30.6.14

O homem do mar

Heróis do Mar, "Brava Dança dos Heróis", in https://www.youtube.com/watch?v=L3usgFY8sSA
O mar como chamamento. Não importa como estejam compostas as águas. Não importa se faz tempestade, ou se veio o tempo amainado. O espelho de água que se perde no horizonte é o prolongamento da terra, o espaço natural por onde os pés deviam caminhar. E caminham.
Os olhos não se perdem na finitude do chão onde repousam os pés. Dirigem-se para a profundidade do mar por diante, perdem-se na vastidão que é o mar – pelo menos ao que o olhar alcança. Por isso, um chamamento. Pois aos olhos convoca-se a imaginação. Eles navegam nas águas mansas, ou são aventureiros em imaginadas embarcações e não se atemorizam com o mar encapelado que arqueja da tempestade. Deitam-se ao mar, os olhos. E depois fecham-se sobre as suas pálpebras. Para fazerem voar o corpo que é seu numa rasante às ondas que se encavalitam na espessura do mar indomável. Pois esses olhos querem ser tutores de um pensamento indomável. Como o mar, que é seu chamamento. Sulcam as águas sem rumo alinhavado. A errância é o que os espera. E nem assim se atemorizam.
Podiam a letargia dos dias e as impenitentes convenções estabelecidas ciciar que tamanha empreitada é arriscada, que pode estar fadada à desgraça. Nem assim se demovem os olhos afortunados. Vão no engodo das correntes marítimas. Esboçam coreografias ousadas enquanto cavalgam a fúria das ondas que se enquistam, medonhas, no meio do mar alto enquanto os ventos do furacão sibilam. Nem assim se demovem. Nem quando a tempestade agiganta o mar e ele se transfigura num Adamastor enfurecido que ameaça tudo terminar. Os olhos, navegantes amadores, sabem que as ondas enraivecidas não duram para sempre. Sabem que o chamamento do mar não é espúrio. Persistem. Desafiam os sótãos de onde assomam fictícios abutres na demanda pela catástrofe. Mas não há catástrofe. Porque tudo é harmonia no mar. O homem, que é do mar, sabe-o melhor do que ninguém. Por isso se entronizou embaixador do mar. E fala por ele. Guardando os segredos que importa esconder. E deixando à mostra os segredos que não comprometem o sortilégio do mar.
O homem do mar é, na sua pequena estatura, a imagem da imensidão do mar.

27.6.14

Do oito e do oitenta

In http://sobreavidadotcom.files.wordpress.com/2011/09/fosforo-feliz.jpg
Dantes, em véspera de transmissões televisivas de importantes jogos de futebol, passavam anúncios de medicamentos para tratar a impotência masculina. Agora, passam anúncios para sarar a ejaculação precoce. Dantes, era um homem ainda jovem que se cobria de vergonha por não conseguir satisfazer quem com ele dividia lençóis. Agora são dois fósforos que se entrelaçam, havendo um deles (o fósforo masculino) que esgota o pavio antes do tempo.
(É enternecedora a propensão dos publicitários de serviço para as metáforas sugestivas.)
Dir-se-ia que não há novidade. Primeiro, está provado que o público-alvo desta publicidade que se mete nos prolegómenos e nos intervalos (do futebol na televisão, bem entendido) são varões. Segundo, fica provado que a homenzarrada, sobretudo aquela que ainda não entrou em andropausa, se incomoda com os distúrbios das hormonas (que ora podem estar adormecidas, ora podem escorregar para tamanho estado febril que deitam tudo a perder). Terceiro, a mudança de registo publicitário pode ser o selo de uma causalidade. Que é como quem diz: se dantes muitos marialvas tinham problemas no aquecimento e se retiravam do tabuleiro antes da função começar, agora, fruto da medicação, mal o jogo começou e já eles estão fora de jogo, para infortúnio das/dos parceiras/parceiros (que aqui não se pratica, no discurso, a desigualdade de preferências sexuais).
Esta publicidade é só virtudes. Ninguém protesta. Os varões não protestam, porque medicamentados como deve ser tratam os seus problemas existenciais por insuficiente desempenho. Não protestam também as/os companheiras/companheiros que, podendo não ser admiradores do desporto em cujas transmissões televisivas se intercalam os ditos anúncios, tiram partido do progresso no desempenho dos consortes. Nem mesmo as feministas exaltadas podem vociferar, atirando os dardos da desigualdade em que tanto medram (a menos que sejam frígidas).
A persistência na publicidade aos medicamentos que curam maleitas sexuais masculinas é, por outro lado, sintoma de que muitos haverá consumidos pelas ditas. Sejam elas por defeito ou por excesso. É caso para rematar (ou não estivesse a publicidade a mover-se no contexto do futebol): não tem ponta por onde se pegue.

26.6.14

A planície de cinzas

Sigur Rós, "Untitled #1 (Vaka)", in https://www.youtube.com/watch?v=P0AZIFmkogY
Lunar, a paisagem embebia-se de uma beleza singular. Os padrões convencionais diriam daquele lugar coisas medonhas. Mas os olhos diferentes vêm coisas diferentes – ou não fosse a singular diversidade o código genético da espécie.
Era como se tivesse aterrado na cratera de um vulcão, a cratera já não na sua forma cónica. Talvez porque em tempos houvera uma explosão do vulcão que desfez o seu perfil afiado a uma planície onde todos os nutrientes medravam na cama de cinzas. A paisagem negra parecia retirada de um filme de ficção científica. Só faltava o céu perenemente escurecido. O equinócio estival fora há um par de dias. Não admirava que a luz do dia atravessasse o dia fora, quase não havendo crepúsculo. Já era quase meia noite quando chegou à planície de cinzas e continuava a ser dia, como se fosse quase o entardecer a que estava habituado. O cenário duplicava a excentricidade – a singularidade da paisagem e a luz diurna teimosamente cindindo a noção das horas que vinha do relógio.
As cinzas eram o solo debaixo dos pés. Não sujavam o calçado. Era uma poeira fina que se rarefazia quando as mãos traziam do chão um naco de cinzas. Pelos preceitos escolares, aquela paisagem lunar era epítome de infecundidade. Os olhos desmentiam o lugar-comum da ciência de bolso: os arbustos coloridos medravam, havia árvores de pequeno porte de onde desabrochavam flores brancas; ao longe, o ruído de um fio de água crescia à medida que a distância se diluía. A suavidade da paisagem negra refletia-se no pequeno lago onde desaguava o regato que parecia dimanar das entranhas da terra. O silêncio era rompido pelo chilrear dos pássaros que poisavam na copa das árvores em vésperas do sono que viria ausente de penumbra.
Naquele lugar vulcânico descobriu que as convenções que sedimentam o pensamento podem ser desafiadas quando se esbarra na originalidade. A riqueza dos lugares é a sua diversidade, as cores diferentes, os odores que sobem da terra, a flora que mapeia as diferentes latitudes, as pessoas que são da mesma genética e, todavia, tão díspares de lugar para lugar. E aprendemos. Aprendemos que as cinzas não sinalizam ausência nem retratam a inerte vida dos lugares onde elas são paisagem. Contradizendo os cânones, as cinzas são um émulo da existência. Caucionam a renovação da vida. São o nutriente que devolve a vida a um lugar que se julgava morto.

