28.2.14

Os catedráticos de lana caprina

Dead Combo, "A Bunch of Meninos", in http://www.youtube.com/results?search_query=dead+combo+a+bunch+of+meninos&sm=3
Uma lei de bronze que os maus tempos tratam de apurar: a má moeda atrai outra má moeda. (E depois um aforismo popular: que venha o diabo e escolha.)
Em tempos de tantos apertos, o espaço público reinventou-se. É – dizem os otimistas – um dos maiores triunfos da democratização de que há memória: todos temos opinião publicada. Não interessa se há ou não audiência. O que importa é trazer a opinião ao espaço público que tem um tamanho sem tamanho. E, por causa dos apertados tempos envasados em tantas dificuldades, com uns medíocres instrutores da tabela que nos rege na transição dos estroinas para um futuro que ainda é incógnito, o espaço público foi emprenhado por uma nova casta. Uma casta de doutos da coisa pública, com verbo fácil e adjetivo prolífico, que se distinguem pela assertividade com que denunciam a má governação, a má têmpera dos governantes e a sua irretratável inépcia, a agenda de empobrecimento que estão a conseguir impor, e por aí fora. São os catedráticos do óbvio.
Na sua ciência – poder-se-ia alcunhar “obviazação” – cortam raso no diagnóstico e emprestam a sua aura sapiente ao povo imorredoiro, o povinho que vê as costas arqueadas pelo peso das injustiças com assinatura dos governantes e que, mesmo assim, reitera na escolha dos de sempre. Mas os catedráticos do óbvio estão no seu posto, vigilantes como nunca se viu tamanha vigilância. A severa pena afiada, pronta para destilar prosa acutilante que, no fim de contas, chama néscio ao povo desatento e mais néscio ao que está atento e na hora de ir à mesa de voto mostra que nada aprendeu. Destilam, ato contínuo, um fel de intensa acidez – sem se saber se acham que o mundo conspira contra as suas pessoas, ou se as suas pessoas estão mortificadas por uma vida sexual desinteressante.
Eu gostava que estes cicerones do espaço público se chegassem à frente e pusessem as suas superiores capacidades à disposição de partidos (velhos, novos, ou em embrião), ou de movimentos de intervenção cívica. Gostava que extravasassem o conforto das teclas de um computador e entrassem na competição pelo poder. Assim como assim, tão sábios e embebidos em qualidades que os deixam num pedestal intelectual, deviam legar-se ao serviço público, nestes que são tempos de apertos e de medíocres tutores do poder. Teríamos a consagração da ciência do óbvio. Podia ser que se confirmasse o que apregoa gente lhana: a erosão da complexidade deixa à mostra o óbvio das coisas. Ou, então, que o óbvio é apenas um fino verniz que embacia a densidade das coisas (mas esta não é lição tossida pela gente lhana).
Se me obrigassem, sob pena de privação da liberdade, a escolher entre duas castas de ineptos, preferia manter os que lá estão. Eis a minha acrimónia: esmagado pela prosápia pesporrente e pela hermética certeza dos catedráticos do óbvio, às vezes quase me apanho a ser apoiante dos maus governantes que temos. E isso não lhes perdoo (às duas castas).

27.2.14

Das cunhas

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgoNVytdw6OpZwmIwO_EUntLgz3_Vfp7JZVmZ1rP9ciNDKYVSGcKBlBCkq5kNvbC-wc2f_dSzWs_3ZKMidX9C5kXnBtwKC_hsn_goJ2-krEMz5PmaltkzvEw0wpJTyFLhExWfiH/s1600/caixa+de+robalos+do+armando+vara.jpg
Ligações privilegiadas. Duas pancadinhas nas costas, que tudo se resolve. Amiguismo e seguidismo. Portas que se entreabrem se houver conhecimentos certos no lugar certo e no tempo que interessa. Às vezes, quando as pessoas não chegam para destravar a decisão que se deseja, o dinheiro corre debaixo da mesa. Outras vezes, fica-se a dever favores que o futuro tratará de reivindicar. Também há quem suponha que as leis só são cumpridas pelos ingénuos e os que não têm conhecimentos que desatam os nós apropriados, e que dois dedos de conversa, da amena cavaqueira, resolvem impasses da lei que é sempre um estorvo quando nos penaliza se a não respeitarmos.
Cunhas, há-as para tudo e mais alguma coisa. Dizem que é uma doença moderna. Só que se cuida de ver nela uma moléstia ancestral. Talvez as cunhas se inspirem na católica propensão para as rezas aos santos certos na ânsia da obtenção de certas comendas. Milagres ou não, intercede-se junto do altíssimo através dos seus peões que são o vasto exército de santidades com direito a sagração popular. O tráfico de influências terá sido inventado por contágio desta católica forma de ser.
Os crentes entregam-se nas mãos dos santos da devoção. Pedem milagres, ou a satisfação de empreitadas que julgam estar fora da suas mãos. Metem uma cunha a um santo que foi eficaz na satisfação das encomendas. E prometem as pagas que julgam adequadas, para não ficarem reféns de outra doença contemporânea que é a ingratidão. Ou para o santo da devoção anotar num caderninho as promessas que foram satisfeitas, não fique futuro pedido de concessão de graças hipotecado pelo esquecimento. Os santos assim demandados são os recetores de influências. Levam-nas à consideração divina, o juiz supremo da concessão das graças. Sobra, depois, o favor por compensar na forma das penitências prometidas em caso de cumprimento das graças pedidas. Nas cunhas terrenas, também há a paga de favores quando quem as pede mais tarde ganha posição de as satisfazer. E também há uma paga mais material, com caixas de vinhos gourmet, galinhas (vivas) para o arroz de sarrabulho, robalos (cadáveres) para o forno, gravatas dispendiosas, canetas de escol, etc.
Os poderosos (ou os que à sua roda gravitam, ou os que o aspiram a ser) que apascentam influências são como os santinhos da devoção: desmultiplicam-se em generosos dádivas.

