10.6.14

“Olhem para mim, como sou um desgraçado”

In http://31.media.tumblr.com/tumblr_mcl02vsZYE1ro2gqjo1_500.gif
Mortificações interiores traduzidas em pauta musical. Musicando histórias pungentes de um autor que canta as suas angústias, que confessa à audiência viver aprisionado pelos fantasmas de que não se consegue libertar. A páginas tantas, o cantor revolve-se sobre o dorso arqueado e vocifera, como se estivesse precisado de exorcizar os diabos que se apoderaram dele, que é a pior pessoa à face do planeta e que não devemos ter comiseração dele, que a maldade é tanta que se não compadece com comiseração alguma.
A audiência exulta, parte dela (adivinho) sem perceber duas palavras seguidas dos queixumes que mortificam o cantor. A outra metade que exulta, airada pela compreensão da língua estrangeira, mostra uma compassiva tolerância. Assim como assim, o grupo faz música que inebria as massas e o concerto – dizem – é de uma entrega singular e de uma partilha com o público que deixa vir ao de cima a cumplicidade entre todos. O público anónimo, mal convivendo com o anonimato, compraz-se ao ser instrumentalizado. Berra, emocionado, com as convulsões do cantor, excita-se quando o cantor decide saltar do palco e celebrar a intimidade (já em grau superior à anterior cumplicidade) com o público. Parece que o cantor queria que o público lhe enxugasse as lágrimas, ou que lhe passasse um afago pelo cabelo para ele não se condoer tanto. Faltava a derradeira prova dos nove: se o cantor levasse até ao fim o estado depressivo e cortasse os pulsos, muitos seguidores o fariam acriticamente.
Foi um concerto em forma de terapia. Para o cantor que exibia a sua desgraçada condição, como se o concerto fosse o rebentar de uma borbulha purulenta e a música acompanhada pelos prantos o pus em levitação. E terapia para parte da audiência que deve frequentar divãs de psiquiatras. No final, até os plumitivos foram unânimes na genuflexão. Somos, muitos, propensos à indulgência com os coitadinhos – e muitos, sê-lo-ão também, coitadinhos em pessoa. O cantor, cuidadosamente negligente na pose, como soe ser nestes casos de interiores padecimentos, recebeu o aplauso quase unânime.
Haja paciência. Quanto mais não seja, ó aduladores da performance artística (chamemos-lhe assim), para quem não aplaudiu e lhe incomoda o género do desgraçado que arrasta em público as interiores mortificações.

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