A espuma da cerveja parecia a cama
onde se entaramelavam pensamentos dispersos. A música de plástico emprestava
poluição sonora, perturbando os pensamentos. Desconfiava que estava ébrio.
Entre os pensamentos que se atropelavam, não havia um a arrimar a um termo
coerente.
Inclinava o copo, contemplando a
espuma da cerveja a deslizar pelas paredes laterais até repousar outra vez na
parte líquida da bebida. Enquanto ensaiava pensamentos que se dividiam entre
recordações e exercícios prospetivos. Por fim, um fio condutor. À medida que se
confundia entre o lastro dos dias que o foram e as resoluções vindouras, a
espuma da cerveja era testemunha das promessas entronizadas no lugar
prioritário da memória – como mnemónica urgente a cintilar diante dos olhos,
para não dar alimento ao esquecimento. Mas a música de plástico era estorvo.
Aquela música que passava nas rádios mais populares interrompia a peregrinação
interior que a ocasião convocara. No pensamento, como se fosse uma tela imensa
onde passam imagens, desfilavam em contramão episódios de antanho e senhas
tiradas para guardar lugar numa posteridade límpida.
Talvez naquela cerveja, e nas muitas
que já bebera (perdera-lhes a conta), macerassem os dias não exemplares arquivados
nas irremediáveis recordações. Convencera-se de que isso não importava.
Convencera-se que o que já fora não merece sequer lugar pequeno na memória,
fossem os arrependimentos ou as proezas (havia um punhado delas). Perguntou à
cerveja, entre dentes, se não estava a ser estalinista com o que fora. E a
cerveja, por interposta pessoa do pensamento que com ele dialogava, garantia
que não era razão para se preocupar.
Por entre a espuma pareceu emergir um
balão onde passam as falas dos livros de banda desenhada. Dentro do balão, em
letra pequena, esta fala: “mal andarias
se os dias atrás de ti fossem de um esquecimento inteiro. Mal andarás se
meteres as pernas ao porvir e sobre ti pesar um passado, um passado que seja,
sobre o dorso.”
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