31.1.13

Os vultos da cultura deviam pairar sobre a lei e o comum dos mortais


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Os vultos da cultura são desvalorizados, e isso é uma injustiça. O grande público vira-se para outras estéticas e quer que os grandes vultos da cultura sejam astetas. Subavaliam os seus contributos. Pudera. A cultura não é tangível ao valor – lá se costuma dizer.
É por ser intangível que aos vultos eternizados devia ser cunhado estatuto compatível. A lei devia ser igual para todos, menos para os grandes vultos da cultura. Para não se repetir a humilhante exposição de um famoso maestro convocado a tribunal, réu em crimes que achavam fundamento em luxos privados pagos com o dinheiro dos contribuintes. Acossado, e antes de chamar abutres aos jornalistas, deu à estampa artigo de opinião que mais parecia uma defesa pública (já que o tribunal, adivinhava-se, ia condená-lo). A páginas tantas, o maestro soltou pergunta de retórica: queriam que levasse outros maestros, tão figuras gradas da cultura como ele em pessoa, a jantar em tascas? Queriam deixá-los alojados em pensões manhosas?
O povo, mergulhado na sua néscia condição, devia ser obrigado a respeitosa genuflexão sempre que um dos grandes vultos da cultura abrilhantasse a rua com a sua presença. E o povo, pagador de impostos como soe ser, haveria de exultar ao saber que um pecúlio dos seus impostos era vertido nos luxos pessoais dos grandes vultos da cultura. Há maestros que se contentam com viagens a destinos exóticos com hospedagem de cinco estrelas, refeições opíparas em restaurantes aclamados, charutos e até peças de lingerie. Um vulto da cultura deve merecer tratos de polé. A criatividade, está provado, advém das sumptuosidades que alimentam o artista. Lençóis de seda, uma corte de empregados levando o vulto da cultura ao colo, prazeres gastronómicos e inerentes, até os prazeres carnais devem ser saciados que a criatividade refulge quando tais prazeres andam em alta (daí as peças de lingerie).
Quem não entender isto é mais um do exército de broncos que, à sombra da “democratização” de tudo e mais alguma coisa, acha que os grandes vultos da cultura são tão iguais como o resto da maralha. Desenganem-se, não são. A tremenda injustiça praticada sobre o maestro tem um fim marcado: o maestro vai ter de devolver uma soma astronómica em dinheiro para não ir preso. A sociedade ditou que as alcavalas que tanto dinheiro custaram eram ilegítimas. A maior humilhação é a de uma sociedade que não dá valor aos seus grandes vultos culturais.
Não admira que sejamos atrasados. 

30.1.13

O homem que mudou tantas vezes de nacionalidade que já não sabia onde pertencia


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(Mote: Tina Turner vai ser suíça)
Nasceu em Madrid. O pai era turco e a mãe búlgara. Os avós dividiam-se por outras tantas origens pátrias (Cazaquistão, Macedónia – antes de serem terras independentes –, Bolívia e Itália). Aos seis anos, os pais emalaram os pertences e foram experimentar a vida na Argentina. Começou a universidade no Brasil e acabou-a no Canadá. Quando concluiu os estudos, viajara como poucos: contava para cima de cem os carimbos de diferentes países estampados no passaporte. Que ostentava com orgulho. Tinha perdido a conta dos amigos que fizera, tantas as terras visitadas, tantas as culturas em que se banhara.
Por alturas em que começou a trabalhar já não se sentia espanhol. O passaporte era-o. Mas também tinha um passaporte argentino e um canadiano (mercê do primeiro trabalho em Vancouver). Era o início da romaria das nacionalidades. Ao fim de uns meses fizeram uma oferta de trabalho irrecusável e mudou-se para a Noruega. Homem de paixões fulminantes (paixões por tudo o que atraísse o seu interesse), casou-se ao cabo de uma paixão dessas. Por matrimónio, passou também a ser norueguês. Tal como as paixões o tocavam à flor da pele, depressa ficavam inermes. Com o primeiro divórcio veio a partida para o Japão. Onde se casou uns anos depois, adicionando mais uma nacionalidade ao rol.
Os afazeres profissionais levaram-no a visitar quase todos os países do mundo. E a espalhar o charme que arrebatava mulheres indígenas com um punhado de galanteios. O nomadismo e o reboliço interior fermentaram uma coleção de casamentos (precedidos dos exigíveis divórcios). O homem colecionava consortes, todas de diferentes pátrias. Só por casamento adicionou nove nacionalidades diferentes. Se havia alguém que podia convocar as credenciais de cidadão do mundo, era ele.
Às vezes perguntavam-lhe se entre a amálgama de nacionalidades tinha uma preferida. Ou se, por entre todas elas, uma tinha proeminência espontânea. Fazia sempre um silêncio cerrado e punha o pensamento distante, como se se ausentasse do lugar. E respondia: “eu pertenço a todos estes lugares. Tem dias em que me sinto mais argentino, outros em que me acho canadiano, outros libanês, outros moçambicano – e por aí fora. Tem dias em que me sinto de uma nacionalidade que eu não tenho, só por evocação de um país onde estive. Se calhar não tenho pertença. E sou livre por isso mesmo. Como o não são aqueles que se dizem pátrios de um lugar qualquer.

