9.1.13

Paninhos quentes


In http://neurocrescimento.files.wordpress.com/2012/01/c3a1gua-ferver.jpg
Ferviam a temperaturas diferentes. Um fervia em pouca água, não era preciso dar muita corda ao termómetro. O outro personificava um monge tibetano. Nunca alguém lhe vira descompostura, uma palavra exaltada, um sentimento atiçado por atos alheios. Em vez de serem antípodas um do outro, complementavam-se. Eram uma simbiose de contrários. Nem pareciam filhos dos mesmos pais.
O eriçado perturbava-se amiúde. Não havia dia que não se enervasse com a prosápia dos outros, com a deslealdade, com a mentira contumaz. Quando se diz que fervia, não é em forma de metáfora. O rosto enrubescia de cada vez que alguém, ou uma notícia do mundo, o punha em sobressalto. Servia-lhe de contrapeso a ponderação do irmão mais novo. Sabia que quando chegava a mostarda ao nariz precisava das palavras retemperadoras do irmão. Mas antes brigavam. Em dizendo melhor, com as pulsações aceleradas e a lucidez de folga, atirava-se ao irmão quando ele procurava contemporizar. Naquela iracunda forma, qualquer advertência de modo era entendida como reprimenda. Mas o irmão mais novo não desarmava a fleuma, mantinha a pose monástica, temperada. Quase todas as vezes que um acesso de fúria retirava bom-senso, disparava palavras gatafunhadas para cima do irmão mais novo. Até parecia que era o culpado do desassossego. O mais velho, quase sempre, atingia o púlpito da descompostura quando acusava o mais novo de ser perito em pôr paninhos quentes. E ele, tão febril, a precisar de pedras de gelo.
Um dia, foi acordado a meio da noite. À porta estavam dois polícias. Perguntaram se era irmão do seu irmão mais novo (não havia familiares mais próximos depois que os pais morreram). O irmão estava detido. Matara um rapaz numa briga noturna. No caminho para a esquadra, um dos polícias precisou os detalhes do ato. Fora de uma brutalidade incomum. Na cela, o irmão mais novo ainda tinha sangue espalhado pela roupa, pelo rosto, pelos braços e mãos. Estava ébrio – estado desconhecido do irmão mais velho, que, atónito, disparou: “e tu tens o hábito de beber assim tanto?”
Só obteve silêncio. A apatia descompusera-se por ação da bebida. Os paninhos quentes perderam sua serventia.

Sem comentários: