31.12.14

Loud and clear

Robert Wyatt, "Shipbuilding", in https://www.youtube.com/watch?v=B6T9qp9XbRY
Os limites decifram as paisagens da alma. Elas têm a ver com o lustro que o tempo traz. Deita-se a mão à tinta da china que merece ser usada para coroar um período. Ornamenta-se o final, ao selar o período findo como um repositório de recompensas, um manual de lições sobre as frondosas paisagens que enfeitam a alma.
Diz-se tudo o que convier, alto e bom som, sem se ser refém dos sentidos não desejados das palavras. Os estados de alma não se escondem atrás das sombras que sejam seus eclipses. As paisagens que adornam a alma são todas de uma beleza singular. Como se fossem paisagens só conhecidas por quem as visitou pela primeira vez, desvirginando-as da presença humana. Não se intui que venham a ser um exclusivo do descobridor; mas elas ficam com a marca registada de quem por elas andou pela primeira vez em toda a humanidade. O orgulho não é pela proeza. O orgulho é por ter arrebatado à natureza uns pedaços de paisagem que ficaram eternamente emoldurados nas fronteiras da alma. Um pedaço de ADN.
E diz-se, outra vez a plenos pulmões, para quem queira ouvir: a empreitada dobrou um cabo, mas não se aquieta na formosa condição das paisagens de alma conquistadas. A inércia é um insulto às proezas que aformoseiam a alma. Há outras paisagens – conhecidas e outras não – para trazer à pele. Há outros lugares – uns belos, outros em que não se descobre beleza à primeira impressão – que estão à espera de serem visitados para tornar a alma maior que o amplexo que cobre as almas restantes. O segredo, como ponto de partida para a viagem incessante, é não deixar as palavras sitiadas pelas convenções, não reprimir os sentidos por temor do ultraje, arrumar as coordenadas dentro da bússola solar e meter os pés ao caminho.
Diz-se: um período que finda é uma janela de oportunidade que coincide com a inauguração de outro período. Se as janelas da alma estiverem desempoeiradas, se forem alegremente contaminadas pelas paisagens refrescantes que mestiçam a alma, saber-se-á que a charneira entre os diferentes períodos do tempo é um filtro artificial. Espartilhar o tempo não ajuda a compor as paisagens da alma de que irradia uma grandeza singular. Pois o tempo é um ato contínuo.

30.12.14

A falência dos subúrbios da vontade

Om, "State of No Return", in https://www.youtube.com/watch?v=kKqoNrZ00Bg
Falava-se de assuntos da vontade. Da vontade irrefreável, pois à falta de travão deixá-la entronizar-se e ditar as palavras que contam. Só que os olhos distraem-se. Passam ao lado das categorias que representam a essencialidade das coisas. Olham para os lados. Desaproveitam tempo com fait divers. Concentram-se nos subúrbios da vontade. Não distinguem onde está a vontade espontânea e os subúrbios que a adulteram. Trocam-se as bainhas das coisas: a essencialidade é despromovida a (falso) meneio da vontade e dos subúrbios pensa-se serem a quintessência volitiva.
O juiz tem de estar aprumado nas funções. Ele é o soberano da vontade que lhe diz respeito. Não se pode distrair com os engodos bolçados por quem interessa que os papeis da vontade se invertam. É importante saber distinguir as coisas. E as personagens que querem ser influências na configuração da vontade. O melhor, é ensimesmar. A vontade é um ato individual; só ao indivíduo importa. Das profundezas da moralidade, com batuta a condizer, uns sufragadores da dita cuja julgam que podem ajuramentar as “boas” e as “más influências”. Eles são, para começar a função, as piores das más influências: só por terem o topete de tirar as bissetrizes às credenciais dos outros, julgando-se mais capazes do que o próprio (que dizem aconselhar, e tão generosamente que o fazem sem ónus) para distinguir o que lhe convém. À falta de vida própria para lamberem as feridas que (de certeza) trazem agarradas às bafientas caudas, cuidam dos outros. Ninguém lhes encomendou a empreitada. E se acaso gente houve que discerniu intimidade (outra subjetividade) para pedir conselhos, logo se emproam do alto da sua digníssima condição para lavrarem sentenças. Prouvera que acertassem com as esquinas das suas próprias existências.
São as piores das “influências” (tomando de empréstimo o jargão que é deles e que em cima deles se abate depois de o cuspirem ao ar). Porque cerceiam a vontade de quem se dizem conselheiros. A vontade só é indomável se partir das profundezas do ser. Nem que seja para errar, e errar profundamente. Sem agulhas metidas pelo caminho por quem não é dono dessa vontade. Os olhos devem ser peritos na observação das coisas. Devem desprezar o que anda nos subúrbios da vontade. Porque essa é uma vontade ardilosa, que embacia a vontade genuína que embarca no ser que a detém.
Não se quer ser alguém a viver fora das fronteiras que são as suas. Os limites decifram as paisagens da alma.