25.6.14

Não se escarnece da bandeira

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgMOrS0m3fz50-b51YK5YgjdWle5KkGeA-02Ze3Mzq7CER1O_6xAreHrlPa72yE06NniTXOU-5TBLLDdCMdl_3cs06BhTnOa_fjGpUZyzE0HBC3bbjJJXD3qsEqe1a8TOXjj7Su/s1600/Bandeira+Alto+Comissariado+Português.png
Um artista plástico criou uma obra de arte que troçava da bandeira nacional. Um qualquer zelador dos bons costumes pátrios estava de atalaia e o artista não demorou a ser levado a tribunal. Há leis que mandam punir quem escarnecer da bandeira nacional. Porque – como somos ensinados desde os bancos da escola, na habitual lição de cinzentismo que nos quebranta – “não se brinca com coisa sérias”.
Há a mania instalada de divinizar coisas e pessoas. Atingido o estatuto divino, ai de quem troçar ou criticar as coisas ou as pessoas que nele foram entronizadas. Nas escolas ainda se ensina às criancinhas que tivemos um passado glorioso, que demos a conhecer ao mundo novos mundos e fomos donos de metade do mundo. Não se recomenda que venha uma amnésia estalinista a faça esquecer as proezas dos longínquos antepassados. O que está errado é a esquizofrenia temporal: as criancinhas serem convocadas na sua tenra idade a terem saudades dos tempos em que houve uma gesta que lavrou o orgulho imemorial. Quando as crianças deixam de o ser, as dores de crescimento passam-se ao contrário: uma ambição, transitada da história que conta um conto de fadas sem representação no tempo presente, que mede mais do que o corpo que temos.
Não sei se também é ensinado às criancinhas que a bandeira nacional não pode ser beliscada, sob pena de desrespeito à nação que foi berço. Tendo ministros e secretários de Estado que usam à lapela uma bandeira nacional, em saloia exibição de patriotismo, não admira que o fervor patrioteiro seja transmitido nas escolas. Mas há um sinal de pequenez que nos deixa sequestrados: sermos tementes dos preceitos absolutos, vedado o desassombro de escarnecermos de nós mesmos, das fragilidades que nos consomem.
Que mal tem um artista recriar a bandeira nacional como obra de arte? Atinge o epicentro do orgulho pátrio e a nação fica desvalorizada pelo ato criativo? Os zeladores dos nobres valores pátrios que estão de atalaia ao menor atropelo à bandeira não percebem que o atropelo maior é restringir a liberdade de criação artística? Deixai a bandeira ser recriada, nem que seja para provocar reações emocionais dos que se apegam à sua absoluta condição. Nem que seja para ser processado, já que os tribunais não devem ter tanto trabalho como consta.

24.6.14

Landed dreams

Trentemoller, "The Dream" (feat. Low), in https://www.youtube.com/watch?v=luLMlUb2ZZ4
Pega nas mãos e atira-as à água. Sente como a água está fria – e como te afaga as mãos e inaugura os olhos para o dia claro. Revista todas as latitudes do céu. Descobre a luz cintilante que se decanta através das nuvens finas. Abraça-te. Sente o teu corpo, o tumulto que dele se apoderou e o fez mais alto que todos os outros corpos juntos.
Agora: mete as mãos na terra húmida. Na terra que um aguaceiro de verão cuidou de humedecer, enquanto te aproprias do odor extasiante que vem da terra molhada. Vê as tuas mãos saírem da terra, docemente encardidas pelo elemento maior, granuladas pela terra molhada. Não reprimas a luz circundante. Rejeita os olhos que parecem querer declinar os nutrientes férteis que da luz irradiam. Pois sabes que os olhos cerrados sobre as suas pálpebras alojam os sonhos que de sonhos não cuidam de passar. Abres os olhos: um gesto singelo, ao mesmo tempo uma aventura sem precedentes. Removes os sonhos do seu pedestal. Devolve-os à terra húmida que as tuas mãos acabaram de congraçar. E sabes que os sonhos desceram ao lugar onde todas as coisas são fungíveis, onde a matéria é sensível, o lugar onde os sonhos não têm préstimo por locupletarem o tempo tão raro.
Os olhos que descem do céu, alimentados pela luz clara, e as mãos encardidas pela terra humedecida, são a combustão necessária para o segredo a que não podes negar o rosto. Os sonhos desceram à terra. Ou foste tu que chegaste aos sonhos, pouco interessa a distinção. No céu galanteador as nuvens encenam uma coreografia para se porem a jeito de uma subliminar mensagem – uma mensagem que só tu consegues reter: “os sonhos já não o são”. O sortilégio da perseverança trouxe-te ao cais mareado onde as pedras de musgo enfeitam os dias, todos os dias vindouros, com um feixe de luz sumptuosa.
Os sonhos – sabe-lo com garantia – tiveram aterragem segura. Desfizeram-se da indumentária onírica e constituíram-se matéria sensível.