26.2.14

Sem terra

In http://www.kindai.com.br/blog/wp-content/uploads/2012/09/Proverbios_Kindai_Montanha.jpg
Sentia-se filho bastardo das terras que foram suas. Olhava para trás, para o mapa que assinalava as suas paranças, e não sentia o odor de nenhuma terra. No efémero nomadismo, um dia confessou a um ocasional, anónimo companheiro de boémia que não se achava rejeitado pelas terras que tinham sido suas, pois ele é que as abjurava. O companheiro de boémia conseguiu arrebatar um momento de lucidez e, entre a ebriedade, perguntou se alguma vez tinha pegado num punhado de terra para sentir o cheiro característico. Perguntou se alguma vez notara que no cheiro da terra transpiram as lágrimas e as alegrias nela vertidas. Entre dois goles de brandy, espacejando as palavras entarameladas, ainda soube dizer que as todas terras têm cheiros diferentes.
Não deixou de pensar nas interrogações do estroina. Ao ser nómada, em constantes andanças pelas quatro partidas do mundo, tão depressa aterrava num lugar e enraizava o que achava serem uns rudimentos de identidade, como depressa emalava os pertences e debandava para outro lugar. Nunca soubera como é sentir o cheiro característico de uma terra – admitia. Nunca sentira o apelo. Havia quem o censurasse pela desidentificação que não combatia, por não cultivar raízes que tinham de arrolar a pertença a um só lugar, ainda que fosse hóspede de muitos lugares. Nunca se demoveu. A identificação com uma terra há de ser espontânea, quando chegar o momento de o ser, se em algum tempo o momento se anunciar.
A páginas tantas, sobressaltado pela imagem da terra que nunca fora cheirada, inaugurou a prática. Pelos lugares que foram sua parança quis subtrair um punhado de terra viva para a oferecer ao olfato. Continuou sem perceber o amplexo de sensações imortalizadas por levas de escritores. Não foi apoquentação que temesse. Não era matéria que coalescesse a insónia. Nem se intimidava com as insinuações sobre a insensibilidade que vinham dos mais chegados (que eram, tal como o seu nomadismo irrecusável, gente sempre efémera) e dos muitos desconhecidos com quem travava conversa. Os outros não entendiam como podia alguém ser tão desligado da terra e não reconhecer nenhuma terra-mãe.
Não se importunava com os archotes vivazes que contra ele eram atirados. O seu olhar via por cima. Considerava-se de todas as terras que foram suas andanças. E de todas as outras que viessem a sê-lo. De toda a terra, sem mutilar nenhuma das suas partes.

25.2.14

O navio fantasma

In http://blog.agenciapreview.com/blog/wp-content/uploads/2010/10/17OCT10_NavioFantasma.jpg
As águas lodosas eram o leito do navio que mais parecia uma silhueta. Parado, ao longe, embebido na ferrugem que o tingia com a cor de uma antiguidade. Pararam-no num canto, num lugar recôndito do cais, onde poucos se atrevem a ir. Dizem que se ouviam sussurros lúgubres sempre que alguém se aproximava.
Ninguém sabia quem era seu capitão quando fundeou. Apenas se sabe que foi durante a madrugada, estavam os sentinelas em descanso, e o navio aportou num estertor clandestino. Ninguém viu os marinheiros a desembarcar. Ninguém sabe que carga trazia. Visto ao longe, parecia uma penumbra que teimava em não perecer. O estranho caso do navio não deixava ninguém indiferente. Dele rezam histórias medonhas, de rituais que se cumpriam quando as nuvens escondiam o luar, ou quando a lua se escondia dos olhos humanos. Ninguém queria dizer o que sabe sobre a história do navio. Houve quem viesse de longe, atraído pelo estranho caso que é o navio. Os trabalhadores da estiva e os locais desconversavam quando um forasteiro pedia informações sobre o navio fantasma. Desconfiavam que estivesse embruxado. Logo a seguir ao enigmático fundear do navio, aconteceram três mortes macabras, algumas doenças súbitas, uns atos tresloucados de gente respeitável. Não podia ser coincidência. Só podia ser tramoia do navio contumaz.
O tempo foi correndo e ninguém via movimento no navio. Ninguém correu o risco de ir a bordo, nem as autoridades queriam romper o mistério instalado. O navio sequestrou-se dentro das suas muralhas. Deitou-se naquele recôndito canto do cais, onde as águas mais lodosas faziam confluência. Até o nevoeiro desaguava naquela parcela do cais, alimentando o fantasmagórico navio. E nem o mar corrosivo chegava para o importunar. A ferrugem que crescia era uma camada que se somava à penumbra que era o navio. Os mais corajosos que ao perto conseguiram chegar juraram que o navio não vacilava no seu perene flutuar. E juraram, expeditos, que de cada vez que ao de perto chegavam, uma súbita neblina tombava sobre o navio, cobrindo-o de mais penumbra.
Uma madrugada, sem que ninguém contasse, o cais que já se considerava leito perene do navio fantasma achou-se vazio. Zarpara sem pré-aviso. Os vigilantes juraram a pés juntos que ninguém entrara no cais. Sobrou o mito do navio fantasma. Diz-se que era um navio sem tripulação. Outros dizem que aquele navio nunca existiu.

24.2.14

O machado de guerra que se desenterra (outra vez)

In http://totallycoolpix.com/wp-content/uploads/2014/20140123_kiev_riots/kiev_riots_038.jpg
Este é um breve ensaio sobre a bestialidade humana. Ou, apenas, um sentido lacrimejar que verte uma incorrigível ingenuidade. Somos o que somos. Desta matéria inescapável não sabemos ser fugitivos. Andámos na bruma da história, como andamos em sucessivos episódios, num olimpismo de matanças que destoa da antropocêntrica lição de que somos a única espécie animal dotada de racionalidade. Podem os vezeiros na necessidade do conflito humano recordar que o antagonismo, quando desce para as margens da intolerância, alimenta bestas que se esquecem da sua racional condição. Esses, que desprezam o valor incalculável de qualquer vida humana, acabam resignados à racionalidade das guerras. Dizem: as guerras servem para expiar males; e argumentam que servem para acabar com uns párias, com as suas ideias absurdas, ou o seu apego ao poder ao arrepio da hostilidade de quem governam.
O machado de guerra não chega a ser enterrado. Às vezes, quando da história sobram humilhantes guerras que são o degredo de inomináveis atrocidades, proclama-se a reinvenção dos tempos. Um otimismo exacerbado, em contraponto com as plúmbeas nuvens que vinham de trás, é servido em cálices de fina porcelana. Não tarda a esmigalhar-se a porcelana, esmagada pelos dedos duros e pela verve empedernida dos homens que não sabem aceitar a diferença. O machado de guerra nunca teve funeral. É património genético da condição humana. Que haja peritos que nobilitam a “arte” da guerra e que se entretenham a congeminar “teatros” de guerra, manipulando a carne para canhão que são os peões servidos num banho de sangue, é o espelho da má têmpera de uma humanidade desmembrada em seus fracos instintos. (E um insulto a palavras tão nobres como “arte” e “teatro”.)
As imagens que mostram Kiev em trincheiras. As imagens de gente baleada por snipers traiçoeiros. As imagens dos diplomatas que pesam todas as palavras para não ferir suscetibilidades. As imagens dos polícias e do exército, armados até aos dentes, não hesitando na violência gratuita. E as imagens dos barricados que também decaíram na violência pela violência, numa espiral que – teme-se – possa ter um fim muito adiado. É toda uma vergonha que um desenganado dos pergaminhos da humanidade não cessa de sentir.
Pode a idade acumular-se nas folhas do calendário. Podem as guerras ir e vir com o tempo. E muito sangue de inocentes ser derramado. Não sei aprender esta lógica autista, esta linguagem violenta, o depreciar da vida humana. Não sei desaprender esta ingenuidade que, todavia, já me ensinou que não há pessimismo antropológico que ganhe espessura. Não é pessimismo. É o que existe. Uma humanidade com atração pelo abismo da autofagia.
(Em Faro)