29.12.14

Desmascarar fantasmas

Madrugada, "Majesty", in https://www.youtube.com/watch?v=LE9AuZ35_AY
Percebia-se, na frescura da alvorada, que a coragem é enteada da intuição. Não, os olhos estremunhados não toldavam a clareza. Sabia-se que as sombras pretéritas adejavam sobre o pensamento, colonizando medos que talvez fossem espúrios. De que valia embotar o tempo sensível com fragmentos de um tempo metido na vara das lembranças?
Os fantasmas não se vêm. Quando deviam ser tratados com a irrelevância das figuras inexistentes, às vezes comandam os temores, travam as ações, enxameiam o porvir com vestígios contaminados do passado que deixou de contar (por ser passado). Que a intuição seja imperatriz. Que comande os fios que se unem à raiz do pensamento, como se a intuição fosse manipuladora de uma marioneta. As fragas da intuição podem ter arestas vivas, e os olhos podem esbarrar em superfícies rudes, desagradáveis ao trato. Há alturas em que a coragem se impõe no papel de capitã da intuição. Nem que depois de alguns sacrifícios, em que o corpo se entrega às asperezas das fragas da intuição, os fantasmas sejam derrotados.
É uma coragem batizada pela simplicidade. Tudo consiste no achamento da vacuidade dos fantasmas. Mesmo que seja dado intuir que há fantasmas que fermentam consumições, eles não são matéria carnal, são um vazio inteiro. Como pode alguém ser refém de entidade imaginária? A coragem está em comandar o entendimento de modo a dar por assente que os fantasmas, a existirem, são irrelevantes. (Mais ousada alternativa é a intuição desaguar no entendimento de que não há fantasmas.)
Se para tal preciso for atravessar um rio caudaloso, um rio tão enfurecido que parece discernir-se o rosto de um monstro medonho nos remoinhos das águas, os pés que se metam ao caminho. Esquadrinhem as margens escarpadas em demanda de uma ponte que permita a travessia para a margem onde estão as promessas de mel, vinho idílico, frutos sumarentos e uma almofada que destrava o sono pacato. As mãos que se metam nas águas sem freio só para saberem como é ser-se indomável.
A intuição é o aval da vontade irrefreável. 

26.12.14

À tangente

Gary Jules, "Mad World", in https://www.youtube.com/watch?v=4N3N1MlvVc4
Confia-se na intuição: há uma ponte por diante. Separa as duas margens de um rio. O rio vai tumultuoso. Nem os troncos de árvores arrancadas ao solo inundado aplacam a ira do rio. A ponte é frágil. Uns juncos orgulhosos metidos no caudal são o alicerce da ponte. Que treme, amedrontada pelo rio iracundo.
Confia-se na intuição? E o que diz a intuição? Dividida, tem duas almofadas onde repousam os vértices da hesitação. Uma parte diz para meter os pés à ponte. Antes que se faça tarde e o rio se encolerize. A outra parte, mais cautelosa, está paralisada pelo sobressalto. Vê as águas caudalosas e barrentas num atropelo constante, vê os remoinhos assassinos, vê os vestígios dos lugares que perderam ligação à margem por terem sido invadidos pelo rio. E hesita. Receia pela sobrevivência. Sabe que não tinha salvação se caísse ao rio impetuoso. A outra metade desconfia desta intuição madraça. Temerária, não pede meças ao pragmatismo. O tesouro dourado obriga a atravessar a ponte. Não quer perder o lugar a esta oportunidade. Os sentidos afinam as garras da ousadia: não é um rio destes que tira as medidas ao rasgo que importa. A ponte estremece quando uma árvore maior esbarra num junco. Move-se uns centímetros na direção da corrente. As tábuas antigas rangem os dentes. É o medo de ver extinguir-se a sua serventia. Uns parafusos enferrujados desprendem-se das ataduras que os mantinham na solidez da empreitada.
A metade desassombrada argumenta em sinal de convencimento: é agora ou nunca. Os pés molhados já estão. Não podem ficar mais se o corpo for atirado ao rio agitado – tal é o estado da lucidez. E lá avançam os pés, velozes. O chão treme debaixo deles. A intuição despojada de impedimentos atirou o corpo para aquela correria. Dir-se-ia, demente. Não deve demorar mais do que uns segundos. Mas parece uma eternidade.
Foi mesmo à tangente. Como nos filmes de aventuras (e como nos filmes de aventuras, a história acaba bem). O derradeiro passo selou o finar da ponte. Que se esboroou em pedaços num volteio mais assanhado do rio caudaloso. Agora, podia tratar de outros cometimentos.
A coragem é enteada da intuição.

