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Era a noite das insónias. As ruas não estavam desertas, como julgara
quando se meteu em aleatória divagação pela cidade. A noite era a que partia a
semana a meio. Inverno. Chuvosa, a noite, o vento silvando o seu eco entre as
esquinas dos edifícios. Não estava a noite para volteios noturnos da habitual
trupe foliona. Tudo se conjugava a preceito para uma noite sem vivalma em redor.
Era um olhar diferente pelas ruas habitualmente frequentadas pela multidão
apressada que vai para a jornada igual às outras e depois dela regressa com
pressa de se aninhar em casa.
Errou na previsão. As ruas não se emprestavam à ausência de almas.
Vagueavam os have not, exibindo a
melancolia que cavalgava na invernada. Uns ajuntavam-se em abrigos
improvisados, puxavam com força a cama também improvisada, feita de caixas de
cartão prensado, ajeitando os cobertores para os retirar do amanho da chuva que
queria inundar o que estivesse à mão de semear. Outros passeavam a sua insónia,
ou estavam apenas em contramão contra a exibição tumultuosa que é a cidade
quando a luz diurna clareia suas feições.
Percebeu que alguns have not,
não se intimidando com a invernia em estado agitado, esquadrinhavam o lixo que
podia ter serventia. Passou ao pé de um bando destes homens e mulheres, todos
eles na fronteira da terceira idade (se as rugas e os olhares tão tristes como
ausentes não fossem apenas a configuração da velhice precoce). Os impermeáveis
gastos e imundos escorriam a água da chuva pelo corpo abaixo. Notou num deles
algumas gotas que desciam da aba do chapéu e faziam o seu caminho pelo rosto.
As mãos, protegidas pelas luvas que só deixavam à mostra o terço final dos
dedos, mergulhavam no entulho sem medo da imundície. Uma mulher com o cabelo
desgrenhado debaixo de um chapéu vistoso mas roto olhou-o com desdém. Disparou
um olhar agressivo e encenou um gesto intimidatório, como se o quisesse atingir
com o punho fechado. Rosnou umas palavras ininteligíveis. Ele perguntou se a
mulher queria ajuda, se se sentia mal. A mulher virou as costas e os outros, em
jeito de solidariedade com a mulher agora indiferente, mostraram o mesmo
desdém. Continuaram a dança desorganizada. Queriam lá saber do intruso que os
observava como se fossem animais do jardim zoológico.
Depressa
percebeu que não era bem-vindo. A insónia ganhou outra latitude. Foi para casa.
Sentia-se o mais indigente de todos com a valsa de miséria que entrara pelos
olhos e se metera bem fundo no corpo inteiro.
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