14.5.13

Roteiro


In http://quantasneira.files.wordpress.com/2010/09/lua_vermelha.jpg
Um nascimento. De um vento vindo de algures, fui sinal de um futuro que teria sua terrena face. As estrelas trémulas pressentiam um sopro benigno, como se o leito do parto tivesse à mesinha de cabeceira uma manjedoura com o bovino arfando seu calor para aquecer o nascituro. Com as estrelas, a lua irradiou um vermelho fogo.
As flores arqueavam-se na jarra, cinzelavam um fado. A parteira acreditava que para onde estivessem as flores pendidas, assim estava inscrito na eternidade o devir do recém-nascido. Talvez, agora que passaram todos estes anos, e que já é possível espreitar para trás do tempo, talvez seja possível atestar que as flores estavam benzidas por um vento a preceito. Num lampejo, os anos todos passam céleres, reduzidos a uns instantes. Sobram imagens rápidas: proezas que afinal o não são, amarguras que são excessivas avaliações de estados de alma também eles excessivos, risos com sentido, risos extemporâneos, prantos com e sem valimento. No fio condutor que percorre todo o tempo reduzido a breves instantes, uma luz exala e incendia o céu. Empresta à lua o vermelho fogo que fora soberano em dia de nascimento.
Agora é sobre agora. Os corpos transidos, depostos nas mãos entrelaçadas, a figura cicerone que aportou no cais. Os olhos, nítidos ou marejados, condensados na exaltação dos dois seres, ou comungando emoções que medram no acosso das lágrimas, balbuciam os sentidos que palavras mil são incapazes de retratar. Ao acordar, ainda está a alvorada por fazer, um sussurro vem do ouvido até às profundezas do pensamento. O sussurro é um canto pueril, espontâneo, sem peias das cores adulteradas, sem indulgências por intenções distorcidas. O sussurro manda dizer que as palavras que são o roteiro do encantamento merecem ser ditas em cada alvorada. Bebem-se os corpos na transcendência do momento. Saciam-se nas palavras servidas em doces cantos que transformam as palavras mais simples em códigos perfumados com um auspício que tardava em ser.
Os olhos regressam ao dia natal. Valeu a pena esperar pela noite. Valeu a pena a aflição que se congeminou, prova de vida ainda mal ela era nascida. Valeu a pena vir pelo tempo fora, até o tempo que foi a consagração de uma errância qualquer. Valeu a pena. Para chegar aqui. E esperar, sem temor que abale as certezas que se compõem, pelo porvir por nascer na forma dos amanhãs sem saber.
No lauto mar das incertezas, as noites por diante são um templo abainhado pelo vermelho fogo que incandesce a lua.

1 comentário:

Anónimo disse...

“O poeta lembra-se do futuro”.
Jean Cocteau