23.6.14

Uma estocada

The Orwells, "The Righteous One" (Live on Letterman show), in https://www.youtube.com/watch?v=prlVtauCl2w
Sentia que uma espada do tamanho do mundo fora desembainhada. Que a lâmina apurada andava em sua demanda. Pretendia não saber quem eram os algozes. Jurava inocência, que não fora engenheiro de maldades ou injustiças sobre outros, como ele se julgava, inocentes. Fugia da espada como podia. Escondendo-se nas vielas escuras, descendo aos subterrâneos que escondiam a fuligem do metro, transitando pelo bas fond da cidade, convivendo com o restolho da sociedade que por ali andava.
O pior não era essa espada ladina que o procurava sem cessar. Dizia-se que estes justiceiros não tinham complacência. Mal encontrassem o procurado, despejavam com força a espada, sangrando-o até à morte. Mas não era essa espada que fazia sobressaltar o sono. Era assaltado por fantasmagóricas espadas no quotidiano, nas gentes apoderadas que não tinham piedade de quem cuidavam estragar; nos endinheirados que (dizia-se à boca pequena) conspiravam para serem mais ricos e deixarem em legado mais pobreza aos que já nem remediados conseguiam ser; aos sacerdotes que ludibriavam as gentes de alma estragada com fés redentoras; aos diligentes na maldade gratuita.
Não era vítima direta dessas malfeitorias, mas elas adulteravam o seu sentido de ser. Era como se as espadas assim desembainhadas sobre os outros tivessem estocada colateral em si. Delas não podia fugir. Não podia arregimentar a hipocrisia que encomendasse os olhos para lugares distantes, simulando a ausência das dores da modernidade. Era quando queria outro tempo, não interessava se anterior ou projetado na posteridade. Outro tempo. Podia ser que nessa dimensão temporal paralela não houvesse tantas espadas decepando ilusões, tantas estocadas a derramarem sangue vertido sem utilidade. Suplicava aos deuses, em preces retóricas, que semeasse esse tempo diferente. Que inventassem uma nave espacial que o transportasse ao tempo diferente de que se julgava residente. Para não ser ultrajado pelo bolçar das espadas severas que esvoaçam, erráticas, apanhando quem estiver pelo caminho, sem critério.
A não ser possível um tempo alternativo, talvez não fosse mal pensada a estocada final. Ao menos, os olhos adormecidos não seriam o cais por onde assolam tantas iniquidades que coalham o mundo na sua terrível imperfeição.

20.6.14

Vinho a martelo

In http://pad1.whstatic.com/images/thumb/c/cf/Open-a-Bottle-of-Wine-Step-10.jpg/670px-Open-a-Bottle-of-Wine-Step-10.jpg
A aparência: material todo pimpão. Exterior janota. O passa-a-palavra mandando dizer que é só pergaminhos – e, quando há pergaminhos, a casta une-se para atestar o que se reclama ter tais pergaminhos.
Todavia, os conhecedores depressa descobrem o logro. O material não é pimpão, a não ser no passa-a-palavra que arregimenta as raízes da solidariedade de casta (logo, corporativa) sem sequer certificar os predicados do produto. A páginas tantas, tentam, os da casta, apoucar os conhecedores que porfiaram tão desagradável juízo. É selo da casta: quando um protegido é vítima de acosso, nem que o acosso não o seja e, em vez disso, haja uma legítima reprovação do que faz ou do que diz, ataca-se o mensageiro que vocifera o desaplauso. Os ataques pessoais atiram o mensageiro às cordas, a sua reputação em escombros mercê do bombardeamento da casta.
Os zeladores do vinho a martelo são um caso patológico. São uns arrivistas. Pretendem imitar um modelo de que não há, nestes tempos de dificuldades democratizadas, personificação. Já o houve, outrora. Ou porque foram cedendo o passo à morte à medida do tempo que passava, ou porque os pergaminhos foram consumidos pela decadência de réditos e de património, os exemplos foram sendo abatidos ao ativo. Continuam a ser exemplos para os arrivistas, os que bolçam vinho a martelo, apesar de já não contarem para este rosário. Todavia, os arrivistas querem ser o que hoje já não há. Querem – e conseguem – ser vinho a martelo. São um estranho caso patológico: imitam o vazio, ou são émulos deles próprios, num ensarilhado narcísico que merecia tratamento por especialistas do foro.
Estes farsantes são um compêndio de encenações. Fazem muito de conta. Do que não são, do que não têm, do que não sabem ser, do que não sabem dizer, de uma linhagem apenas imaginada. São a personificação do vinho a martelo. Por fora, tanta a luminescência, ninguém diria que são um logro. São, nos tempos de agora, os principais culpados pela glorificação do papel de embrulho cheio de néon que atrai os holofotes, sem que por dentro haja grande serventia.

19.6.14

Afinal, a ministra das finanças não é uma cabra

In https://www.youtube.com/watch?v=v535cv-n0sY
O maldito triângulo das Bermudas que nos atira areia para os olhos: políticos, jornalistas (a soldo, ou sem perceberem que estão nessa condição) e cidadãos eleitores. A intermediar a relação, a ênfase na imagem. Tudo é imagem. Tudo se reconduz à imagem. Para que os destinatários da comunicação se distraiam com o acessório e não tomem atenção no essencial. Nada mais para além da imagem.
Vamos lá outra vez a uma tão bem montada encenação. A ministra das finanças como atriz principal. Alguém se lembrou de compor a imagem da senhora. Afinal, ela não é uma personagem ingrata, a maquiavélica fautora de uma política de sacrifícios (a que muitos apelidam de empobrecimento), uma cabra insensível às dificuldades que semeou no caminho de tanta gente, um testa-de-ferro da Alemanha mandante. Lá no fundo, a senhora ministra tem um bom fundo. Contratou-se uma agência de comunicação, convidaram-se os jornalistas para a encenação, e nós, os cidadãos que decidimos através do voto, também fomos convidados ao embevecimento. A ministra das finanças foi de visita a um refúgio de crianças órfãs. Vimo-la no tocante gesto de pegar ao colo em crianças que não têm pais, ou cujos pais são tão sacripantas que elas foram entregues à proteção do refúgio. A ministra ri, nota-se-lhe emoção. A ministra das finanças não tem um coração empedernido. Escorria afeto ao falar com as crianças desvalidas. Supunha-se que ficássemos comovidos.
Ninguém perguntou: o que fazia a ministra das finanças na coutada de um colega seu (o refúgio de crianças órfãs não é área tutelada pela pasta das finanças)? Era uma visita privada da ministra das finanças, que ali despia a fatiota da sinecura e se despia como cidadã interessada pelo bem-estar de crianças que já passaram pelas piores privações? Se a visita era privada, que não cuidasse de aparecer nas televisões. Às vezes, um ato piora o diagnóstico. A ministra pode ter coração, como se diz que todos temos. Não era preciso mostrá-lo. Nestas condições, é um exibicionismo descabido.
Um dia depois, uma notícia ajudou a compreender a operação de relações públicas que pretendeu mostrar que a ministra das finanças, afinal, não é uma cabra insensível: ela veio dizer que a disciplina orçamental vai durar. Quem pensava em alívios, que se desengane. O carinho da ministra das finanças é apenas para as crianças órfãs. Essas, que ainda não votam.

