30.8.13

O sabotador de semáforos


In http://imagens7.publico.pt/imagens.aspx/748097?tp=UH&db=IMAGENS
Por quatro manhãs consecutivas, a cidade amanheceu com os semáforos desligados. De todas as vezes demorara tempo a repô-los. Os sistemas estavam em baixo e reiniciá-los era empreitada complicada. Na primeira vez, julgaram as autoridades ter sido uma anomalia dos sistemas, que as máquinas não são infalíveis e avariam, mesmo as que são tidas como sofisticadas. Da segunda vez, as autoridades começaram a estranhar. As coincidências não são coincidências quando tanta tecnologia está em jogo e os filtros contra intrusos são à prova de bala (ou assim foram vendidos).
Ainda as averiguações estavam em curso e, à terceira noite, os semáforos vieram abaixo. As autoridades tiveram a certeza que não se tratava de coincidência. Havia mão humana a sabotar os semáforos da cidade. Reforçaram a vigilância da terceira para a quarta noite. Os filtros de segurança foram fortalecidos. Era como se houvesse múltiplas câmaras de vigilância espalhadas nos inúmeros corredores do labiríntico sistema que controlava os semáforos da cidade. Podia ser que o sabotador se descuidasse, deslumbrado com a proeza repetida em três noites seguidas.
Na quarta noite, como era esperado, os semáforos entraram em colapso. Desta vez foi mais espampanante: em vez de caírem todos no amarelo durante meia hora, finda a qual se desligariam, os semáforos entraram em bebedeira de policromia. Sem critério, ora passavam do vermelho ao amarelo e outra vez ao vermelho, para segundos depois irem de novo ao verde e intercalarem com o amarelo e o vermelho. Em modo aleatório, em todos os semáforos da cidade. Hora e meia depois, os semáforos emudeceram.
Os peritos de informática e os conselheiros de segurança passaram a noite em branco. O sabotador era, talvez, mais perito que todos eles juntos. Mas havia uma falha de segurança que o sabotador não soube prever. Um dos filtros descobriu a sua identidade. A manhã ainda ia a meio e a polícia entrou à força no seu apartamento, interrompendo o sono. Na esquadra disse que só ia falar uma vez. Para apresentar as razões da sua sabotagem. Depois seria o silêncio. Interrogado, só disse que tinha alergia a semáforos. Como, aliás, a todas as normas que são ardis para atar o livre arbítrio de gente que assim perde a liberdade.
As autoridades não quiseram reconhecer o que toda a gente tinha percebido: naquelas quatro manhãs, o trânsito deixara de ser caótico.

29.8.13

O sol embotado


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh7jGtLIo-AcTu9fjQlTjsKaIN0mu2nQ_KDfXJXyGr-rHuqa8buxfSfLm9cS0DER_Vo2mKt1MsymibUqUoCCkkrC23ZOYPt29-tXwW-lT0xCdbv-oDNWoPNaLl-Ux2wyajcuENdow/s320/DSC02118.JPG
Há razões várias para não morrer de amores pelo verão. O calor, quando lhe apetece ser uma asfixia, o mesmo calor que dita a sudação dos corpos e os cola às roupas peganhentas e pestíferas. Ou os mosquitos que têm na canícula alimento; mas só aperitivo, que depois se banqueteiam com o sangue que anda dentro de nós. Ou, ainda voltando à matéria odorífera, pese embora os banhos ensinados como preceito de higiene pessoal, o suor em que o corpo se derrete em horas de canícula que se transfere para o odor infecto em certas pessoas.
O calor, quando é excessivo e mais parece um forno que se abre quando saímos à rua, é convocatória à indolência. Não se insinua que não tenhamos direito ao ócio nos dois dias da semana que o calendário convencionou serem de descanso, ou no tempo de férias que as conquistas sindicais padronizaram. O mal é que o calor é um alfinete que se espeta aleatoriamente no calendário. Pode calhar em tempo de trabalho. É quando o calor frita os miolos e o trabalho se ressente. Ou quando o tempo se revolve pelas entranhas e é tomado por luciferina entidade que vomita fogo por onde passa. Em tratando-se desse Lúcifer adejar sobre florestas, os incêndios propagam-se com a bênção da temperatura tórrida acolitada pela humidade reduzida e pelo vento quente e seco que é gasolina em cima dos incêndios.
Quando os fogos se demoram, uma nuvem de fumo estaciona no horizonte acima dos olhos. As cinzas levitam no céu, adulterando-o. Pode não haver nuvens, as convencionais nuvens onde se condensa a água depois derramada em forma de chuva. Mas o céu é dominado por nuvens de faúlhas sopradas pelos ventos dominantes. O sol intimida-se. Sem força para romper com a densidade das cinzas que se acastelam, o sol quebranta-se. Fica desmaiado, fazendo de conta que não foi um dos culpados da extorsão afivelada nos incêndios luciferinos. Eis outro motivo para não louvar o verão: quando o estio se converte em excessiva canícula, o sol, o tão sagrado sol pelos adoradores do verão, embota-se.
O verão é uma contradição insanável.