29.1.13

A baía dos lamentos


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Há uma ciência oculta quando o punhal desce a sua nostalgia em forma de lamento. Persignam-se as almas, tementes, não vão as curvas traiçoeiras do porvir espalhar outra armadilha que se converta, quando o porvir chegar, em lamento. Os lamentos são irmãos siameses do arrependimento.
Aportam, as almas madraças, ao cais de onde se contempla a larga baía. Dir-se-ia, ao que a distância deixa perceber, que as embarcações reduzidas à pequenez de quem as olha de tão longe seriam a forma dos lamentos a ecoar nas masmorras da memória. A memória teima em enredar o quotidiano nas teias terçadas pelos lamentos, sitiando o tempo presente. Não há maior armadilha, as evocações que são nutriente da melancolia. Pode não haver choros, mas o rosto caído e o pensamento decaído no formol da memória transbordando arrependimentos compõem uma ladainha. E, todavia, mal o olhar interior se entrega à indulgência envenenada dos lamentos, sem entender que é a sua prisão indelével, as lágrimas vertidas são uma granada detonada contra o tempo vindouro.
Não percebem como navegam em campo movediço. A cada estrofe que entoa um lamento, há tempo desgastado, tempo que devia ser consagrado a um refrigério qualquer, um que trouxesse as novas cambiantes que renegam na posteridade os lamentos de outrora. Não vá o corpo andar às arrecuas, em desnorteada errância, e tropeçar nas mesmas ciladas conhecidas de então. É disso que tratam os lamentos: uma revisitação cega a um antigamente que merecia padecer nas imemórias. Nem alquimia alguma conseguiria a proeza: mudar um lamento, transformá-lo numa proeza da memória. (Talvez só a preceito de entidades divinas congeminadas a meio de um sonho cujos dedos tocam os umbrais de um pesadelo.)
Ao corpo que recua, ávido por regressar ao pântano das lamentações, esperam os alçapões que a demanda tresloucada não consegue ver. Depois sobram as dores excruciantes. Lá por dentro, por denodo da demencial lamentação e pelas cicatrizes de a ela voltar. As lamentações vogam numa água rançosa. Através delas, não se honra o magnífico tempo por diante.