18.6.14

O incendiário era um vulto

In http://www.varbak.com/galeri/o-homem-que-cospe-fogo-fotos-fogo-fotos--nb16729.jpg
Conspirava. Era o seu bálsamo. O seu habitat natural. Congeminava as profanações piores que a imaginação podia tecer só para atrapalhar quem fosse colocado no radar de vítimas. Não tinha complacência. Às vezes, quando umas ligeiras dores de consciência o aquietavam, perguntava pelos seus pergaminhos, que os não julgava condizentes com a bondade que tantos querem como mantimento da espécie. Ato contínuo, embebia-se da mesma frieza de espírito que o tornava maestro da malícia cometida sobre o próximo ou o não tão próximo.
Não dava o rosto nas congeminações maléficas. Escondia-se no anonimato. Manobrava entre as sombras, para que ninguém o visse a torpedear o sossego de quem surgisse pela frente. Não importava que as vítimas fossem escolhidas a dedo ou fossem inocentes apanhados no meio do fogo perdido de uma peleja que lhes não dizia respeito. Queria-se sossegar: lá fora, onde a selva é desabrida, não há inocentes. Todos somos culpados de alguma coisa. Imberbes os que julgam a bondade dos homens, que a bondade é do domínio da ficção; líricos os que se dão à inércia, dizendo que à maldade de uns não se deve responder com a maldade dos outros, ou um dia ardemos enredados na nossa coletiva loucura.
A hipocrisia não o fazia corar de vergonha. Ao contrário: era uma arte sublime, só praticável pelos que se amestraram nas táticas castrenses próximas da arte da guerra. No limite – julgava o incendiário sem remissão – estamos todos em estado de guerra. Mesmo que não usemos armas de fogo. Podemos apenas atear fogos. Fogos de diversa igualha. Uns, pequenos, só para atordoar adversários, ou para marcar posição e não sermos incomodados. Outros, devastadores, para destruir quem for um embaraço. Usando máscara para não ser reconhecido, pois o disfarce é garantia para continuar a vingar no meio. Ou passando entre os pingos da chuva, ou como só aos vultos é dado a alcançar quando não afrouxam na ardilosa tarefa de passarem sem serem vistos entre duas penumbras.

17.6.14

Avenida do Chile

The Clash, "Rock the Casbah", in https://www.youtube.com/watch?v=bJ9r8LMU9bQ
Entardecia. Mas os olhos continuavam estremunhados. Parecia uma estranha letargia. Como se uma inoportuna insónia tivesse penhorado o sono e a noite inteira fosse ao relento. O corpo estava açambarcado pelo torpor. Talvez fosse do calor. Entardecia, mas devido ao equinócio do verão o sol ainda estava alto, tisnando o que sobrava da lucidez.
Os olhos fizeram uma rasante ao solo, onde o asfalto parecia derreter em contacto com a canícula depositada pelo sol ainda a pino. Não sabia se era do tempo tão desamigado ou se o olhar estava mesmo estremunhado, mas a certa altura pareceu esbarrar em alucinações. Parecia o deserto, onde as temperaturas sobre-humanas destravam cenários kafkianos. Mas não estava no deserto. Era a avenida do Chile, um zénite da grande cidade. E se não eram as alucinações a embotar o olhar, havia imagens que passavam céleres pelos olhos, tirando o freio às perplexidades que se misturavam com o suor que escorria pelo rosto.
Diria ver uma varina com trajes minhotos, o típico arsenal de ouro ao pescoço, a vender tabaco contrabandeado. Um pedinte a ler poemas de Ezra Pound num inglês fluente com sotaque nortenho, perante a indiferença de quem passava. À porta da escadaria que mergulhava nas profundezas do metro, uma cigana distribuía folhetos de um partido de extrema-esquerda. Ao longe, pareceu ver uma estátua dos dois ditadores chilenos (talvez por sugestão do lugar onde estava). Mas logo a seguir desenganou-se: no jardim, repleto de nenúfares sem lago para repousarem, uma traineira aveirense prestava homenagem ao fértil mar do norte onde muitas famílias encontraram proventos enquanto se entregavam aos rigores do clima. Um rabino vestido a preceito trazia auriculares, o que era razão de sobra para o pasmo. Sentou-se ao seu lado enquanto esperavam pelo metro que vinha a seguir (“três minutos”, anunciava o painel informativo que descansa a impaciência dos utentes). Conseguiu escutar o rabino a ouvir os Clash a tocarem “Rock the Casbah”. Três ganapos desordeiros aterraram na estação, originando o desassossego dos restantes, temendo que fossem assaltantes. Quando viram o rabino e perceberam que ouvia música rock, os ganapos meteram animada conversa.
No fim do dia, tinham sido convertidos ao judaísmo. E o rabino aprendera a ouvir Kendrick Lamar.

16.6.14

Só os amantes sobrevivem

Darkside, "Metraton", in https://www.youtube.com/watch?v=VFfKPZhY16Q
Um lampejo clarividente, uma centelha acendida por mão divina (fazendo crer, pela oportunidade que se revela, na mão divina). Coalhando todos os despojos que restam inanimados no chão, sem serventia que não seja a de folhear o perjúrio do passado.
A centelha alumia o caminho que, de tão escuro, só podia ser notado pelo tacto. É como se ao chegar ao fundo do quarto a escuridão fosse finita, mercê de uma janela descarapuçada por onde entram os raios de um sol que estava sitiado para além do hermético quarto. O pensamento elabora as perguntas que outrora não tinham resposta ou tinham resposta benemérita, apenas para caldear o olhar com a poeira que disfarçava o que olhar não queria atestar. As perguntas que esbarram contra a saciedade do pensamento: o que mais importa? O que faz da existência um lugar recomendável? Que guitarras se perfumam com uma melodia cristalina, fugindo da verve untuosa que é um embuste por onde tantos fazem de conta do que almejam ser (e não conseguem)?
Os amantes encerram as respostas às perguntas todas. São os deuses mais altos da humanidade. Mandam nos sentimentos que contam. Têm o desassombro do pulsar genuíno, sem esconderem o rosto, sem negarem as palavras que interessam, recusando as arestas vivas que podem deixar cicatrizes. Pois os amantes sabem que só eles contam para o tempo vindouro. Só eles sobrevivem entre os escombros. Só os amantes sobrevivem às tempestades que povoam pânico. Só os amantes decantam as densidades certas do que tem valimento, rejeitando os apóstolos do infortúnio, destinando à indiferença os que teimam em morder os cachimbos da paz. 
Os amantes sobrevivem. Só eles. Os outros dizem que vivem. Pode ser que sim. Dentro de um labirinto que é a morte para os sentidos que importam. Fazem de conta que sobrevivem. Embaciados pela ilusão, atiram-se para os braços das demoníacas entidades que neles propagam as doenças maléficas de que depois são agentes contagiadores.
Do seu púlpito, os amantes que sobrevivem oferecem toda a indiferença.