21.2.14

Peixe sem aquário

Television, "Marquee Moon" (live), in http://www.youtube.com/watch?v=JtFlD-dD-F8
Éramos peixes que não tinham aquário. Andávamos pelo modismo punk. E éramos a antítese sociológica do punk, a menos que ruíssem os estereótipos que acantonam as pessoas em lugares pequenos, dentro de uma homonímia castradora, como se fosse proibido transitar entre diferentes espaços estéticos.
Bebíamos o punk e não medrava cansaço de nele nos embebermos. Não nos revíamos no argumentário rebelde, mas éramos rebeldes à nossa maneira. Ajuramentámos que não tinha de haver integral comunhão de propósitos, nem teríamos de caucionar toda a mensagem que os idealistas do punk vertiam em voz rouca e dura. Nunca congeminámos indumentária e visual a preceito. A rebeldia, guardámo-la para as digressões interiores que, às vezes, fantasiavam revoluções que nunca haveriam de o ser. Depois conhecemos o modismo gótico. Foi um enamoramento pela sonoridade, que o misticismo gótico não colhia em nós adeptos.
Íamos aos lugares onde estes músicos atuavam. Olhavam-nos com desconfiança, corpos estranhos que éramos numa multidão tingida por trevas da cabeça aos pés. Continuámos a ser peixes sem aquário. Não nos importávamos. Não havia importunações maiores, nem a violência era connosco. Chegámos a visitar comícios comunistas, ó heresia com perdão, por mais alto falarem os músicos que por lá atuavam. Entretanto, o tempo teve o seu lugar. Os modismos que julgámos definitivos quando os tivemos, hibernaram. As dores de parto das responsabilidades da adulta condição silenciaram a rebeldia que fermentara no idealismo punk ou na parafernália gótica.
Agora, a nostalgia quer derrotar a hibernação que deixou de ser imperativa quando a acomodação sussurrou o pleito do envelhecimento. Alguns vão aos tempos de antanho para soprar a poeira que era madraça das recordações. Outros ensaiam uma antropologia cultural vistosa, para descobrirem o fio à meada aos modismos em que transitámos na adolescência e na pós-adolescência, esquadrinhando a inspiração dos novos ícones que acrescentam o pós ao punk e ao gótico. Outros, apenas reaprendem. Sem panaceias para o tempo ingrato, se não voltam a ser peixes sem aquário.

20.2.14

Carta de pesados

In http://photos1.blogger.com/blogger/4962/891/1600/tir.0.jpg
Agora sou patrão. Que é como que diz: porto-me como patrão. Ganhei pergaminhos. Arroto quando me apetece, onde me apetece. Tomo banho quando calha, ou quando me cheiro mal e não apetece cheirar-me a pútrido. Como muito, como se o amanhã não viesse. Bebo do melhor. Muitas vezes ao dia. Já não me interessam os tratos de polé, um sacrifício imoderado do corpo.
Agora é só hedonismo e ensimesmar. Engordei, passei das medidas. Deixei de caber na roupa que era de quando era elegante. Mas não deixei de ser galante – e sei que sou sedutor. Nem sequer a extravasão das medidas, quando mal consigo discernir o sexo ao estacionar diante de um urinol, destrói a autoestima. Como sou rei do meu reino, e todos os demais são súbditos por causa da sua periférica condição, trato-os com desdém. Transpiro rudeza; é uma defesa contra as desfeitas que chegam das quatro partidas do mundo. Para meu bem-estar, tornei-me desconfiado antes que a confiança para fora de mim seja minha traição.
Sento-me na esplanada com as gordas coxas escancaradas, o cóccix escorregando até ao limite da cadeira, e contemplo, com pose sobranceira, os que passam. Não peço por favor quando encomendo as imperais, nem é esquecimento; a jactância cauciona um estatuto e o estatuto dispensa a boa educação dos moles. Na mesa de um lado, aterra uma pós-adolescente que exala lubricidade. Na mesa do outro lado, uma aparentemente divorciada que mal se amanha com a pré-menopausa. Deito olhos às duas, uma de cada vez. Atiro à mais velha uns piropos sedutores à saída. Empertigada, acusa-me de ser boçal e eu não percebo (ainda não fui ao dicionário saber o que é boçal). Limitei-me a usar linguagem grosseira. Elas gostam de ouvir um homem que se gaba de o ser a ostentar a máscula condição que se verte na superioridade do género.
Agora só faço o que me apetece. Dou-me ao luxo de obedecer quando estou para aí virado. Porque agora tenho carta de pesados. A mais invejável das condições. Vejo tudo de um pedestal, cá de cima onde tantos almejam trepar e só um escol consegue lugar. Pois tenho carta de pesados. Sou o motorista do meu próprio pesado. Agora sou patrão. Senhor da minha própria boçalidade, sem ter de pedir desculpa nem baixar a cabeça em humilhante dose de humildade.

