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“Reza comigo, meu filho”, exortou o velho padre com a voz trémula.
Era o epílogo de três horas de expiação. O cura interrogou a infinita paciência
se acaso não estava a fazer as vezes de psiquiatra. Talvez fossem as dores da
crise. À míngua de riqueza, e como os préstimos dos psiquiatras são alvíssaras
dispendiosas, os crentes (e outros nem tanto) visitavam o confessionário
amiúde.
Aquela alma sobressaltada
aparecera com dúvidas do foro existencial. As perguntas eram excruciantes. O
padre reparou na atormentação interior que dilacerava as veias do homem. Ao
menos foi honesto logo ao início: “não
sou crente. Atende-me na mesma?” (Naquela longa conversa, nunca tratou o
padre por padre, querendo atestar o ateísmo pela ausência de tratamento
respeitoso.) O padre fez jus aos pergaminhos que a doutrina prega: “não me posso negar a ouvir um filho de deus.
Ao que vens?”
O homem era um archote de
interrogações que ateavam uma farta combustão interior. O sacerdote notou que
as olheiras cavadas tinham explicação. O homem começou por advertir que tinha
remorsos por não conseguir acreditar numa divindade qualquer. Admitia que a sua
existência fosse um navegar de águas serenas se conseguisse ser o contrário do
que indomáveis forças interiores o levavam a ser. Começou a desfolhar as
interrogações que o mortificavam. O padre foi respondendo como podia, como o
cansaço da idade e da hora tardia permitiam. Até que se detiveram na
interrogação mais lancinante de todas. Para ambos. O homem queria saber se o
céu, o prometido receptáculo celestial onde são depositadas as almas boas, é de
entrada difícil.
O padre coçou a cabeça. Desceu
ao nível da honestidade do homem que era improvável visita de confessionário: “a impossibilidade da física impede a
resposta à tua pergunta. Podia desfiar os dogmas em que fui treinado, mas
suspeito que não ficavas satisfeito com a resposta.” O homem retorquiu, sem
esconder uma certa ira: “não fiquei
satisfeito com a sua prudência. Quero uma resposta inequívoca. É para isso que
vocês são treinados.” Sucumbindo ao cansaço, o padre deixou escapar as
palavras que queria para pôr cobro à função: “o céu é indolor. Até tu verás.”
Nessa noite, o homem deitou-se
sem as insónias que o consumiam há meses. A morte já não o atemorizava. Os
olhos aterraram no sono no momento em que refletia sobre a paradoxal condição:
foi preciso um sacerdote de uma religião em que descria para inaugurar o
sossego tão apetecido.
1 comentário:
Esta criatividade humana, tão prolífica, que desenha céus e limbo, capaz, ao mesmo tempo, de urdir angústias vãs...
E,subitamente, precisamos tanto de respostas ao que não nos é vital...
E como um sacerdote facilmente se converte no marketeer da doutrina católica cristã e, perante o descrente, vasculha argumentos científicos...
Enternecedora essa sagacidade de adaptação ao interlocutor, assim como a necessidade imperativa de oferecer respostas.
Calou-lhe a inquietude e basta.
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