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Às duas por três, ninguém lhe tinha
dito que as castas tinham acabado. Que a república mordia nos calcanhares, com
baba rançosa mas mais atual que a monarquia deposta. Ou, talvez, até tivessem
segredado ao ouvido, para não molestar as convicções e ferir o orgulho da
linhagem. E ele teimasse em embaciar o horizonte que se depunha diante dos
olhos, como se nada tivesse acontecido e tudo fosse como dantes.
Era cultor dos costumes de antanho,
quando a ordem estabelecida mareava a seu preceito. À gente que o conhecia, era
vulgar ouvir-se-lhe as frases terminadas com sapiente oração: “como se tudo fosse como dantes era”. Às
vezes, parecia desligado do tempo que contava, imerso num emaranhado de
predicados subtis que compunham a vivência aristocrata que fora seu berço. Só
que a aristocracia estava em maré vasa, corroída pelo infortúnio a que os
gentios a destinaram. Em momentos avulsos, tomava conta do tempo na sua aragem
presente. Era quando abdicava da pose aristocrata e o rosto sorumbático,
coberto de olheiras e de rugas rasgadas, se apoderava dele. A bonomia dos
revoltosos e, a bem dizer, a sua irrelevância (os aristocratas mais notórios foram
deportados ou arrastavam os ossos nos cárceres por tentativa de contrarrevolução),
eram a caução para que continuasse a existir como se os tempos ainda fossem os
de outrora.
Só que agora já não havia leis régias
a assentar mordomias de casta. Ainda que em ocasiões a esquizofrenia o
convencesse que conservava os pergaminhos que deram alcavalas, a maralha
vitoriosa desdenhava-o. Quando deitava mão a instantes de lucidez, o
aristocrata sem punhos de renda entristecia-se. Os ventos não corriam de
feição. Os pergaminhos já não eram reconhecidos. Eram motivo de troça para os
pés descalços que se habituaram a pajeá-lo quando tivera importância. A indulgência
do novo regime era um ardil. Deixaram-no intacto para ser exemplo do que não
devia ser o futuro homem que saísse da sociedade em reconstrução.
Durou quinze meses nesta agonia.
Definhou até morrer sozinho. Respeitaram a sua derradeira vontade: ir para a
sepultura com os punhos de renda e os botões brasonados, como era tradição
familiar. O funeral esteve deserto.
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