19.2.14

Paladino da riducularia

In http://www.mulheresodeiam.com.br/wp-content/uploads/2010/09/dedo-no-nariz.jpg
Pantominas sem saber. Em seu íntimo, todo um contrário: o ar garboso, jactante, a pose seráfica a impor respeitabilidade, uns parêntesis a consumar um grotesco sentido de humor (e lançar as gargalhadas mal a piada foi bolçada, antecipando-se à não gargalhada dos ouvintes).
Também sem o saber, presta um inestimável serviço público. Se por público se considerarem os que esbarram na sua prosápia risível. Serviço público, e dos impagáveis, por ser um mapa por onde os outros sabem que não devem transitar. E mais ainda sem preço o serviço público que oferece sem nada pedir em contrapartida: ora, o ridículo, às vezes, é um entretenimento. É preciso ter circenses figuras de plantão. Para romper com a modorra, com os tristões que contaminam a paisagem com o cinzento que se aninha em seus seres. Entre a gente desinteressante e enfadonha e os que mergulham no ridículo, a escolha inclina-se para estes?
Habita num poço de contradições. Tem-se em muito elevada consideração. Como se adejasse, fruto de uma superioridade inenarrável, por cima dos comuns mortais (ele não se considera tal). O patine é pergaminho. Mas não é pergaminho do que acha ser seu merecimento. Os poucos que não enjeitam genuflexão são da mesma igualha (pois não são apenas os opostos que se atraem; também acontece com os iguais). Os demais apreciam a indigência. Porque entretém, sendo um desfiladeiro onde se amotinam as aberrações da espécie. É um pouco como ir ao circo ver anormalidades. Ou, como faziam os de antanho, que saciavam a curiosidade (mórbida) a apreciar mulheres barbudas, anões, homens com mãos de seis dedos, achados africanos que se confundiam com animais da selva, ou o homem gigante (para cima de dois metros e vinte).
O ridículo não mata – o que desmente outro achado da sabedoria popular (desmentindo-a enquanto sabedoria; resta apenas o popular). O ridículo fermenta e multiplica-se. Não mata, mas é doença. Porque quem se deita no ridículo não o faz por ato volitivo: o ridículo é uma transcendência. E porque há toda uma vasta audiência no cortejo de ridículos que passam, servindo o género. Parecendo que muitos alimentam o desejo secreto de serem próceres da riducularia.

18.2.14

Morder, dos calcanhares ao pescoço (ou: são mais que as mães)

Davendra Banhart, "Chinese Children", in http://www.youtube.com/watch?v=ryX5vL1psSo
Os iluminados do costume a quererem dar razão ao povo – ao mesmo povo que, lá do alto da sua intelectual sobranceria, desprezam: devemos ter cuidado com os chineses. Um dia destes, somos todos chineses. Ou, pelo menos, teremos uma costela chinesa. Por afinidade, nem que seja por via da colonização dos capitais.
Ele são as lojas do franchising chinês, as tais que o povo, na sua imensa sabedoria (dita popular), assegura que estão isentas de impostos. Ele é a empresa de eletricidade que agora tem donos chineses. Ou os seguros do banco do Estado que foram trespassados ao capital chinês. E por aí fora. Com o apogeu: os chineses reproduzem-se como o povo sugere acontecer com os coelhos. De resto, os demógrafos fazem as contas: ao ritmo que deixamos de fazer bebés no ocidente, os chineses aumentam a prole e crescem por todo o mundo como rede tentacular. Por este andar, será obrigatória a reprodução com chineses/chinesas: consta que têm uma taxa de fertilidade maior – ou então não são sensíveis ao hedonismo ocidental, o ensimesmar que recusa a deixar descendência abundante, e desatam a copular até que a cópula termine em gestação.
Há uma solução. É a contrária dos chineses, que nos últimos anos penalizam os casais que sejam férteis além da medida oficial. O ocidente devia apostar: i) em políticas públicas de promoção da natalidade. (Há uns tempos, antes dos erários públicos terem descoberto que estavam quase falidos, havia a ideia de passar cheques gordos de cada vez que os nascituros vissem a luz do dia. Agora os apertos não são lagar para tamanha liberalidade.); ii) penalizar os contracetivos. A igreja seria a primeira a aplaudir; iii) e já que os tempos se converteram em públicos tribunais onde desfilam moralidades que vão e vêm com a mudança dos ventos, congeminava-se uma campanha de relações públicas da pródiga natalidade. Daquelas campanhas que usam argumentos canhestros, com uma dose salivar de coação psicológica, convencendo os que estão (e ainda estão) em idade fértil que devem deixar a sua impressão digital na demografia futura. Se não, vêm aí os chineses, ó coisa medonha, e os vindouros serão todos chineses, aparentados com chineses, ou mandados por chineses. Quem quer assumir o ónus? É desatar, ó bom povo, a copular até à gestação, pois então!
E não digam aos iluminados do costume que isto é racismo, ou xenofobia, que eles podem ficar ofendidos com a sugestão.

17.2.14

Heróis num dia

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgIoXN3iuBk4aM0PRia3m1fQQ1HlVikpWM-hjP0mz3sBTC3JeRn2qe1wAyhhZ93Uw6crZZP_RXvdcE1BLOPqOY7fv3MzcktfvgPmexaoGiXMnvsc8t8K0HqFZ7Pfn7eBUKRCJcG/s400/medalhas+mal+colocadas.jpg
Jurávamos que os heróis não interessam. Jurávamos que não os havia, heróis. Os que o julgassem ser eram embustes, medrando numa fantasia loquaz. Viviam sitiados numa alucinação, achavam-se curadores de proezas que não estavam à mão de semear dos demais, dos que não podiam tocar na sublime dimensão da heroicidade. Julgávamos que os heróis eram néscios, pois os heroísmos quase sempre desaguam numa morte. E por mais temerária que essa morte fosse, por mais salvações que tivesse arregimentado, era sempre, e apenas, uma morte. Todas as mortes, ao serem uma perda, são inúteis. Os heróis também.
Mas naquele dia uma maresia diferente transtornou-os. As bissetrizes adulteravam os ponteiros da bússola. Acordaram com o olhar sem freios. As mãos suadas, apesar da alvorada, desconfiavam da insinceridade do tempo. Era como se aquele fosse o tempo despido das amarras do tempo e todo o tempo respirasse por entre os poros abertos. Ungiram-se com a magnitude dos eleitos, em contravenção com os ideais (não havia escolhidos). As mãos não se enxaguavam. Os olhos prometiam não capitular no cansaço. Às voltas com a maresia incessante, entronizaram-se heróis. Não importava o que os outros dissessem. Era como se tudo lá fora se tivesse reduzido às suas existências. Ou como se o mundo estivesse parado à espera das suas resoluções.
Não era um sonho. Não havia nuvens a contrariar o luzimento do céu que era o cais de onde emanavam os feixes que vinham repousar em seus ombros. Sabiam: que aquele era o dia em que eram heróis. Só naquele dia. Curavam as maleitas que eram o sofrimento do mundo. E nem assim os seus ombros arqueavam. Reis por um dia, ao menos nesse dia rejeitaram dogmas que eram todo um pretérito. Um longo dia depois, quando nem o sono reivindicava seu lugar, deitaram-se. Não sabiam se o dia depois era o fio condutor dos anteriores, ou se a véspera fora o início de uma aprendizagem.
Ser herói era a humildade da ignorância dos que não chamam a si oráculo nenhum. Eram, pois, heróis na sua antítese.

