5.2.14

Parente pobre

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O enjeitado. Tatua na pele as lágrimas que verte para dentro de si mesmo. Está convencido que é desamado por todos. A começar pelos entes queridos, que a si não são queridos porque não o querem bem. Lá fora, onde o mundo fervilha e as pessoas são indiferentes, encontra seu habitat. Não ser conhecido de ninguém é a caução de indiferença, o melhor trato que alguém lhe pode dedicar. Tem asco a pessoas, convencido que as pessoas não amontoam simpatia por ele.
Um dia, alguém disse que podia apenas ser impressão sua. Que não parecia que fosse desamado por quem lhe haveria de querer bem. Discordou com veemência. Ato contínuo, deixou de ser visita dessa pessoa. Não havia maior inimigo de si mesmo: ele, em pessoa. De outra vez, em conversa espontânea com um desconhecido que coincidira no cais do rio, libertou a fala e admitiu ser parente pobre da espécie humana. O outro depressa se cansou da ladainha que suplicava comiseração. Primeiro rebateu o pranto, assegurou que ninguém é parente pobre da humanidade. Como ele insistia na indigência, o outro tirou a impaciência do refrigério e perguntou por que se tomava tão importante ao achar-se antropologicamente parente pobre. Foram as últimas palavras que escutou àquele estranho.
Se alguém ousava dele discordar, era pessoa cuja presença era arrematada no patíbulo. A certa altura, um tio, destravada a língua num almoço de família bem regado, atirou sem complacência: “és insuportável. Ainda mais insuportável do que julgas ser. E não é elogio.” Não perdia o sono. Acordava sobressaltado, contudo, pois os outros confirmavam-no como pária. De resto, não movia um dedo para mudar o estatuto. Estava sitiado num complexo paradoxo: ser parente pobre da humanidade incomodava-o e, ao mesmo tempo, garantia-lhe razão no diagnóstico de si mesmo.
Vítima da má têmpera e de uma teimosia contumaz, prolongou-se enquanto os demais, da sua roda de conhecidos, iam perecendo. Foi quando ficou sozinho, velho e iracundo, que tomou nota do arrependimento: porventura a existência teria sido diferente, mais ligeira e suportável, se houvesse desalfandegado o bicho do mato em que se tornara. Agora, e pela primeira vez, a solidão era excruciante.

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