28.1.13

A conspiração dos porcos


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Nogueira, o líder do sindicato dos professores, fação comunista, acusou a GNR de ter retardado a passagem dos autocarros pejados de professores convocados para uma manifestação em Lisboa. Houvera um acidente na autoestrada com um camião de porcos. Os bichos ficaram espalhados na via, obstruindo-a. Intui-se a premeditação da polícia. O grau fica ao gosto do freguês: ou por inação, devendo ter removido os recos e o camião com especial zelo, pois havia manifestação convocada; ou por dolo, travando a viagem dos manifestantes para mais uma manifestação daquelas que levam três quartos das esquerdas a sentenciar a perda de legitimidade do governo (na rua).
Eu, se fosse aos camaradas do sindicato dos professores (e aos camaradas do partido que os comandam à distância), ia mais longe na elaboração do cenário. Diria que o condutor do camião, antigo combatente do ultramar que tem um cantinho em casa onde continua a deificar Salazar, se meteu à autoestrada com o camião sobrelotado de bácoros. Ele sabia que os professores filiados no sindicato comunista da casta tinham sido arregimentados para uma dessas irritantes manifestações de rua. O condutor do camião não conseguia meter travões às insónias de cada vez que na televisão passava o folclore das manifestações com cartazes e pregões que carregam um respeitável lastro de criatividade.
Já não longe de Lisboa, o motorista fez uma manobra brusca. O camião tombou sobre o lado esquerdo, soltando-se o freio da grade onde os porcos estavam acantonados. Uns pereceram esmagados sob o gradeamento torcido. A maioria soltou-se, passeando no asfalto da autoestrada, outros pastando erva no separador central, outros atravessando a via contrária em busca do pasto da berma oposta. O pandemónio.
O ministério da tutela devia processar o camionista que hipotecou o sucesso da manifestação. Foi um atentado contra os direitos dos trabalhadores, crime que devia ser punível com pena de prisão severa (caso o código penal fosse da lavra dos camaradas). E devia meter um processo disciplinar às chefias da brigada de trânsito, por não terem sido diligentes na remoção da bicharada. E mais: se não fosse possível capturar todos os futuros presuntos em tempo útil, a polícia devia abrir um corredor especial só para os autocarros dos professores ansiosos por peregrinarem na manifestação.
Isto é, está bem de ver, uma terrível conspiração dos porcos contra os trabalhadores oprimidos. Já se sabia que os opressores o eram. Porcos. 

25.1.13

Ruço, o estouvado incorrigível


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Os amigos tinham uma barrigada de riso à custa do Ruço. O rapaz, desassisado como ninguém, fartava-se de asnear. Não o fazia de propósito. Era genético, como se os progenitores tivessem, por má arte, metido uns genes imprudentes no ADN do pequeno. Os amigos, estarolas e sempre à espera de desastres que desatassem o riso desbragado, nas folgas dos disparates traziam à colação façanhas anteriores que, mesmo à distância das recordações, faziam chorar de tanta gargalhada junta. E o pequeno e desajeitado Ruço ficava ali, impávido e enrubescido, em pose de testemunha involuntária das suas proezas pouco recomendáveis que eram razão de sobra para os estroinas se aliviarem das angústias pós-adolescentes.
Lembravam-se do Ruço a bater com as fuças no chão enlameado, naquele dia que foram andar de bicicleta para a pista de motocrosse. Ou de como ele ficou com as calças todas molhadas, na zona que desce dos genitais para os joelhos, e não fora razão outra que fosse terem-se libertado as águas, quando por fim uma moçoila se prontificou a livrá-lo do estado virginal em que repousava desde a nascença – e como a efeméride ficaria adiada para segundas núpcias, que não foram do conhecimento dos amigos que patrocinaram a ocasião falhada. Ou de outra vez, quando teimaram em dissolver a letargia das longas férias com partidas variadas (uns exemplos: tocar às campainhas e fugir a sete pés, molhar homens engravatados com cerveja em lata previamente agitada para toda a espuma se soltar na hora certa, pintar os para-brisas de carros pimpões com batom feminino fartamente rubro, colocar cubos de gelo debaixo do avantajado rabo de senhoras gordas no exato instante que antecedia o assentamento no banco do autocarro, ou travar o carro como quem promete boleia a quem a pedia na noite avançada e logo avançar uns metros quando o transeunte quase metia a mão na porta do carro).
Numa dessas partidas, estavam os da vida airada a distribuir chapadas pelos passageiros do comboio de longa distância que abalava do cais, quando notaram nuns ciganos que iam em sua direção para tirar desforço. O pobre Ruço, distraído como sempre, ficou aos pulos a ensaiar a próxima bofetada. Empolgado, nem deu conta da chegada dos ciganos que o puxaram pelos colarinhos e assentaram um arraial de porrada que deu direito a visita ao hospital.
Um dia, embebedaram o Ruço. Assim como assim, se o rapaz em sua sobriedade era um desastre pegado, haveria de ser bonito vê-lo com meia dúzia de canecos a turvarem os sentidos. Enganaram-se. O Ruço portou-se com fleuma digna de um lorde inglês. Não acusou, a quem o via de fora, um grama de álcool no sangue. Os amigos ficaram atónitos. E o Ruço aprendeu que, quando viesse o futuro e ele não quisesse ficar mal no retrato, trataria de beber uns copos. Já não era o Ruço desastrado que fizera as delícias dos amigos com outra linhagem estouvada.
O que ele não contava, era ter de frequentar os alcoólicos anónimos.