25.12.14

A acústica dos sentimentos

Noiserv, "This may be the place where trains are going to sleep at night", in https://www.youtube.com/watch?v=L5STwfCs6g4
Os ouvidos decantam os sentimentos. É neles que se esconde o mapa que franqueia o sortilégio dos sentimentos. Os sentimentos, quaisquer que sejam – os que vêm afivelados por boa têmpera e os que são consumições tardias de um mal escusado.
Os ouvidos devem-se encostar às bainhas da alma. Procuram as ondas hertzianas que refulgem a ossatura dos sentimentos. Se não for dado escutar a consistência dos sentimentos, não é possível entendê-los. O mais certo é empurrar as resoluções para a frente dos sentimentos, por uma extemporânea alcáçova se interpor entre as fundações dos sentimentos e aquilo que deles se julga serem. É como se fosse imperativo cartografar as linhas dos sentimentos. Decifrar as esquinas em que se dobram para sentidos que não são dados a conhecer aos olhos desatentos.
A acústica revolve na profundidade dos sentimentos. Deita fora a espuma que pode cegar o entendimento e traz à tona a essência que purifica os sentimentos. Ou que se julga ser sua purificação. A audição dos sentimentos não é um exercício de exatidão matemática. Varia de pessoa para pessoa. A perceção da audição também. Quando vem tanta subjetividade ao trono, não se pode presumir que os alinhavos da audição dos sentimentos sejam matéria precisa, um novelo sem nós a atrapalhar a fiada. É como olhar para o horizonte e saber que há nacos do céu que estão calados por nuvens finas que emprestam cores diferentes ao entardecer. As nuvens não são um estorvo; fazem parte da tela contemplada pelos olhos. Que vêm através dela, sem embaraços. Porque a audição deixa ver além das fronteiras que impedem o olhar.
É assim com os sentimentos. Não se é prisioneiro dos abcessos que impedem uma feição vítrea ao olhar. Emprega-se a audição, em meticulosa operação, para tirar as medidas ao que o olhar não distingue no embaciamento que lhe é devolvido. E confia-se nessa intuição.

24.12.14

Conto de natal (versão 2014)

Felt, "She Lives by the Castle", in https://www.youtube.com/watch?v=mp7H26XcqoU
O rapaz já não estava em pulgas. Como fora em anos anteriores. Dantes, contava os dias que faltavam para a véspera de natal. Era por causa das prendas (que já fora contaminado por um dos males da civilização materialista) e era por causa de todo o ambiente.
Gostava de descer às ruas movimentadas do centro da cidade para ver a azáfama de quem comprava os presentes deixados para a véspera, ou as pessoas que se abasteciam dos mantimentos precisos para a ceia de natal. Gostava do cheiro que vinha da cozinha quando a avó fritava as rabanadas e depois os sonhos – aquele cheiro inconfundível em que a canela era rainha. Gostava da ceia de natal: ao menos naquele jantar as pessoas não punham caras de enterro, nem se digladiavam em discussões destemperadas. Gostava do momento em que a família se arrastava pela noite fora nos lugares à mesa, saciando a gula na maratona de sobremesas, jogando para passar o tempo, fazendo apelo à paciência quando os mais novos subiam aos píncaros da excitação por não verem a hora do pai natal descer pela chaminé cheia de fuligem que, todavia, não existe nos apartamentos citadinos.
Mas isso era dantes. O rapaz estava farto do natal. Já não acreditava nas fantasias que se colam à época. Pela primeira vez, achou o natal datado. Talvez estivesse a crescer. A cansar-se de ser criança. Nesse natal, quando lhe perguntaram o que queria de prenda, respondia sempre “quero deixar de ser criança”. Notara que a meninice é uma patranha dos anos vindouros. Alguém – um mais velho, por ocasião de uma pré-depressão pós-natalícia no ano anterior – o advertira que a infância é um engano para o muito tempo de vida que vem depois. Toda a fantasia, a inocência própria da idade, o encantamento com que as crianças são puerilmente burladas a ver as coisas do mundo – tudo era um ardil para enganar as criancinhas. Ou então, apenas uma anestesia que era impreparação para o crescimento que vinha depois.
Esse mais velho falou-lhe de como tudo era diferente do encantamento com que os pregadores de histórias infantis enfeitam as histórias infantis. Era o pior préstimo que a literatura infantil podia ter para quem a lia. O mais velho prometeu que a idade depois não era o pior dos mundos. Podia haver cinismo. Muitos logros escondidos atrás de bondade ultrajada. Deceções, sobressaltos, mágoa. A complexidade da idade adulta, que tantas vezes escolhe o caminho que se alija da simplicidade, andando o resto do tempo a recolher cicatrizes das cinzas depostas. Mas esta era uma idade a que estavam prometidos prazeres vários que a meninice desconhece.
O mais velho foi enigmático quando desafiado a enumerar os prazeres. Limitou-se a proclamar “a seu tempo, a seu tempo”. E o rapaz, ao lembrar-se destas palavras que logo na altura reputou de sábias (sem saber porquê), quis despojar-se da meninice. A melhor altura era renegar a puerilidade do natal. Ao menos, já não tinha de suportar a indulgência de alguns mais velhos que o tratavam como se fosse atrasado mental, nem a música insuportável das estrelas do momento que recriam (para pior) essas musiquetas, nem o olhar nostálgico da avó que vinha, ato contínuo, com as histórias repetidas da miséria que combinava com o natal quando ela teve a idade do rapaz.
Descobriu, natais depois, que nesse natal começara a ser hedonista.