28.8.13

Sociedade do desperdício necessário


In http://www.infoescola.com/wp-content/uploads/2008/06/lixo.jpg
Um império de lixo. Fatura da civilização como ela se tornou em sua evolução. Tudo o que se produz vem armadilhado em mil e um invólucros que apenas têm a serventia do lixo onde se depositam os desperdícios. Os maestros desta civilização quase asséptica defendem a causa: assim mandam os cânones da higiene. É para tornar a mercancia imune às doenças que andam cá fora e que só nos afetam se as apanharmos por contágio com uma mercadoria mal acondicionada.
É um império de lixo porque somos seus produtores prolixos. Os manuais da ecologia, que se atiram furiosamente à cegueira de uma economia que se interessa apenas pelo lucro, explicam que muita produção desagua nas lixeiras. Os ecologistas sensibilizam para a separação dos lixos, mas depois chegam palavras sussurradas ao vento dando conta que vêm os camiões do lixo e metem todas as sobras inúteis no mesmo sítio. Pode ser uma contra teoria da conspiração de gente a soldo de capitalistas sem sensibilidade para a proteção do ambiente, ao saberem que o ambientalismo desperta consciências a cada dia que passa.
Nesta altura, em que a crise continua a morder sem remorso e a produção arrasta-se pelos mínimos, era bom que um ecologista ou um economista medissem a correlação entre a entrada de desperdícios nas lixeiras e a produção. Voltando aos manuais da ecologia (que denunciam a doença que vem atrás de mais produção), acredita-se que o crescimento com mais produção provoca danos no ambiente. Porque mais produção leva a mais lixo, a mais tratamento dos resíduos depositados nas lixeiras, com mais custos e menos garantias de que a reciclagem terá resultados. Em tempos, que são estes, de crise persistente, era de esperar que menos produção aliviasse a pressão sobre o meio ambiente. Que houvesse menos lixo. Após o natal, quando as crianças mandam para o lixo os plásticos e cartões que empacotam os brinquedos, e a maior frequência com que vamos depositar o que não presta nos caixotes do lixo, são sinais de que a crise não abrandou os desperdícios. O sinais vão contra a maré. A equação desfaz-se numa desigualdade: a crise causa menos produção, mas nem por isso o lixo abrandou.
Somos uma sociedade do desperdício. Do necessário desperdício, se comprarmos a tese dos sanitaristas do momento. (Ou isso, ou – vamos por outra teoria da conspiração – os produtores de plástico e de cartão sentam-se à mesa do poder.)

