23.10.13

O escultor de paisagens


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Argonauta destemido, fez-se aos mares em demanda de terra. De terras que fossem diferentes, uma arquitetura das paisagens que trouxesse pinceladas insólitas, cores que julgava não existir, aromas oníricos. Fez-se aos mares uma, duas, três vezes. Sulcou-os até avistar os contrafortes de um sítio que o mapa cuidava de assinalar.
Aprendeu idiomas. Aprendeu costumes que andavam nos antípodas da sua idiossincrasia. Aprendeu a comer o que jamais julgaria ser possível comer. Demorou-se em conversas com anciãos que exibiam, nas tão marcadas rugas, uma experiência enciclopédica (e, todavia, mostravam uma analfabeta certidão de habilitações). Empreendeu viagens solitárias pelas selvas inexpugnáveis, outra vez destemido, sem se atemorizar com a fauna exótica, muita dela venenosa, que partilhava o chão que não se chegava a ver. Arremeteu pelas paisagens geladas, duplamente frias, próximas do ártico, atirando-se aos ventos glaciares sem temor das feridas por congelação. Demorou-se em cidades consagradas por escritores, cidades onde a bandeira cosmopolita está hasteada bem alto. Amesendou com camionistas musculados na interminável estrada que faz ponte entre as duas costas americanas.
Foi a templos budistas, a templos hindus, a mesquitas e a igrejas ortodoxas, onde, apesar do ateísmo impenitente, aprendeu a beber uma espiritualidade ecuménica. Banhou-se nos oceanos todos, nas águas cálidas e em águas bravas e frias. Dormiu ao relento em muitos lugares e percebeu, quando as nuvens não ocultavam o céu, que as estrelas são iguais em todas as paragens. Demorou-se no sorriso inocente das crianças, sem olhar a credos e cores, ungiu-se com a sua pureza. Sem que elas olhassem à perfídia da ideologia, ou à iconoclastia de líderes autistas, imberbes e apedeutas, que cuidam de virar gente contra gente outra em consagração de proezas pátrias.
Nómada por gosto, foi saltimbanco agitado por anos a fio. Viveu doenças como se fossem parêntesis temporários. Dobrou-as – continuava a acreditar – com a força interior de quem tantos lugares conheceu e muitos mais tinha por saber. As paisagens, as tantas paisagens tão diversas como constelação do mundo lá fora, eram preceito que acomodava a memória. Anos mais tarde, no entardecer da existência, quando se converteu ao sedentarismo (que o andarilho dos mundos estava cansado de o ser), passava no pretérito perfeito as imagens, as pessoas, os falares, os gestos, as culturas, as gastronomias, as crenças, as palavras, quase todas.
Ele fora o escultor destas paisagens todas. 

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