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A realidade está um
aborrecimento para a gente tacanha e aborrecida. Tirando isso, a realidade,
aquela que vem vertida nas notícias que mereciam alistamento em jornais
satíricos, serve para aligeirar a monotonia. O Cavaco de Boliqueime pertence ao
escol dos enfadonhos. A realidade não anda a preceito para quem tem esta
linhagem.
Ontem, quando sua excelência,
em discurso à pátria, a exortou a ser “previsível”, uns juízes do Tribunal da
Relação do Porto assinaram sentença que contrariou a normalidade tão cinzenta
que tanto quadra com o senhor Aníbal. Os juízes mandaram voltar atrás com o
despedimento de um trabalhador ucraniano de uma empresa de recolha de lixo de
Oliveira de Azeméis que tinha excesso de álcool durante o serviço. Os magistrados serviram argumentação
digna de uma peça de teatro onde se jogam os dados do surrealismo. Primeiro, o
sangue do trabalhador recolhido para amostra foi prova ilegítima, pois a
empresa não a podia usar já que o ucraniano não autorizou que lhe fossem às
veias. Não sei se importaria aos doutos juízes perceberem que o embriagado em
serviço foi parar à urgência do hospital depois do colega de trabalho, que ia
ao volante do carro do lixo e também estava ébrio, ter desfeito mal uma curva,
cometendo a proeza de capotar o veículo.
Em segundo lugar, os juízes
abriram uma nova janela de oportunidade ao refrescamento das relações laborais,
pois consideram que os trabalhadores podem beber o que lhes apetecer na medida
em que a ebriedade possa aumentar a produtividade. Já não interessou admitir
que o ucraniano se tenha embebedado ao ponto de acusar 2,3 gramas de álcool por
litro (quase cinco vezes mais que o máximo legal para quem conduz). Tanto mais
que, advertem os juízes, na empresa de recolha do lixo não há norma interna que
proíba a ingestão de álcool (ou que defina os limites máximos para beber uns
copos) durante o serviço. Mal andou a empresa e todas as outras que são
negligentes ao ponto de não se terem lembrado de proibir os trabalhadores de
beberem em serviço. De semelhante calibre, só me lembro de ouvir um passageiro
de um autocarro afirmar, cheio de convicção, que o cunhado (motorista de um
camião TIR) conduz melhor depois de beber um litro de vinho ao almoço.
Fica para o fim a cereja em
cima do bolo: depois de anuírem que “o trabalho não é agradável”, os doutíssimos juízes atestaram que “com álcool, o
trabalhador pode esquecer as agruras da vida e empenhar-se muito mais a lançar
frigoríficos sobre camiões, e por isso, na alegria da imensa diversidade da
vida, o público servido até pode achar que aquele trabalhador alegre é muito
produtivo e um excelente e rápido removedor de electrodomésticos.”
À beira da bafienta
previsibilidade que o senhor Aníbal pretende que sejamos, esta risível sentença
é um bálsamo. Ninguém curou de indagar onde a mesma foi lavrada, se os
magistrados o fizeram depois de um bem regado almoço de trabalho, ou em cima do
joelho depois de participarem, em amena cavaqueira com o Alberto João da
Madeira, no rally paper das
tasquinhas a propósito da festa anual do partido do governo. Também não
interessa. Que aborrecimento para sua excelência, o “mais alto magistrado da nação”,
que esta pátria seja tudo menos previsível.
1 comentário:
AO ROSTO VULGAR DOS DIAS
"Monstros e homens lado a lado,
Não à margem, mas na própria vida.
Absurdos monstros que circulam
Quase honestamente.
Homens atormentados, divididos, fracos.
Homens fortes, unidos, temperados".
(...)
(Alexandre O’Neill)
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