13.6.14

O povo gosta de justiceiros

In http://ieadjo.com/sites/default/files/styles/node/public/images/articles/blog33.jpg?itok=e0vPE5LD
Ao almoço, enquanto espero pelo repasto, entra pelos olhos um daquelas programas de entretenimento que são o anticlímax do aperitivo para o prândio. Já não chegasse o género, e não podendo mudar de lugar pois não conseguia dar as costas à televisão, piora o cenário com a entrada em cena de um “especialista em crime”, um reciclado do jornalismo que dispara a eito sobre os criminosos que, na sua douta opinião, deviam merecer o pior varapau da justiça.
O som da televisão está – ó azar – audível. Acompanho o raciocínio do justiceiro. O povo que faz as vezes de audiência, talvez uma amostra da populaça, aplaude de cada vez que o justiceiro se sobressalta e remata a frase com uma assertiva certeza acerca da falaz justiça dos tribunais. Acena com a cabeça quando o justiceiro verbera a fraca justiça. Pelo meio, o justiceiro escorrega para insinuações que deixam à mostra rudimentos de uma teoria da conspiração: ele são os lobbies obscuros que mantêm a justiça sequestrada, talvez porque os juízes não são imparciais e até militam, em segredo, nessas câmaras escuras de obscuros interesses. O género trauliteiro tem seguidores e faz escola. Um dos expoentes foi há dias eleito para o Parlamento Europeu. O populismo barato vinga no seu rasteiro esplendor.
Continuo a seguir o raciocínio do justiceiro e vou tecendo pontes com a retórica justiceira do novato eurodeputado. O raciocínio é ardiloso. A lógica argumentativa é canhestra, mas insidiosamente canhestra para que o povo, apesar dos parcos recursos hermenêuticos, não sentir que as poses sedutoras não passam de cavalgaduras manipuladoras. O género do justiceiro descontente com o estado a que chegamos, dos que puxam lustro aos “valores” que já não há (uma tremenda perda para a civilização, agora destronada pelo reino da incivilidade), é um apelo às emoções. De lágrima fácil quando um facínora se transforma em hábil vendedor de castelos no ar, o povoléu nem dá conta de que como é enganado (ou dá conta, mas gosta de ser ludibriado). E subscreve: oxalá os mandantes fossem da têmpera dos justiceiros e os males quase todos estavam a caminho da extinção.
Um dia destes, o Marinho é presidente e o Hernâni chega a ministro. Não há melhor retrato da democracia como representação da vontade popular: mandantes à imagem do povo.

12.6.14

Um enxame de tias

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjqGCqB8krnvCynl1P2zbdMujsxKj9bdCq9WUuEvpOfKzplhxypncpDauKujTebQQbuVM30mo0K1WBHsk7okCjaN9OWhwNzNb32FO9637IcW9WV3dh5uBG5pBRZijXOYIwr4QI7/s1600/bolsa+chanel.jpg
(Não é marialvismo inconsequente. Nem discriminação de género. Nem comunismo primário.)
As tias deixaram os canapés e o tricot. Aproveitando-se da emancipação feminina e, de caminho, abraçando a causa feminista, as tias já não são apenas coquetes, prendadas e destinadas a cuidar da casa, da prole e dos assuntos familiares. Saíram dos castelos confortáveis e vieram à luta, imersas na selva que outrora foi só dos varões e, se delas também era a selva, apenas um quinhão pertencia às mulheres de pelo na venta e sem pergaminhos “sociais”.
Agora as tias governam, deputam, fazem política autárquica, opinam em rivalidade com os opinadores de estalão – para além de darem festas aos que possuem pedigree; e para além de ostentarem a maquilhagem abundante e a fatiota dispendiosa e de beberricarem o chá das cinco através de chávenas inglesas de fino porte e de destilarem a pesporrência de casta com que se passeiam, por breves instantes (que a mistura com a maralha pode provocar urticária), na rua.
Agora vão para o governo com tailleurs impecáveis, montada cabeleira loira com que não nasceram, carteira que custou os olhos da cara a tiracolo, pronúncia de Cascais e pose superior que é inata e vai aos píncaros por terem deitado mão ao poder. Vão para o parlamento ostentar empinado nariz, arrotando enormidades que postulam o chicote político sobre os juízes dos tribunais quando estes são incómodos para o poder vigente. São satélites do neófito autarca, ele também das melhores famílias, nem que tenham, em silêncio, de engolir talos de contraplacado por o neófito e independente autarca ter feito uma aliança com os bastardos do regime. Todas por junto, quando abrem a boca, disparatam. São próceres da sua própria inanidade.
Por isso digo que as tias deviam ser devolvidas ao recato do chá das cinco, onde as tias todas convivem e fazem converseta sobre os triviais assuntos de sempre. Deviam cuidar da família e da prole, não vão os consortes estranhar o ativismo que esbarra nos cânones e as subtrai de casa e dos afazeres sociais. As tias não deviam arregaçar as mangas e invocar uma intelectualidade que lhes é ausente. Ao abrirem a boca, sai disparate – que guardem a boca aberta para outras funções. A troça que vem depois não quadra com os pergaminhos impecáveis da casta. A máscara da casta fica reduzida a frangalhos quando as tias sobem ao palco para que não foram feitas.

11.6.14

O Novo do Restelo

In http://blog.thefoundationstone.org/wp-content/uploads/2011/03/31dec09-looking_forward.jpg
A varanda da casa dá para as águas lustrosas do Tejo. O porvir também é uma incógnita, hoje como outrora. Mas o Novo do Restelo, desempoeirado, cultor de um otimismo ímpar, acorda todas as manhãs com a certeza que os dias por diante virão tingidos de cores garridas e as pessoas andarão jubiles pelas proezas que, em conjunto, nesta era irão legar ao conhecimento. Por isso, o Novo do Restelo escolheu uma casa perfeita, sem escaras, sem esquinas rançosas que obliterem o futuro.
O Novo do Restelo tem inimigos de estimação: os vizinhos mais velhos, de rosto sorumbático, braços caídos e andrajos que acamam nos seus corpos entorpecidos. Boicota-lhes o desânimo. Condena as vociferações contra a possibilidade de um tempo desconhecido ser coutada de um tempo melhor. Arremete contra o conservadorismo empedernido, o horror à mudança por temor dos enigmas que se amigam com a mudança sem plano. Abomina os Velhos do Restelo, nem que a empreitada seja (nestes tempos de gigantes dificuldades) homérica, à mercê da desigualdade de números: os Velhos do Restelo são uma fértil reprodução dos tempos árduos. Os Novos do Restelo estão – dizem os Velhos do Restelo, em profecia que pretendem sagração de um oráculo – em extinção.
Erro o deles. O Novo do Restelo não quer saber dos outros como ele. Persiste na empreitada que muitos, alguns como ele, julgam condenada à derrota. Não capitula. Não desiste dos ideais. Desdobra-se. Na articulação de argumentos convincentes, o que, olhando aos tempos íngremes, é obstáculo de importe. E na consumição de forças no combate desigual com os Velhos do Restelo que nascem todos os dias. Nem assim o Novo do Restelo se refugia na aparente impossibilidade das causas. Pois só o otimismo consagra a salvação da espécie, que, de outro modo, sucumbirá à sua própria autofagia.
Não o faz como tábua de salvação, nem como oportunismo para resgatar a espécie à sua autofagia. Está convencido que é a genuína solução para arrematar os tempos difíceis que são uma teimosia. Pois enquanto houver Velhos do Restelo a proclamar a resignação, a ditar para os autos o fim de tudo perante as dificuldades imensas, a negatividade ameaça contagiar-se aos tempos vindouros. E como do refluxo das vontades raramente se esboça obra que tenha valimento, o Novo do Restelo sente-se cada vez mais novo.

