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Na casa dos nenúfares, o
impossível é proibido. É, por sinal, a única proibição admitida. Se houver
alguém a subir nos tamancos da autoridade, desenhando regras com o
consentimento de um grupo mas ao arrepio de outros, um coro sibilino protesta e
ordena a extinção das regras. A única regra, debruada a ouro nas arcadas da
casa dos nenúfares, é que não pode haver regras.
A casa é visitada por quem
quiser. Não há direito de admissão reservado. Só direito de expulsão garantido
a quem ofender o ar de liberdade que se respira por toda a casa. É uma casa
senhorial, em decadência depois do abandono da família brasonada que entrara,
em antecipação, em decadência. Uma casa labirinto, com quartos que não se sabe
o número exato (a não ser que alguém encontre a planta da casa). Num quarto fazem-se
audições de música experimental. Comentada pelos melómanos que a trazem e por
outros melómanos, amadores e profissionais. Noutro quarto, as expressões cénicas
vêm ao palco improvisado. Sem guiões, sem ordenanças que desembainhem a entrada
em cena dos atores. Só vale teatralizar de improviso. O público ora pode ser
público, ora às tantas é trazido para dentro do palco, para a seguir regressar
ao lugar da audiência. Noutra sala há gente que desempoeira os livros
empilhados na ampla biblioteca antes que ela seja comida pelos ratos e
percevejos. A família brasonada era culta (ou havia alguém na família brasonada
que o era). Lê-se Proust, Mallarmé, Cocteau, Beckett, Witman, Eliot, Pound, o
que vier transviado das prateleiras banhadas em poeira. Debate-se no fim das declamações.
Com o espírito aberto de quem quer aprender autores desconhecidos, sem o
estéril pavonear dos autores maiores e dos autores de segunda ordem, que as
hierarquias são agrilhoadas à porta da casa.
Não há lugar a vaidades
pessoais. Os que as haviam ensaiado depressa foram colocados no lugar da proscrição.
A casa não tem patronos, nem mecenas, apenas participantes que são todos iguais
numa hierarquia que se havia horizontalizado. Nas traseiras da casa está o lugar
idílico: o jardim dos nenúfares, que dera batismo à casa. Os gansos e os cisnes
já não estão enfezados como foram vistos mal os primeiros visitantes frequentaram
a casa. O jardim tem todas as serventias. Para a reflexão, para a conversa que
transborda das salas escurecidas e sobrelotadas, para o flirt ocasional, para os planos utópicos que se esvanecem mal os
promitentes saem da casa.
Diz-se que os convivas que
colonizaram a casa a enfeitiçaram. Houve muitos interessados em comprar a casa
dos nenúfares. Uns prometiam manter a traça. Outros encaravam o destino de
frente e, desassombrados, anunciavam planos de construção ao alto e a necessária
destruição da casa. Todos os planos fracassaram. Sem se entender porquê. A casa
dos nenúfares resiste. É o epicentro das ideias. E o jardim dos nenúfares, o
epicentro dentro do epicentro.
1 comentário:
Imagino uma casa revestida por uma "aura legitimadora" ...
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