2.4.13

Em sangue quente


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Era a noite das facas longas. A noite dos olhos desassombrados, o amanhã marcado para ser dia do tira-teimas. Era proibido dormir naquela noite. Ela estava a jeito da boémia. Temia que a embriaguez ocultasse a clareza que seria convocada para a função. Ou talvez não. Podia ser que o álcool destravasse os freios que não deixavam as decisões ser decisões. Não podia persistir no adiamento do porvir. Teria de ser fautor do seu próprio amanhã. De que adiantava esperar que um qualquer amanhã chegasse, consagrando o que lhe aprouvesse, se depois as mãos atadas não deixavam reação?
Não queria ser sequestrado pelas circunstâncias. Queria ser o domador das circunstâncias, ir para cima do palco e cinzelar todas as tábuas do chão, uma a uma. Queria ser o autor do guião por onde se move o seu corpo, tirar as peias que adiavam tudo para um incerto amanhã. Aquela noite seria o rompimento com os freios que, a páginas tantas, mais soavam a embainhamento da covardia. E se o incomodava saber que o fantasma da covardia adejava como se fosse um corvo enlutado a pressagiar o seu luto.
Meteu-se pelas ruas fora na companhia da pluralidade em que se decompunha o seu eu. Foi de bar em bar, àqueles que resistiam de portas abertas na quietude noturna de um dia de semana. Fazia-lhe bem a noite que parecia fúnebre, tanta a ausência a tomar conta das ruas. Bebeu. Até perder a memória. Tinha uma vaga recordação de meter conversa com outros boémios que haviam mergulhado no fingimento da bebida. Não se lembrava do que fora o falatório.
Quando voltou a si, estava numa terra estranha. Ouvia falar numa língua ininteligível. Estava um frio que não sabia o que era. Envergava roupas grossas a condizer, luvas a proteger as mãos das frieiras que se poriam se elas estivessem entregues ao frio glacial. As casas tinham um traço diferente. Fino e ao mesmo tempo cru, as fachadas pintadas com cores desmaiadas que rimavam com o sol acanhado. Estaria anestesiado há quanto tempo? Como fora aterrar num sítio tão diferente, num sítio de que nem sequer sabia o nome? O que estaria ali a fazer, se um buraco negro era o reviralho da memória vinda aos dedos refugiados nas luvas de lã?
O colapso do tempo, medido na porosidade do tempo esquecido que não sabia contabilizar, selara a decisão que andava a ser escusada. Pelo ar que as coisas tinham, estava em roupagem de emigrante. Porventura a noite boémia fora a sagração das circunstâncias tomadas em suas mãos. Ou, não podia renegar a hipótese, era apenas ator num sonho. Fosse o que fosse, o sangue estava quente. Os minutos que viessem a seguir tratariam de decifrar o enigma. Acordou rodeado de gente trajando bata branca. Afinal era um sonho. Um sonho cheio de presságios.
A decisão ficou tomada ali, na maca da urgência do hospital. Só faltava que lhe dessem alta que trataria de tratar da vida alinhavada pelo fuso do porvir.

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