14.2.14

Dependências


Aimee Mann, "Wise Up", in http://www.youtube.com/watch?v=aNmKghTvj0E
Um ator morre com uma agulha espetada numa veia. O mundo tece seus prantos. Um músico morre depois da decadência em que tropeçou, num cocktail de drogas e álcool e depravação. E o mundo tece seus prantos. Um anónimo de andrajos e barba mal escanhoada, em evidente falta de higiene pessoal, parqueia carros e pede uma esmola para o vício. O mundo inteiro desconfia, rosna com desdém. Um destes anónimos já não volta a acordar, quando o encontram no esconderijo imundo com uma agulha espetada na numa veia, rodeado por ratazanas. E o mundo continua impassível, na contabilidade do perecimento dos inúteis.
Os dependentes prometem-se redenção. Sabem que a vida depende da redenção. Ninguém o sabe melhor. E, todavia, sucumbem no combate contra as forças que emergem de dentro deles e lhes embargam as forças para não serem o que são. As dependências extinguem a vontade. Há quem diga que não é assim; que alguns conseguiram travar o combate e dobraram o braço às forças malévolas que colonizam a vontade. Mas os casos são todos diferentes. Somos a força da genética. Às vezes, a genética é fraca. Submissa. Docemente covarde, quando se ajoelha diante dos altares que prometem as vãs sensações propulsionadas pelas dependências (quaisquer que sejam as dependências). Ainda têm de levar com a reprovação social. Ostracizam-se. E deixam-se ainda mais ostracizar pelos outros, os que decerto não têm vergonhas próprias para expiar.
Levantam-se os dependentes. É outro o dia. É o seu maior triunfo: saberem que há uma alvorada outra vez. Não, não são os fracos que convém apostrofar. Os que levamos a vida tão normal, tão estéril e cheia de virtudes, nem sabemos como é frágil cada alvorada. Nem percebemos a dor do deitar – nem eles, em boa verdade, quando nem dão conta, imersos nas suas dependências, que mergulharam no sono. Nem percebemos a algazarra da alvorada, só de sentir que houve mais uma alvorada. Mas as dependências depressa consomem a sensação de gratificação que os percorre por dentro.
O vício é um chamamento irrecusável. Toma conta de tudo. Por mais que se prometam curas que, as mais das vezes, são adiamento de uma reincidência. Até que já não haja tempo para reincidir. Porque o tempo se apagou. Na voracidade das dependências.

13.2.14

Looking through the glass

The Gift, "My Lovely Mirror", in http://www.youtube.com/watch?v=FGPtGezeI1o
Um espelho. Um imenso espelho diante de todos nós. Em todos os lugares, quando damos conta que precisamos de ver para além do que o olhar alcança. Das outras vezes, o espelho só está onde estão os que dele procuram serventia. É quase sempre assim.
É um espelho resplandecente. E não precisa de ser dia solarengo. Resplandece porque temos, sem exceção, um recanto onde medram os nenúfares floridos que são sedimento dos poetas. Sem exceção, somos, naquele pedaço interior que incandesce até em árticas paisagens, um oráculo que dissolve as más profecias sobre a espécie de que somos espécimes. Pode o espelho não refletir imagem recomendável. É mesmo certo que o primeiro olhar que deitamos sobre o espelho onde aparecemos retratados seja estranho, um campo estéril domado por ervas daninhas. Mas isso é porque somos modestos. Ou porque demora a sermos visíveis como imagens repercutidas pelo espelho.
A paciência deve vingar como método. O olhar não deve desistir de sondar no espelho as irradiações que mereçam aplauso. O olhar deve entrar no espelho, desembaraçar-se da matéria lodosa que encontra ao primeiro tato, persistir nas interrogações. Uma teima saudável. Deve partir sem ser de pé atrás. Esgrimir com as forças interiores que açambarcam a bonomia que se perde num rasto invisível. Há atrocidades, gente capaz do inominável, perfídias, nuvens sombrias que se arqueiam sobre as costas dobradas da espécie de que somos espécimes. O espelho que convoca um olhar além de si mesmo ensina que as coisas têm de ser sopesadas. Ao património que envergonha corresponde outro tanto, se não maior, admirável património. O olhar além do espelho cativa o método exigível. Esquadrinha os pesares, desmotiva as nuvens sombrias, corrige o dorso arqueado pela culpa ladina que vem da educação assim convencionada.
Ao olhar além do espelho, é uma redescoberta. Achamos um eu desencontrado. Reaprendemos a ser, de braço dado com o eu agora redescoberto. Já não interessa regressar à casa da partida. Tínhamos de saltar a cerca e voltar do lado oculto do espelho. Seria uma loucura sem préstimo.   

12.2.14

Aos bufos, rifas!

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEimfUYwKCtSQO4oQQzhyphenhyphenpY5cl5gF9Njwcz-95l3_iuUbDZF-RM2F_-QzDnYBjaP9ZtupoJGOOxv0LiJAm6MsTs6D4QfJmyQahhguP_07E3lcTH6p9w_QTSwE4nSYmHZFGDo1qYw/s1600/rifa.jpg
Os encantos da santa terrinha: o fisco convida-nos à bufaria. Consta que os comerciantes eram peritos em fugir à alçada do fisco. Pagavam menos impostos. Ressentia-se o erário público – logo agora, que todos os cêntimos de réditos fiscais são procurados como um expatriado perdido no meio do deserto anseia por umas gotas de água. E depois havia aquele argumento, ungido pela moral e pela tacanhez da coação psicológica, de que pagamos, os que não conseguimos fugir, pela fuga dos comerciantes.
À partida, a empreitada do fisco está fadada ao sucesso: somos propensos ao queixume e à delação (e de preferência, anónima, que a coragem abunda nas palavras mas é rasa nos atos). Mas é tanta a carência de impostos, para compor a casa que rebentava pelas costuras, que o fisco não podia arriscar na lógica das probabilidades – ainda que as probabilidades fossem elevadas. Saiu um coelho da cartola: para banir a improbabilidade de os contribuintes não aceitarem a delação dos comerciantes, esquematiza-se um modelo de rifas. Aos asnos, é preciso acenar com uma cenoura.
A pólvora foi redescoberta. O erário público está a salvo. O cobrador de fraque nem precisa de tirar as pantufas ou de levantar o rabo do sofá. O “sujeito passivo” passa a ser um ente ativo na captação de impostos. Com a mão amiga da tecnologia, que a informática ajuda a troca de informações e fica fácil saber que faturas pedimos e a quem. Os sacripantas que antes eram contumazes no pagamento de impostos estão sitiados. Agora, além de sermos “sujeitos passivos” (pagadores de impostos, sem remissão), somos ajudantes de cobradores de fraque. A cenoura que faltava são as rifas que sorteiam carros de alta cilindrada entre os delatores.
Fica a faltar um ato desta ópera bufa: o Estado aviltante, que descobre todos os dias maneiras de ser intruso na vida das pessoas (e ainda chamam a este governo “neoliberal”...), devia arranjar maneira de obrigar – merece repetição: o-b-r-i-g-a-r – os “sujeitos passivos” a pedirem sempre fatura. Quem o não fizesse ficaria sob a mira dos diligente bufos, os que pedem sempre faturas para que os vendedores não fujam à mui civilizacional obrigação do pagamento de impostos. Seriam bufos em dupla dose: também delatores dos contribuintes que se recusam a pedir fatura.
Que tirem bom proveito do carrão de alta cilindrada.