27.8.13

Humberto no nevoeiro das memórias


In http://www.northnews.co.uk/res/uploads/pictures/OCT2012/191012/FOG_ON_TYNE_TODAY_2.jpg
Humberto sai do metro. A manhã outonal condizia com a estacão. Brumosa, terrivelmente húmida, os ossos encarquilhando-se com o nevoeiro que se infiltrava desde a carne até aos ossos. Sai do subterrâneo profundo e não consegue que a luz se acenda, tão plúmbeo o nevoeiro matinal. As gotas baixas, quase beijando o solo, molham o cabelo. Humberto lembra-se do tempo que habitualmente faz em Newcastle. Mas em Newcastle não é preciso esperar pelo outono para ser passageiro de intermináveis manhãs brumosas. Acontece durante o ano inteiro. Menos no equinócio de verão, quando a luz diurna entra nas horas que pertencem à noite, que nessa altura o clima desajuizado faz tréguas com o equinócio estival. Humberto percorre as ruas tingidas pelo cinzento do nevoeiro teimoso e os seus pés estão convencidos que deambulam pelos passeios de musgo em Newcastle. Até o rio convoca as semelhanças. Mais a mais, por entre a densa neblina, os dois rios (o da cidade que é do Humberto e o de Newcastle) não se distinguem. Para em frente ao cais. Mal consegue ver a cidade que faz fronteira, a que se aloja do lado de lá do rio. Tal como em Newcastle, com a diferença que em Newcastle a cidade atravessa o rio. Durante largos minutos, Humberto não escuta vivalma. Parece estar dentro de um sonho, convencido que os sentidos viajaram até Newcastle. Na barcaça que passa vai desfraldada uma bandeira britânica. Lá dentro, o comandante dá ordens à tripulação, com o audível sotaque nortenho tão parecido com o sotaque escocês que quase torna ininteligível o idioma. De repente o sol consegue furar a barreira do nevoeiro. A luz insinua-se e embacia a neblina. Ao mesmo tempo, uns rapazes passam em algazarra. Falam o idioma do Humberto. Acordou do sonho. Não era Newcastle. Aliás, Humberto nunca fora a Newcastle.

26.8.13

Quero: a inocência devolvida


In http://www.nowtheendbegins.com/blog/wp-content/uploads/syria-unleashes-massive-gas-chemical-attack-on-damascus.jpg
Já temos idade (os que têm esta idade; mas talvez os de todas as idades) para não andarmos açambarcados por ilusões. Os palcos de guerra são uma atrocidade sem adjetivos. A humanidade, uma espécie suicidária que não aprende com as guerras de outrora e insiste em matar gente inocente, apanhada no tempo e no lugar errados e no meio de um imenso nada de ideias.
E, mesmo assim, com toda a frieza que a idade admite, os olhos são ultrajados com as fotografias de outra selvajaria em palco de guerra. Enquanto os estrategas militares se entretêm a ensinar a “arte da guerra” (devia ser proibida esta conjugação de étimos que são a negação um do outro), e os cultores da geopolítica medem efeitos e estimam cenários alternativos, homens, mulheres e crianças sucumbem à força soez das armas. Quando a chacina rima com mortes coletivas, depois de um ataque ignóbil com armas químicas, e as imagens entram pelos olhos ferindo-os na sua já fina crença na espécie humana, a inocência de idades pueris apetece vir à tona. Os corpos de mulheres, homens e crianças ensacados em lençóis brancos estão alinhados num corredor de morte, todos vítimas inocentes no apogeu das hostilidades que são um hino à demência da espécie. Esses cadáveres metem-se pelos olhos e são lesões que não se confiam ao tecido ocular, penetrando ao mais fundo do pensamento.
É quando apetece resgatar a inocência dos tempos infantis. Quando o mundo estava mergulhado numa campânula e o mundo lá fora, este mundo hediondo que só merece ser espezinhado, não existia. Quando a ingenuidade era o leme do tempo e a crença na bondade dos homens não era interrogada. Agora, esmagado por estas fotografias que denunciam a bastarda condição humana, é difícil ir aos tempos que pertencem à memória e fazer de conta que somos puerilmente inocentes. A doença da informação (compulsiva ou não) vacinou-nos contra a inocência. Perdeu-se nos arredores da memória, e a ela pertence como retrato do que foram esses tempos.
O agora é um exame que desafia os limites da bestialidade humana. Não me interessa quem usou as armas químicas, ou os jogos florais das nações desunidas, ou (ainda menos) os recortes da estratégia militar que são a pior ofensa ao sossego dos civis que não são perguntados se querem ser vítimas colaterais de uma guerra. Talvez a esta gente toda houvesse merecimento de uma morte dolorosa e lenta, como paga para o crime lesivo da bondade humana de que iriam acusados.
A inocência resgatada só me deixa pensar na morte atroz de toda aquela gente, que nem tempo teve para saber do que estava a morrer, a não ser de serem vítimas de uma (mais outra) guerra absurda.