23.12.14

Mercado dos sorrisos

In http://static6.depositphotos.com/1003326/611/i/950/depositphotos_6115240-Smiles.jpg
Os bancos não tinham perdido serventia. O povo exultava: o capitalismo finara. Passada a exaltação do momento, quando as emoções começaram a ser refrigeradas, as ideias começaram a fazer mais sentido. Depurados os radicalismos, o povo sábio percebeu que só fazia sentido um mercado. Nesse mercado não seria trocado dinheiro, ou mercadorias de variada estirpe por dinheiro. Só seriam admitidos sorrisos.
As pessoas tinham de depositar os sorrisos num banco de ditos cujos. Seriam os sorrisos a ditar a abastança (não material, porém) dos depositantes. Os sorrisos seriam objeto de inventariação, a que se seguiria a classificação por um comité de sábios na matéria. Para as pessoas saberem o valor das diferentes estirpes de sorrisos. Uns haveriam de ser mais válidos para a troca (os mais raros). Outros seriam menos valorizados, os mais abundantes entre o povo. Para o sistema não personificar a lógica materialista do capitalismo defunto, os sorrisos mais abundantes não podiam ser prejudicados por esse atributo. O sorriso mais lhano podia ser trocado por sorrisos menos abundantes e procurados por quem quisesse experimentar o valimento de sorrisos raros.
Os sorrisos seráficos e os sorrisos cínicos, por serem a feição de sorrisos ardilosos, teriam residual valor. Os sorrisos descomprometidos, aqueles sorrisos abertos e espontâneos, captados magistralmente por câmaras fotográficas, valeriam o ouro. Os sorrisos amarelecidos, forjados à custa de tanto serem esboçados, teriam crédito à troca por sorrisos esbanjadores, eles sinónimos de despojamento completo. Os sorrisos maliciosos seriam valorizados numa base casuística: a entidade reguladora, presidida pelos maiores peritos da especialidade, teria de determinar se atrás de um sorriso malicioso se escondiam boas ou más intenções (e se, entre estas, apenas se estava a falar de lúbricas intenções, momento em que imediatamente o sorriso seria metido na categoria dos sorrisos bons).
De tanto esquadrinharem a feição dos sorrisos exteriorizados por rostos de tão diferente expressividade, perdoava-se, aos peritos da entidade reguladora do mercado dos sorrisos, que fossem rostos empedernidos, com a musculatura facial inerme e, por isso, imune ao sorriso. Seriam os únicos, na doce ditadura democrática do sorriso à força de lei, a não serem punidos por sorriso contumaz. Os cidadãos comuns teriam de andar nas ruas e na intimidade das casas a esbracejar sorrisos em sinal de próspera alegria imaterial. Sem discussão de causa, a UNESCO sentenciaria o sorriso como património imaterial da humanidade. A infelicidade passaria a ser motivo de degredo.