11.2.14

O angariador de abraços

In http://strawberryindigo.files.wordpress.com/2013/10/free-hugs.jpg%3Fw%3D835%26h%3D400%26crop%3D1
Noites bem dormidas. Isentas de pesadelos. Um sono atapetado por lençóis de seda. Só possível aos que não tropeçam em apoquentações. Aos que se abraçam ao mundo com os defeitos que são seus, e os do mundo, sem decair num palco dramático, onde o negrume realista berra tão alto.
As alvoradas são sempre erupções radiosas, as cores abrindo-se numa cornucópia de flores pujantes em seu perfume. “Os olhos sem olheiras vêm melhor”, diz para os seus botões enquanto espreita no espelho da casa de banho depois de discernir o tempo lá fora (por sinal, chuvoso). As baias do dia, de todos os dias, são da sua autoria. Não vira a cara ao lado obscuro do mundo, em abruptas doses servido pela imprensa. Mas não capitula. As desgraças, as mortes, as misérias, as decantações da bondade (em sua furtiva debandada), as aleivosias, os disfarces, a contumaz ilação superficial – o cardápio inteiro que os olhos, ausentes de olheiras, desfolham enquanto se desembaraça do pequeno-almoço.
Plano do dia: o mesmo dos dias anteriores: descer à rua, uma qualquer movimentada no coração da cidade, e oferecer abraços às pessoas que passam” – regista mentalmente. Pois não há, naquela casa, nem nas casas em redor, ninguém com quem trocar umas palavras. Não é isso que o entristece. Está vacinado contra a melancolia. Tivera a sua dose. Aprendera com a inutilidade da melancolia. E aprendera como é escasso o tempo de sobra. Por mais que seja – é escasso. Não pode esse tempo ser domado pela melancolia, ou pelas forças que usurpam a escuridão e embaciam a humanidade.
Saiu à rua. Pôs uma fatiota a preceito, apessoado como iria para o escritório (que já não era seu poiso). A tiracolo, as tarjas de cartão por onde enfiaria a cabeça assim que subisse da estação do metro a uma das ruas centrípetas da cidade. Na tarja, em letras de cores garridas, o dizer ostentatório: “ofereço abraços!” Assim como assim, tinha de transformar a desocupação numa utilidade, tinha de fugir da hibernação. Para os outros, indiferentes ou não à sua generosidade afetiva. E para o tempo seu que, desocupado, não podia ser convertido em bálsamo de sobressaltos.
As lágrimas, não as enxugava de si mesmo. Retirava-as dos rostos fechados dos anónimos que aceitavam um abraço. Nem que fosse por uns segundos.

10.2.14

Bolachas com leite?

Morphine, "French Fries", in http://www.youtube.com/watch?v=2n7yOkeFJMM
Alguma literatura consagra as criancinhas. Destilando um ódio pelos crescidos, desencoraja os petizes a querem ser, ou apenas a fazer de conta que são, adultos. Deixai as complexidades para a idade adulta e aproveitai a meninice que desconhece as torpezas que hão de acontecer pela batuta da madurez. Dizem: é na infância que somos puros.
Desajeitados na sua maturidade mal pendida, ou desenganados por sobressaltos que espigaram a dor, queriam, se pudessem, voltar muito atrás no tempo. Imagino que se imaginam prisioneiros da infância, no regozijo dessa condição que não consideram um cárcere. Mas a biologia não cauciona fantasias. Os corpos crescem. As mentes também. E ascendem das profundezas as sombras que enxotam a lucidez. Parece que não contam os confortos que houve durante a alforria da meninez. Só contam os sobressaltos que inflamaram a dor, as vilanias que açambarcam os tempos, a capitulação que cresce com o tempo que se devia fazer madraço. É gente que vive depressa quando queria passar devagar pela vida; ou gente que segue com vagar quando apetecia estugar o passo pela existência. Desaproveitam os anos de ouro que são os da lucidez desembaraçada das imberbes fantasias.
Tudo ao contrário: a tenra idade é uma maçada. Um espartilho incómodo quando somos protegidos dentro de uma incubadora, porque lá fora o mundo é terrível. É o pior dos engodos. Porque se o mundo lá fora é terrível, as criancinhas deviam ser treinadas desde que são gente. Mais tarde, as dores são lancinantes. Pois estão impreparados para suportar a tempestade em que se metem, já sem o baraço de quem os protegeu no seio de seu cais progenitor. A tenra idade é uma maçada. Desconhece os prazeres que a madurez adestra. Que mal vem ao mundo quando tropeçamos em gente soez, ou se somos gente soez (que a ninguém é dado o atributo de ostentar uma canhestra e arrogante superioridade)? Os estarolas desenganados vagueiam na sua errância. A maior de todas é quando bolçam as saudades do tempo em seu retrocesso, até pararem na longínqua idade de que tudo se diz ser inocência.
A infância é desinteressante. Mais desinteressantes são os cultores da estética da infância. Cálice erguido, pois, aos prazeres que são antítese da infância.

