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Era como se só saíssem duques
do baralho de cartas. Não se queixava. Nutria
ternura pelos cabotinos.
Não se importava que lhe
atirassem à cara a sobranceria em que se montava. Na lente dos outros que, da
mesma igualha, eram dados a tão aguçado baraço, ninguém escapava aos
impropérios. Deus não existia, diziam, porque em vez de distribuir inteligência
deixou aos habitantes do mundo uma simplória frivolidade. Ele – sabia-o, e
fazia gala em demoradas auto exibições diante do espelho – fazia parte do curto
escol de iluminados. Em contramão com seus pares, ia ao arrebatamento com a
bestialidade dos outros. E não era curiosidade intelectual, nem mister da
ciência que praticava. Era genuína adoração pelos cabotinos. Frequentava os
mesmos lugares. Misturava-se com eles. Tinha a sedução dos atores que conseguem
encenar-se em diferentes personagens. Ninguém dava conta, na confraria dos
apedeutas, da sua pertença às elites da erudição.
Era segredo bem guardado. Nem
sequer os mais íntimos, ou até antigas namoradas que foram arquivistas de
memórias, sabiam. Não era por receio que o internassem por demência. Menos
ainda por temer que alguns dos mais próximos praticassem a chacota que o
diminuísse – chegava para todos e por junto, disso estava seguro. Como genuína
era a predileção por cabotinos, espontânea era a necessidade de resguardar para
o mais profundo do íntimo a faceta que mais ninguém podia conhecer.
Habitava realidades
paralelas. A que vinha das capacidades cognitivas (era mais um ganha pão, uma
catarse intelectual que aliviava a criatividade acumulada). E a da comunhão
popular, nas suas raízes mais profundas, um lado da personalidade que não
conseguia (nem queria) domesticar. A certa altura, este lado da personalidade
triunfou sobre os escombros da censura que a arrogância cultural queria impor.
Habituou-se, o lado da arrogância cultural, a cingir-se ao seu insignificante
território.
Uma dia, por acidente, um
conhecido de um conhecido apanhou-o em êxtase num concerto de David Fonseca.
Até vinha de colarinhos de aba larga, calça à boca de sino, coreografando-se
desajeitadamente enquanto reproduzia, com saber, a prosa do cantor. Chegou ao
conhecimento dos mais próximos. Um, ansioso por lhe decifrar um passo em falso,
confrontou-o: “com que então, num concerto
de música pimba?!” Não deu o flanco. Altivo, fez falar a parte de si imersa
na sobranceria cultural: “podíamos
discutir longamente sobre os méritos do artista. Como não te reconheço
pergaminhos para seres interlocutor à altura, a conversa fica por aqui. Não
estás à espera de justificações, pois não?”
No dia seguinte, foi para o
trabalho com uma camisa de farto colarinho arredondado nas extremidades,
profusas bolinhas amarelas estampadas em tecido azul claro, calças vermelhas em
tecido acetinado. Nos auscultadores, com não indiscreta fuga de som para os das
imediações reconhecerem, Dino Meira.