10.6.14

“Olhem para mim, como sou um desgraçado”

In http://31.media.tumblr.com/tumblr_mcl02vsZYE1ro2gqjo1_500.gif
Mortificações interiores traduzidas em pauta musical. Musicando histórias pungentes de um autor que canta as suas angústias, que confessa à audiência viver aprisionado pelos fantasmas de que não se consegue libertar. A páginas tantas, o cantor revolve-se sobre o dorso arqueado e vocifera, como se estivesse precisado de exorcizar os diabos que se apoderaram dele, que é a pior pessoa à face do planeta e que não devemos ter comiseração dele, que a maldade é tanta que se não compadece com comiseração alguma.
A audiência exulta, parte dela (adivinho) sem perceber duas palavras seguidas dos queixumes que mortificam o cantor. A outra metade que exulta, airada pela compreensão da língua estrangeira, mostra uma compassiva tolerância. Assim como assim, o grupo faz música que inebria as massas e o concerto – dizem – é de uma entrega singular e de uma partilha com o público que deixa vir ao de cima a cumplicidade entre todos. O público anónimo, mal convivendo com o anonimato, compraz-se ao ser instrumentalizado. Berra, emocionado, com as convulsões do cantor, excita-se quando o cantor decide saltar do palco e celebrar a intimidade (já em grau superior à anterior cumplicidade) com o público. Parece que o cantor queria que o público lhe enxugasse as lágrimas, ou que lhe passasse um afago pelo cabelo para ele não se condoer tanto. Faltava a derradeira prova dos nove: se o cantor levasse até ao fim o estado depressivo e cortasse os pulsos, muitos seguidores o fariam acriticamente.
Foi um concerto em forma de terapia. Para o cantor que exibia a sua desgraçada condição, como se o concerto fosse o rebentar de uma borbulha purulenta e a música acompanhada pelos prantos o pus em levitação. E terapia para parte da audiência que deve frequentar divãs de psiquiatras. No final, até os plumitivos foram unânimes na genuflexão. Somos, muitos, propensos à indulgência com os coitadinhos – e muitos, sê-lo-ão também, coitadinhos em pessoa. O cantor, cuidadosamente negligente na pose, como soe ser nestes casos de interiores padecimentos, recebeu o aplauso quase unânime.
Haja paciência. Quanto mais não seja, ó aduladores da performance artística (chamemos-lhe assim), para quem não aplaudiu e lhe incomoda o género do desgraçado que arrasta em público as interiores mortificações.

9.6.14

A cabeça de Marx servida ao almoço

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi9Vi4ULljs5kv5fRDwMI7UY0n769aGNXyDkklgSGsplpBArZt_tgfaa4K0lRjolV5NjfZoh8DnYsZ615kuxpA2h_rHDY9hOfd1jzQFecb37q3gQ25Pq0jSPA9fFTnLV3FwJIfy/s400/Karl+Marx.jpg+vermelho.jpg
A luta de classes, ai, a luta de classes. Os malvados capitalistas que, se pudessem, se alimentavam de operários frágeis, num obsceno festim com meretrizes à mistura. Se eles pudessem, deixavam a escravidão como único destino dos operários. Não os deixavam instruir-se. Não deixavam que os letrados insubmissos fossem para a universidade e estudassem Marx, pois são eles que incomodam a ordem vigente e a harmonia que os malvados capitalistas sonham obter.
À míngua. Era o que os capitalistas sem piedade queriam como condição inata dos operários. Todos somos operários, para tal bastando que não sejamos detentores do capital. Operários, todos: desde os que não têm instrução, até aos que a têm em dose excessiva. E como alguns iluminados continuam fiéis à ingénua crença da repetição da história, que este seja o momento de ruptura. Pois se tanto recuamos nas conquistas sociais, se há governos farsantes que mais parecem testas-de-ferro dos nefandos capitalistas, resgatemos Marx das empoeiradas estantes, que venha a sua doutrina embelezar as ruas de protesto. Como mnemónica, ponhamos um busto de Marx à mesinha de cabeceira, deixemos de lado a bíblia que fermenta o ópio dos desvalidos e os desaconselha da ação violenta, substituída a bíblia pela nova bíblia que nunca teve tanta atualidade: o “Capital”, de Marx (e Engels). Os passe-partout com iconografia familiar, um bastião do individualismo disfarçado, devem ser arquivados para darem lugar a quadros e bustos de Marx. Para Marx não sair da memória, agora que ele é tão urgente na mudança de que o povo unido deve ser arquiteto.
Os repastos, também na companhia de um busto de Marx. Enquanto os amesendados saciam a fome, que congeminem a revolta em ebulição. Que não meçam a ação pelos pruridos da não violência, que os mandantes em parceria com os capitalistas praticam sobre a imensa e silenciosa maioria a pior das violências, uma soez e também silenciosa violência que promete mais pobreza. Pois imersos na pobreza serão vulneráveis, um fogo fátuo que se incinera na ganância dos ricos, dos muito ricos que querem ainda mais abastança nem que ela signifique o sacrifício de tanta gente a uma pobreza ignóbil.
Marx é a reincarnação de Cristo. Que os operários de todas as condições não caiam no engodo da retórica ao serviço dos interesses dominantes: Marx não é, de maneira alguma, uma representação totalitária. Não se deixem enganar quando vos dizem que os imperativos da revolução e o decaimento dos interesses de cada um são a absorção da vontade individual. A menos que queriam deixar a vontade individual sobrepor-se ao destino de um povo inteiro que, a cada dia que passa, não se insubordina e fica à mercê de gente sem escrúpulos. Essa sim, concordaria Marx, é a maior das aleivosias.
Por isso convençam-se: a história é como as marés, vai e vem e, quando volta, traz-nos a mesma água; e Marx devia ser beatificado.

