17.10.13

A bengala sobrante


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A velhice não é um sortilégio. Era assim que ele pensava enquanto repousava no alpendre, depois de notar que já não era autónomo e precisava de ajuda alheia para os movimentos que outrora eram banais. O ocaso tinha uma luminosidade resplandecente, apesar de estar consagrado que os ocasos são titubeantes, que as cores desmaiam e, talvez por isso, emprestem uma beleza singular o céu na indefinição entre o dia e a noite.
O corpo doía de cansaço. E não fora por cansaço ao cabo de jornada difícil. Pois toda a jornada fora de descanso, que de forças estava exangue, o que lhe consumia a vontade intelectual. Já não apeteciam os pequenos luxos que costumavam ornamentar o entardecer: um copo de vinho tinto, uns petiscos de elaboração ora requintada, ora lhana, uma conversa enriquecedora com um amigo, ou com a consorte que entretanto desfalecera em ausência. Só apetecia anestesiar a consumição das dores que mortificavam os ossos e os músculos em apressada decadência.
Contava as horas até tomar o comprimido ao deitar. É que só ao deitar, quando os comprimidos convocavam o sono artificial, as dores deixavam de gritar. De repente, veio à memória como perdera a penúltima bengala de um espólio de que fora rico. O esquecimento, as quedas que não quis ter, a fadiga do material – tudo enfraquecera o espólio. Ao seu lado, em caso de haver para ela serventia (o que só seria possível se as dores prescindissem da ajuda), a bengala sobrante. Não se intimidou com o espelho avivado do que era a representação da derradeira bengala. A enfermeira perguntou-lhe pelas outras que se habituara a ver no espólio. Explicou, uma a uma, o fado que lhes estivera destinado. A enfermeira continuou as perguntas para saber se ele queria repor o espólio.
Perdeu o olhar no horizonte onde desmaiavam as cores do ocaso. Do ocaso. Depois de um silêncio duradouro, já a enfermeira julgava que ele a não tinha ouvido, retorquiu, com um esgar melancólico de quem adivinhava o fado irremediável, que já não valia a pena o esforço. Ia pela mão da bengala sobrante aplaudir a decadência final.

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