22.12.14

A vernissage dos notáveis

Eels, "Novocaine for the Soul", in https://www.youtube.com/watch?v=V2yy141q8HQ
Não gosto de cerimónias públicas. Não gosto.
É por lá que se acende o rastilho da fogueira onde os notáveis desfilam a sua tremenda importância. Para se fazerem notados, empurram o nariz para o topo e deixam o olhar vaguear em forma de radar, para ver quem está (outros notáveis) e para saberem que, enquanto notáveis que são, a sua presença não é indiferente à maralha anónima. Cobre-os uma aura de grandiosidade. De gente que atingiu o estrelato. Não interessa saber dos pergaminhos que os trouxeram ao estrelato. Só importa o estatuto de notáveis.
Convivem entre si. Nem que apenas se conheçam pela coincidência de neles coincidir o estatuto de notáveis. Enquanto notáveis, não se podem ignorar. Seria uma deseducação do foro social. Não se podem ignorar, nem que nunca tenham estado juntos ou falado um com o outro. Mas falam como se fossem amigos de longa data, uma cumplicidade que medrou no estatuto de notáveis. Falam de outras notabilidades ali ausentes, mas sobre os quais a curiosidade de alcoviteiro, a maledicência, ou apenas a atração pelas revistas cor-de-rosa faz deitar as atenções. Afinam a língua viperina.
Em seu redor gravita um séquito de zés-ninguém que aspiram ao estatuto de (ao menos) pequenas notabilidades. Prestam-se ao papel que aquece em lume brando as personalidades que precisam de culto: são vultos que se desdobram em respeitosas genuflexões, arriscando a conversa de circunstância na esperança de arrecadarem contactos posteriores que abram oportunidades. Alguns notáveis aturam os arrivistas com um esgar de impaciência, depressa os deixando na sua indiferença. Outros fazem de conta, enquanto lhes apraz saberem que sobre eles vem um culto de personalidade feito pelos pajens oportunistas.
Uma vez, numa casa de banho a meio de uma festa de casamento, coincidi com uma notabilidade. Cambaleava, ébrio. Em espampanante converseta com outro conviva, fiquei a saber que os notáveis também têm linguagem de caserna (ao menos quando estão sob efeito de vapores etílicos). Os notáveis também são carne e osso.
E para que não conste que me move uma montanha de inveja, se algum dia chegar aos calcanhares de ser notabilidade (hipótese improvável devido à irremediável sociopatia) quero o exílio numa distante Taprobana.

19.12.14

Dezoito léguas

Keep Razors Sharp, "I See Your Face", in https://www.youtube.com/watch?v=0Nb_NaM3ijg
Um mar inteiro de diferença. A tanta água de separação, maior do que promontórios escarpados. Às vezes, os antípodas parecem cinzelados nas próprias costas. As sombras enegrecem, as cortinas sobrepõem-se, o olhar perde-se na escuridão consecutiva. O corpo parece que entra em falência, sem todavia falecer.
As ondas pretéritas cavalgam no estigma do tempo presente. Ou, talvez, seja o tempo presente que se refrigera com o estigma das ondas pretéritas. Seja o que for, é a distância que se estabelece. Se às vezes podem léguas imensas não chegar para serem tutoras da distância, de outras um pequeno espaço transfigura-se em distância imensa. Não importam as léguas que são, nem as léguas que as pernas atravessam no hiato entre dois corpos. A água imensa, fruto das opostas margens de um oceano, sussurra nos contrafortes do silêncio. Um silêncio que ensurdece as palavras. Um silvo ocasional, vindo de um corvo, parece romper o silêncio. Ou os olhares que se entrecruzam com escassa frequência, e que, todavia, são mantimento de palavras que se encerram nos olhares.
Ao olhar na retaguarda, vêm-se ao longe as dezoito léguas de onde o corpo veio. Quis achar cais onde pudesse ter regaço. As léguas todas saciaram a sede das palavras promitentes. Depois das léguas, das dezoito ou das que preciso fossem, tudo seria diferente. Um mão estendida. Um olhar animador. As palavras perfumadas. Uma existência que preenche a outra por dentro, na totalidade do ser. As léguas percorridas não foram em vão. O cais tinha as cambiantes de uma casa, ou de uma caixa forte onde passavam a estar alojados os nutrientes da existência. Foram dezoito léguas. Se fossem dezoito mil, elas teriam sido achamento na mesma. Para além do horizonte que o entardecer esconde, sobeja um vento corajoso que leva os corpos por uma centelha vinda da rosa dos ventos. As manhãs passaram a ser sinfonias adestradas pela batuta de um maestro metódico.
Dezoito léguas depois, o achamento de tudo. A temperança de ser totalidade por dentro do ser.