6.6.14

Ir a jogo

In http://roleta.org.pt/wp-content/uploads/2012/04/historia-da-roleta.jpg
Não é como a roleta russa. Mas é temerário na mesma. Um tiro no escuro, não sabendo da textura do labirinto por onde ecoa a bala, ou se ela pode fazer ricochete e regressar ao remetente. Não domina todas as variáveis. Teve conselhos de gente sensata, gente que mede todos os passos que dá e só os dá quando dão aval sem temor de represálias. Teve conselhos que eram  desaprovação da ousadia. Diziam, os precatados, que podia ser vítima da sua precipitação, algoz de si mesmo. Depois, não podia remediar o terreno minado que passaria a ser seu chão.
Todavia, não se acomodava com a monotonia das decisões sem risco. Concedia: eram as decisões racionais, mas o nutriente da existência não se aloja na repetitiva safra dos atos coreografados na precisão de um estirador. Por isso sempre foi um doidivanas. Não se lhe conhecia rumo certo. Porque não queria ser refém do previsível. Não queria que o tempo viesse tingido pela desconsolada iteração. Costumava dizer aos mais próximos que a monotonia era um punhal cravado fundo na carne, um golpe excruciante. Preferia a errância, um nomadismo nem que o corpo não saísse da cidade por longas temporadas. O pensamento emalava os pertences e demandava distantes paragens. Era pior. Quando o pensamento voltava a aterrar e notava que não tinha saído do mesmo sítio, a angústia subia célere pelas paredes encardidas e mandava descer o tempo plúmbeo sobre o horizonte.
Um dia haveria de vir a resolução destemida. Era como advertiam os mais próximos: era um tiro no escuro. Descontava os piores efeitos que podiam vir doravante. O mal maior seria regressar à casa da partida e aprender a conviver com a história do tempo desperdiçado. Estava a precisar de ir, nem que às escuras fosse. Era tempo de ir a jogo. Sem as peias da cosmovisão ensaiada na estreiteza do pensamento fértil. A inércia – jogada em alternativa, todavia vedada – era uma carta fora do baralho. As outras eram todas uma incógnita.
Ali estava, deposto perante a eventualidade do porvir, em pose de cabra cega, nas mãos do que houvesse de vir.

5.6.14

As cores que falam

In http://scienceblogs.com.br/odiva/files/2011/08/cores21.jpg
A menina não sabia que as cores sussurravam. Um dia, saía da escola pela mão da avó, sentiu umas vozes que, ao começo, pareciam distantes. Como se o murmúrio da cidade ecoasse por dentro do seu ouvido, sem medir as muitas palavras encavalitadas. Não deu importância. Mas as vozes teimavam. Já não eram pálidas, como ao começo.
Apertou a mão da avó, apavorada. Fosse adulta e dir-se-ia que ouvir vozes sem ver quem as entoava era sinal de loucura (pois ouvira, muitas vezes, as pessoas a escarnecerem as que dizem ouvir vozes sem dono, sugerindo que as portas da demência estavam a ser transpostas). Não quis dar parte de fraca, não fosse a avó desvalorizar o queixume que esteve quase a passar às palavras, ou não fosse a avó ficar tão azoada que a quisesse levar ao hospital. Com o tempo a passar, descobriu o impasse: eram as cores a falar. As cores dos lugares por onde passava. E as palavras que proferiam já não se intimidavam na generosa contradita de não levar o pânico à menina. Eram audíveis e já não se atamancavam umas nas outras. A menina ficou absorta. Podia a avó esboçar as perguntas que avivavam a curiosidade sobre o dia na escola, podia a avó querer informações sobre a disposição da neta, mas a menina estava em levitação ao notar as cores que falavam entre si.
O amarelo arrumava a arrogância do vermelho vivo, recusava o sangue febril que se desembaraçava nas inquietações. O azul tropeçava na maresia que irrompia desde as marinhas paisagens, emprestando-lhe cor. O lilás tingia a paisagem de veludo. A luz clara pressagiava o branco, o manto de pureza em que a menina escolar estava imersa. No jardim, uma enxurrada de verde troou aos ouvidos, como se houvesse estrofes incompletas de poemas malditos, ou estrofes simples trespassando as dificuldades dos dias correntes. Ao dobrar a esquina perto de casa, um grande cartaz fazia publicidade a um produto enigmático, as pequenas palavras cor-de-laranja sobressaindo num fundo negro. Num diálogo de contrastes: o alaranjado enfatizava a doçura dos dias felizes, em contraponto com os sobressaltos dos pesadelos consumidos em negrume.
A menina ainda pensou contar o segredo. Não a fossem tomar por demente, num assomo de sensatez, guardou o segredo. As cores seriam as suas tutoras. Para o bem e para o mal.
Que melhor tirocínio da vida podia encontrar?

4.6.14

Não há almas pequenas

Dead Combo, "Quando a alma não é pequena", in https://www.youtube.com/watch?v=pgrTnGoUXz4
Esvoaçam as andorinhas diante do sol veemente. As nuvens emigraram, deixando à mostra a resplandecência do céu. Neste refrigério, nada se embacia e as sombras diletantes evaporam-se quando os dedos de uma crisálida ungem tudo com bondade.
Não há rostos enclausurados na negação de um sorriso. Não há rostos tristes. As crianças esportulam seu saber ingénuo. Os mais velhos passeiam a lucidez da idade, não perdem faculdades. Às tantas, de tanto irradiar um sol benigno, sai do esconderijo um compêndio de desculpas para os atos de maldade de quem os comete. Há sempre uma justificação no ardil da manga. Pois não há maldade espontânea, nem sequer gente nascida num qualquer curral onde, pútrida, adeja a crueldade dependurada num piano enferrujado. Pois todas as almas são do tamanho do mundo. São um mundo em si mesmas.
Que estultícia quando alguém deambula nas margens dos outros, só para descobrir o que sabemos ser reprovável pela untuosa censura dos costumes havidos. O que interessa ajuizar os outros, quando os julgadores não são capazes de murchar por dentro de si? Mas nem esses, os que se acham supremos julgadores, como se tivessem sido entronizados num púlpito de onde arrastam sapiência e decidem praticar indulgências, nem a esses pode ser imputada mesquinhez. Acontece estarem embotados pelo sul de onde sopram os ventos que supõem favoráveis, enquanto os olhos se incineram com o sol loquaz que se eleva no pino da tarde. Que ninguém queira praticar misericórdia. Pois a ninguém é digna a comiseração. Não às almas que nidificam no jardim da sua grandeza ímpar.
Num volteio, depois de uma noite mal dormida, a culpa desembainha a lucidez que andara ausente. Serão já gente diferente, os outrora esquadrinhadores dos outros. Já sem vociferar elitistas preces que distinguem os capazes dos incapazes, que deixam os inúteis sitiados. Pois todas as almas não são pequenas. Nem as pequenas, ou aquelas que as não deixam crescer por estarem fora das baias concebidas. Haja, ao menos, a coragem de entoar a grandeza de todas as almas habitantes. Sem exceção à regra.

