28.6.12

O céu é piedoso


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Reza comigo, meu filho”, exortou o velho padre com a voz trémula. Era o epílogo de três horas de expiação. O cura interrogou a infinita paciência se acaso não estava a fazer as vezes de psiquiatra. Talvez fossem as dores da crise. À míngua de riqueza, e como os préstimos dos psiquiatras são alvíssaras dispendiosas, os crentes (e outros nem tanto) visitavam o confessionário amiúde.
Aquela alma sobressaltada aparecera com dúvidas do foro existencial. As perguntas eram excruciantes. O padre reparou na atormentação interior que dilacerava as veias do homem. Ao menos foi honesto logo ao início: “não sou crente. Atende-me na mesma?” (Naquela longa conversa, nunca tratou o padre por padre, querendo atestar o ateísmo pela ausência de tratamento respeitoso.) O padre fez jus aos pergaminhos que a doutrina prega: “não me posso negar a ouvir um filho de deus. Ao que vens?
O homem era um archote de interrogações que ateavam uma farta combustão interior. O sacerdote notou que as olheiras cavadas tinham explicação. O homem começou por advertir que tinha remorsos por não conseguir acreditar numa divindade qualquer. Admitia que a sua existência fosse um navegar de águas serenas se conseguisse ser o contrário do que indomáveis forças interiores o levavam a ser. Começou a desfolhar as interrogações que o mortificavam. O padre foi respondendo como podia, como o cansaço da idade e da hora tardia permitiam. Até que se detiveram na interrogação mais lancinante de todas. Para ambos. O homem queria saber se o céu, o prometido receptáculo celestial onde são depositadas as almas boas, é de entrada difícil.
O padre coçou a cabeça. Desceu ao nível da honestidade do homem que era improvável visita de confessionário: “a impossibilidade da física impede a resposta à tua pergunta. Podia desfiar os dogmas em que fui treinado, mas suspeito que não ficavas satisfeito com a resposta.” O homem retorquiu, sem esconder uma certa ira: “não fiquei satisfeito com a sua prudência. Quero uma resposta inequívoca. É para isso que vocês são treinados.” Sucumbindo ao cansaço, o padre deixou escapar as palavras que queria para pôr cobro à função: “o céu é indolor. Até tu verás.
Nessa noite, o homem deitou-se sem as insónias que o consumiam há meses. A morte já não o atemorizava. Os olhos aterraram no sono no momento em que refletia sobre a paradoxal condição: foi preciso um sacerdote de uma religião em que descria para inaugurar o sossego tão apetecido.

1 comentário:

Vanessa, a Mãe Possessa disse...

Esta criatividade humana, tão prolífica, que desenha céus e limbo, capaz, ao mesmo tempo, de urdir angústias vãs...
E,subitamente, precisamos tanto de respostas ao que não nos é vital...

E como um sacerdote facilmente se converte no marketeer da doutrina católica cristã e, perante o descrente, vasculha argumentos científicos...

Enternecedora essa sagacidade de adaptação ao interlocutor, assim como a necessidade imperativa de oferecer respostas.

Calou-lhe a inquietude e basta.