7.2.14

O inverno do descontentamento

Pixies, "Stormy Weather", in http://www.youtube.com/watch?v=CKvjORjy0d4
Conversa sobre o tempo, do tempo que faz, com a sucessão de intempéries. Mas não é para desconversar.
Ouço as pessoas a lamentar a invernia rigorosa que se pôs este ano. Estão fartas da chuva, do vento, do frio, das tempestades, do mar alteroso, dos alertas amarelos e laranjas e vermelhos do instituto de meteorologia. Há prantos pelas saudades do tempo soalheiro do verão. Alguns, se lhes fosse dado o vencimento da sua vontade, nunca tinham inverno. Detestam a chuva. Nunca pensaram o que seria do bem-estar (a começar pela higiene que exige banhar o corpo) se a chuva fosse banida dos boletins meteorológicos. Outros, resignando-se à chuva – como se fosse um preço irrecusável para aprouver necessidades básicas – protestam contra a congeminação dos elementos atmosféricos que, neste inverno, dirigiram as nuvens em ininterruptas catadupas para o território onde estamos.
Como a memória tem perna curta, quase todos se esquecem que os invernos anteriores foram de aridez (para os padrões a que estamos habituados). É assim que somos: gente radical. Quase todos ignorantes da ciência meteorológica, andámos ansiosos com a aridez prolongada que tomou conta de invernos anteriores, fazendo aliança com os peritos que advertiam para as catástrofes que podiam vir se a chuva não nos visitasse. Só faltou fazer danças da chuva, pedindo-as de empréstimo a uma tribo índia especialista no assunto. Agora que o inverno tem sido abundância de chuva, encharcando os ossos dos que são apanhados na rua a meio de uma intempérie, atiramo-nos contra a impiedosa mão divina que desviou a rota das plúmbeas nuvens para estas latitudes e açambarcou o sol, adiando-o para o tempo em que o tempo é seu feitor.
Ainda dizem que somos de brandos costumes. Ou nos queixamos de invernos sem chuva, ou protestamos porque os invernos são passados a água. Quem se despe no altar da radicalidade não é de brandos costumes. Assim como assim, será a influência que os elementos atmosféricos produzem sobre nós. Tal como temos invernos rigorosos (por ausência ou excesso de chuva), também temos propensão a ser radicais. Como o tempo que se põe.

6.2.14

Arroz queimado

In http://arcadenoe.sapo.pt/img/race/big_727.jpg
A espuma que vem, outra vez, à tona: dizem que a “socialização” dos neófitos estudantes é primária, violenta, humilhante, degradante, e mais um punhado de adjetivos nada elogiosos. Como desta vez se suspeita que mortos havidos se devem a boçais praxes, o assunto voltou a ter visibilidade. Os campos dividem-se. Há quem exija a proibição da coisa. Há quem mantenha os pés firmes na “tradição” e recuse o proibicionismo.
Primeiro: os alunos que entram na universidade são maiores de idade. Sabem cuidar de si. Têm – ou devem ter – vontade própria. Se forem o protótipo da pessoa comum, não gostam de ser humilhados, não são subservientes, não querem ser as figuras circenses que põem nos outros uma farta gargalhada. Cabe-lhes recusar o anacronismo e denunciar ameaças de estigmatização por serem objetores de consciência.
Segundo: os aduladores da praxe insistem na javardice, estimulam práticas que são retrocesso cognitivo, contentam-se com a humilhação do outro, cultivam uma relação social medieval baseada em castas. Não é coisa que seja digna para quem julga a indignidade da coisa. Aparentemente, ainda vivemos num lugar onde é permitida a divergência de opiniões. Se há jovens e menos jovens que se entretêm a “socializar” outros, entregues a um onanismo intelectual que podia ser objeto de estudo de psiquiatras, deixá-los ser e deixá-los estar. A imbecilidade não é proibida por lei.
Terceiro: estou cansado de proibições. Esta democracia adultera-se a cada passo que julga poder resolver problemas através de um cardápio interminável de proibições. Legisla-se ao menor frémito e, de caminho, a legislação contempla proibições a eito (ou autorizações dependentes das autoridades, só para enfatizar o poder das autoridades – numa forma suave de proibir, que é exigir que se peça autorização). As “praxes académicas” causam-me náuseas. Mas pior seria proibi-las por lei. Também não gosto de touradas, ou de concertos do David Fonseca; tenho bom remédio: não vou a touradas nem me apoquento com concertos do David Fonseca. Era o que mais faltava aparecer condoído a exigir uma lei que os proibisse.
A estética é tudo, e muito relativa. A anti-estética das coisas também. Há gente que se denuncia pelas pessoais preferências e pelas palavras e atos que são suas. Não é isto moralismo em germinação. Quem não gostar de praxes, desvie o olhar – ou anote-as com cuidado, só para perceber a indigência em que certa gente se encerra. Apetecia pressagiar que os praxistas fossem praxados. A medieval hierarquia, e a coisa na sua essência, não o admitem. A vingança espera-os em sua glacial temperatura, contudo. Quando os mais veteranos decidirem deixar de gastar dinheiro dos progenitores e concluírem os estudos, a selva do trabalho (ou do desemprego) está à espera deles. Para a invisível e a pior de todas as praxes.

5.2.14

Parente pobre

In http://apenas1.files.wordpress.com/2011/06/vergonha.jpg
O enjeitado. Tatua na pele as lágrimas que verte para dentro de si mesmo. Está convencido que é desamado por todos. A começar pelos entes queridos, que a si não são queridos porque não o querem bem. Lá fora, onde o mundo fervilha e as pessoas são indiferentes, encontra seu habitat. Não ser conhecido de ninguém é a caução de indiferença, o melhor trato que alguém lhe pode dedicar. Tem asco a pessoas, convencido que as pessoas não amontoam simpatia por ele.
Um dia, alguém disse que podia apenas ser impressão sua. Que não parecia que fosse desamado por quem lhe haveria de querer bem. Discordou com veemência. Ato contínuo, deixou de ser visita dessa pessoa. Não havia maior inimigo de si mesmo: ele, em pessoa. De outra vez, em conversa espontânea com um desconhecido que coincidira no cais do rio, libertou a fala e admitiu ser parente pobre da espécie humana. O outro depressa se cansou da ladainha que suplicava comiseração. Primeiro rebateu o pranto, assegurou que ninguém é parente pobre da humanidade. Como ele insistia na indigência, o outro tirou a impaciência do refrigério e perguntou por que se tomava tão importante ao achar-se antropologicamente parente pobre. Foram as últimas palavras que escutou àquele estranho.
Se alguém ousava dele discordar, era pessoa cuja presença era arrematada no patíbulo. A certa altura, um tio, destravada a língua num almoço de família bem regado, atirou sem complacência: “és insuportável. Ainda mais insuportável do que julgas ser. E não é elogio.” Não perdia o sono. Acordava sobressaltado, contudo, pois os outros confirmavam-no como pária. De resto, não movia um dedo para mudar o estatuto. Estava sitiado num complexo paradoxo: ser parente pobre da humanidade incomodava-o e, ao mesmo tempo, garantia-lhe razão no diagnóstico de si mesmo.
Vítima da má têmpera e de uma teimosia contumaz, prolongou-se enquanto os demais, da sua roda de conhecidos, iam perecendo. Foi quando ficou sozinho, velho e iracundo, que tomou nota do arrependimento: porventura a existência teria sido diferente, mais ligeira e suportável, se houvesse desalfandegado o bicho do mato em que se tornara. Agora, e pela primeira vez, a solidão era excruciante.