3.6.14

Subsídios para uma teoria da autofagia

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh3sISSTzQqKfon24UBi9yQ6kSsOnsHcnfpRLQufBCTp7TJgOtL6aPIeXRvI0xGDdh936lSDKL7rGKkrgLJ2fgAq4YkrRftQirkLuS5UlagcZxEvcipKUqpWffmt9nKvytZHLgiWA/s1600/António+jose+seguro+inseguro+livro.jpg
(Onde se ficciona com as eleições primárias abertas a militantes e “simpatizantes” socialistas)
O Tozé, que é um iluminado, um génio da política, não queria abandonar o poder. Não o queria ceder a ninguém, nem mesmo ao Costa que é levado ao colo pela imprensa. O Tozé tirou um coelho da cartola (não o que ele queria que o presidente da república demitisse depois das eleições europeias): vamos a votos ver quem recolhe mais simpatia entre o povo em geral. Só para mostrar que é um político que os tem no sítio, contrariando a imagem imberbe que os especialistas das emoções faciais se apressaram a desenhar em devido tempo. De caminho, o Tozé sacudiu a poeira da tralha que é o partido de que é líder e impingiu ao público a patranha de uma imagem modernaça: o partido ia-se abrir ao povo como nunca nenhum ousou fazê-lo. No seu calculismo, terá acreditado que a carta que tirou da manga lhe trazia dois troféus: a confirmação da liderança e a sinecura de primeiro-ministro, por natural embevecimento do povaréu diante do modernaço gesto do Tozé.
Tozé não contou com a natureza pérfida do Homem. Onde estudou, ninguém lhe ensinou os cartapácios de Maquiavel (ou ele não os leu). Desaprendeu os golpes baixos que se aprendem nas juventudes partidárias, onde fez distinto tirocínio. No dia do plebiscito, exultou com a presença numerosa nas mesas de voto, que foi em maior número do que nas eleições dos últimos três anos. Esfregou as mãos de contentamento, fazendo contas a uma vitória em dois atos, em puro knock out do ingrato opositor.
Mas o Tozé esqueceu-se que a natureza humana é a que é. Se não fosse ingénuo, umas contas por alto chegavam para concluir que tanta gente a participar nas eleições diretas não era o somatório dos militantes e dos “simpatizantes” da agremiação. Tozé não sabia das movimentações clandestinas. Militantes e apoiantes dos outros partidos também souberam mostrar a sua generosidade. Houve gente com genético ódio ao PS, e outros, muitos outros, tementes do regresso dos socialistas ao poder, que se mobilizaram. Não temiam o Costa, de quem sabiam não ser grande espingarda. Estavam seguros de que manter o Tozé à frente da agremiação socialista era a garantia de que ele e os companheiros não iam para o governo fazer ainda pior do que estes que por lá andam.
Ao princípio da madrugada veio a sentença dos eleitores. Os militantes, os “simpatizantes” e a maioria de todos os outros que quiseram, com o seu voto, boicotar os socialistas, deram uma vitória retumbante ao Tozé. O que o Tozé não sabia – ao aparecer, guloso, a comentar a vitória no pleito – é que estas tinham sido umas eleições pré-primárias para o futuro governo. Ele ganhara hoje para perder uns meses mais tarde, quando viessem as eleições a sério. Ingénuo e apedeuta, o Tozé não percebeu que foi o fautor da toca do lobo onde foi atraiçoado. Pela avidez de quem se segurou ao poder como se não houvesse dia seguinte.

2.6.14

Parecemos putos


Linda Martini, "Juventude sónica", in https://www.youtube.com/watch?v=2AjSAzjv1Vg
Mandemos tudo às urtigas. Recuamos no tempo – ou, ao menos, façamo-lo ecoar como se ele fosse repristinável. Corremos como loucos pelas ruas. Não importa que estejam habitadas por uma multidão, que a coragem é menor se elas estiverem ausentes de gente. Mergulhamos na fonte no meio da praça, caso esteja calor e os corpos peçam água. Embriagamo-nos no vinho que desce célere pelo copo. Insultamos os notáveis que se cruzarem connosco e depois fugimos da polícia. Colamos papéis subversivos à porta dos sindicatos. Passamos uma rasteira aos financeiros engravatados que vão a caminho do almoço, elucubrando sobre os mercados como se só houvesse juros e rendimentos. Afocinhamos numa festa frívola, onde está quase toda a “gente bonita” e nós, propositadamente desleixados só para destoar, mantemos um animado diálogo sobre o métier que inventámos pela ocasião (lixeiros). Não deixamos o pregador de religião fazer a sua função, proclamando um discurso inane em cima do dele. Sentamo-nos numa esplanada bem frequentada e discorremos sobre a filosofia estruturalista, sem perder de vista Nietzsche que bem avisou que o suicídio é a consolação da existência (e notamos que quase ninguém percebe esta lição). Apanhamos um táxi, desfazemos as teorias boçais do condutor e, no fim da corrida, pagamos com moedas de um cêntimo. Vamos a uma vernissage tomar o jantar, convivendo no jantar volante com a “nata” da sociedade local que nos olha com desdém (e antes de sermos descobertos, que não daríamos esse prazer aos mastins de serviço, fomos de abalada). E voltamos a correr pelas ruas, como se estivéssemos a fugir do pânico, os rostos na posse de um sorriso rasgado a mostrarem como se adestra a alegria (e a ensinarem a fugir do pânico). Ao fim da noite, os corpos já extenuados de tanta folia, repousamos com o mar por diante. Consolados: pois não fomos assaltados por interrogações, nem partimos em demanda de respostas, nem ficamos reféns de vontades que não as nossas, nem procuramos entoar palavras que medram aleivosias alheias. O arremedo de meninice não pretendeu retardar o envelhecimento inato. Foi um devaneio momentâneo. Um recuo, para tomar lanço para a aventura do futuro.