estados Unidos não conseguem exibir. Daí o contentamento da docente universitária: lê nessa diferença estatística “a convicção de uma certa superioridade civilizacional” (Europa sobre Estados Unidos). A tortura, coisa hedionda (nisso coincido com Carla Machado), é ““coisa dos outros”, dos bárbaros”.

Isto dá pano para mangas. Primeiro, a retórica do “nós” e “os outros”, quando tantos sectores (que, suponho, Carla Machado frequenta) não se cansam de enfatizar as delícias do multiculturalismo, de como deixa de fazer sentido a separação ente um “nós” e todos os “outros”. Para os sacerdotes do multiculturalismo, somos todos uma e a mesma coisa. Segunda observação: também faz parte do código genético de movimentos de que, suspeito, Carla Machado será simpatizante (mais à frente há um revelador “como afirma Chomsky”…), a recusa do etnocentrismo. É enternecedor ler uma “docente universitária” decretar a superioridade civilizacional dos europeus sobre os norte-americanos, quando a adivinho a reprovar com aspereza as tentativas de certos ocidentais (erradas, diga-se) em tratar os muçulmanos como “bárbaros”. Concordo que a tortura é deplorável – mas não haverá tortura encapotada na polícia e nos serviços secretos de países europeus? Sugiro uma espreitadela em relatórios anuais da Amnistia Internacional. Nos Estados Unidos, alguns Estados ainda aplicam a pena de morte? Também concordo que é lamentável. E a administração Bush promoveu essa excrescência chamada Guantánamo? Outro vergonhoso desvio, mas um desvio pontual, explicado pela sucessão de asneiras em que a administração Bush foi pródiga. Daí a qualificar os norte-americanos como “bárbaros” não será excessivo?

Há alçapões abertos por quem os costuma denunciar de forma efusiva. Ironicamente, os alçapões onde essas mesmas pessoas acabam por cair, sem remissão. Quem afirma a superioridade civilizacional dos europeus, por contraponto aos “bárbaros” norte-americanos, não está a cultivar um tipo mais sofisticado de etnocentrismo? É um etnocentrismo conveniente a determinadas militâncias. Com outra agravante, pouco abonatória para quem se apresenta como “docente universitária”: as generalizações fáceis são outra armadilha que depressa desfaz em nada as sábias teorias elaboradas. Admito o direito aos ódios de estimação (quem os não tem?). Todavia, a respeitabilidade intelectual exige maior cuidado nas conclusões tiradas. É a própria Carla Machado a revelar que a tortura “é aprovada por cerca de metade dos Americanos”. É possível generalizar como, duas frases à frente, o faz?

Mais adiante, muda de assunto. Perora sobre o museu que a autarquia de Santa Comba Dão dedicou aos pertences do ditador Salazar. Protesta indignação: “Preservar a memória é uma obrigação central da democracia. Mas tal nada tem a ver com reunir meia dúzia de objectos pessoais na terra do ditador e tratá-los como peças de museu. Contar a História não é dela acumular fragmentos descontextualizados. Tal forma de narrar o passado mais não é do que outra forma de o camuflar.

Se, por um lado, aceita o dever da democracia “preservar a memória”, por outro lado condena a iniciativa por suspeitar que ela se destina a branquear a história do Estado Novo. Poderá revelar o critério que fixa a fronteira entre museus que preservam a história e outros que apenas são um camuflado do passado? A estas erupções alérgicas de quem depois se recusa a tratar na mesma moeda outros totalitarismos tão hediondos que se situam à esquerda (olhados com a condescendência típica de um certo romantismo), eu chamo sectarismo. O que dirá Carla Machado da toponímia local que faz a sagração de próceres do comunismo local e internacional? O sectarismo também é produto da desonestidade intelectual.

Quem se apresenta como docente universitária não se pode desligar de mínimos de rigor, nem demitir de exigências de honestidade intelectual. Parece que estou enganado. Talvez sejam as aragens da pós-modernidade em que tudo se relativiza. Até o significado de honestidade intelectual, quando é conveniente às causas de que se é fervoroso militante. A cegueira não deixa ver nada. A cada um, a sua desonestidade intelectual.