4.2.14

Circense elementar

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgr0zOu8anN5Ip11MFR_DFeh9tQNMIURcAMmKfihah5ki41uS-jCMl26Lmo-WOjM1cy6npIOpzK9uzb8Rign7O1NV-tXLIZbWkjOIeEXUOms20ImylC1jXiJTTytLtIiewSloGV6g/s320/palhaco.jpg
Fica para além da compreensão o desdém por palhaços. É costume apoucar alguém alcunhando-o de palhaço, mas a medida está errada. Os palhaços são matéria fina por serem serviçais da boa disposição de quem é seu destinatário. E tanto podemos pensar nos palhaços profissionais, por mais que se esforcem em não ter graça nenhuma, como nos que se profissionalizam na arte de terem graça sem serem profissionais do ramo. Há ainda os que esmeram no risível. É ingrato desprezá-los, atiçando-lhes o opróbrio de serem palhaços: em vendo bem, tantas e sonoras gargalhadas se soltam ao seu passar que não merecem menosprezo.
O mal da semântica é que se populariza em falácias. Quando o povo chama palhaço a alguém, não é elogio. Às vezes, é dito com voz arrastada que transpira agressividade. Como podemos ser agressivos para alguém que nos faz rir? É como daquelas vezes que mandamos alguém copular e a frase é atirada com agressividade latente. A semântica que se populariza, adulterando o sentido das palavras contidas na frase, rejeita um deleite. Se mandamos alguém copular, e se da respetiva prática gostamos, a remissão não pode ser ultraje. Em vez de desejarmos mal a quem ao coito destinamos, é um bem imenso que lhe pressagiamos. A menos que o povo desabrido, na sua maldizente língua, não seja atreito à prática e, mal amanhado com o mencionado assunto, invejosamente mande os outros fazer aquilo que para ele é consumição.
De outras vezes, quando alguém pisa os limites da paciência e esta se transborda em impaciência, mandamos a dita personagem pentear macacos – ou apurar se estamos na esquina mais próxima. Destila mau feitio quem o faz. Pentear macacos não é uma prática que desmerece o tratador, ou todos os tratadores de animais seriam desqualificados por terem profissões menores. E o que chamaríamos a alguém que nos fizesse a vontade e desatasse a pentear macacos (se os primatas admitissem os tratos de polé)? Palhaços, certamente.
Este é um círculo vicioso que não tergiversa. Se não gostamos de alguém e o invetivamos como palhaço, para depois mandarmos outro ir pentear macacos (ou ser ingénuo ao ponto de nos ir procurar na esquina próxima quando nela não estamos) para lhe pespegarmos a alcunha de palhaço, é sinal de que cultivamos manobras circenses. Fazemos bem: pois se as manobras circense desatam o riso, ao menos desviamo-nos da zigomática expressão sorumbática.
A semântica popular devia sofrer revisão terminológica. Em vez de ser insultuoso, de alguém que considerássemos palhaço seria dos melhores elogios a fazer.

3.2.14

Torre de papel

 

In http://www.zenzi.org/blog-imagen/Diciembre-2010/arte-papel-torre-babel.jpg
-    Tens medo da lua?
-    Se corro contra o tempo, empunhando um punhal afiado, por que teria medo da lua?
-    Pareces amedrontado com o luar que quebra a tirania da noite...
-    Impressão tua. Sou um pouco como um lobisomem. Alimento-me do luar.
-    Das luas todas que o sol tem?
-    E de todas mais que vierem a ser achadas.
-    Não te são dadas a conhecer fragilidades dentro de ti?
-    E isso importa?
-    Tínhamos combinado que eu fazia as perguntas.
-    E as regras são rígidas?
-    Fazes outra interrogação...
-    Se me conheço fragilidades? Nunca pensei nisso.
-    És como um castelo, as ameias tão altas que por dentro és oculto aos demais?
-    Dentro de mim não há nada que interesse aos outros.
-    Não é só um pretexto para ensimesmares?
-    Digo-te que é apenas aquilo que é.
-    Mas podemos ser uma ilha, como se não articulássemos com os outros? Não te esqueças, vivemos em sociedade.
-    Admito. Vivemos em sociedade. Mas preservo as fronteiras que me separam dos outros. Com eles interajo no estritamente necessário.
-    Tens ideia que navegas num egoísmo que pode ser atroz aos olhos outros?
-    Lá vens tu com a mesma ladainha. Os outros são uma desnecessidade.
-    Pisas o risco da sociopatia?
-    Não sei. E também não sei o que é a sociopatia.
-    Aqui chegados, tenho outra perplexidade: chegas a gostar de ti mesmo?
-    Não vejo a utilidade da pergunta.
-    Se rejeitas os outros, a menos que deles precises, dir-se-ia que te auto deificaste?
-    Essa é uma pergunta desconfortável. E sem serventia que se veja.
-    Porquê?
-    Porque se ensimesmo, e se desvio o olhar das apoquentações que não são minhas, por que hão de os outros pronunciar-se sobre a minha existência?
-    Foges da resposta com uma interrogação...
-    ...Não! Constato. É um método. E até admito que ao ser metódico me inspirei numa regra que cimenta as vossas relações sociais: não praticar para fora de mim o que não admito que sobre mim, através das mãos outras, seja cometido.
-    Vives numa torre de babel?
-    A que vem ao caso tal demanda?
-    Inexpugnável, labiríntica, a torre das ameias do tamanho do céu.
-    Só a alguém que montasse num corcel alado seria admitida a visita ao meu castelo.
-    Tem cuidado. Um dia vens a descobrir que afinal és senhor de uma torre de papel. Frágil como o papel se revela quando vem o primeiro vento enfurecido.