18.12.14

Inquérito à etiqueta


Art Department (presents Martina Topley-Bird and Mark Lanegan), "Crystalised", in https://www.youtube.com/watch?v=-zLEI9oEHwI
Um arroto sonoro no fim do repasto. Um escarro avantajado que emporcalha as ruas. O dedo mindinho com proeminente unha a enfiar-se na cavidade nasal para a desobstruir de cera. A flatulência, audível ou soporífera, que traz um naco de poluição ao ar adjacente. O boçal que come à mesa do restaurante com tamanha voracidade que – dir-se-ia – não comer há um par de dias. O cavalheiro nada cavalheiro que não cede a passagem à senhora que vinha a seguir. Os meninos em perfeita algazarra no restaurante, incomodando os demais. A senhora ladina que foi à casa de chá e se esqueceu de dirigir o dedo mindinho ao céu enquanto levava a xícara à boca. O funcionário público que demora na função e se enfeita de trombas quando atende os utentes. A figura pública que se põe em modo grosseiro com os jornalistas ao ser interpelado depois de visitar um “grande amigo” na prisão. O vernáculo trivial em substituição de sinais gramaticais. A genética falta de sentido de humor. O esteta que já não toma banho há sabe-se lá quanto tempo. Os rapazolas que no comboio zurzem uma (dizem eles) aberração que teve o topete de estacionar perto deles. O “não tio” que insiste em cumprimentar a “tia” com um par de ósculos nas faces, deixando-a sem jeito ao dobrar do ósculo. O taxista fascista que acorda sempre na penumbra e não a larga durante a jornada. A estrela de música que recusa, com desdém, o autógrafo a um menino deficiente. A rudeza do homem do talho, que saliva raiva nos interstícios dos dentes cariados. O cliente do café que não pede o lanche, ordena e com maus modos, como se o empregado do balcão fosse seu criado. As irmãs petizes que metem os cotovelos em cima da mesa do restaurante. O comunista que palita os dentes em público. O putativo amigo que vem da deslealdade. O patrão que deprecia o trabalhador. O padre que exerce coação psicológica sobre o confessor. O cientista que tomou de assalto as ideias alheias e fê-las passar como sua descoberta. O adolescente distraído no autocarro a limpar as cavidades nasais com o dedo indicador. E os moralistas, os moralistas de que jaez seja. A metódica etiqueta: ou de como a tirania da etiqueta revela mais falta de chá do que a sua omissão.

17.12.14

Morangos deletérios


Pascal Comelade & P. J. Harvey, "Love Too Soon", in https://www.youtube.com/watch?v=Z87cA1c3M50
Os beijos espontâneos não eram o ardor de outrora. O olhar era desviado. As mãos, frias. As palavras vazias. O tempo suspenso. As árvores, decadentes; como se sobre elas houvesse pousado criatura destruidora. A névoa ao entardecer fazia soar os sinos da decadência. Tudo era um arremedo de nada. Os rostos, todos iguais. As palavras, sem sentido, como se já nem estivesse por dentro do idioma mátrio. As mãos desciam às águas profundas, de onde vinham lavadas em lágrimas. A nostalgia não tinha preço, a não ser as cicatrizes que demoravam a dor. E, contudo, não conseguia ser misericordiosa consigo mesmo. Entregava-se num campo de batalha onde as pernas se atropelavam todas, onde não havia sentido de despojamento do ser, onde cada um soerguia a cabeça nem que para tal tivesse de meter a mão na cabeça do mais próximo. Às vezes julgava ser apenas uma sombra dentro de uma miragem. Adormecia tarde. Cansada, depois de o sono lutar contra ela e a insónia estender os lençóis para fora da cama. Adormecia tarde e contava as lágrimas que derramava por fora da almofada. Quando sentia o coração esvanecer, sabia que se destrancavam as portas do sono. E que na imersão do sono viriam à boca de cena sonhos que desmentiam todo o tempo em que os olhos andavam em demanda. Esse era um tempo vão. Um chão trémulo sobre o qual os pés escorregavam. De tantas quedas estrepitosas, de tantas proclamações solenes que, depois, não passavam de extemporâneas encenações, ao menos sobravam os sonhos. Tudo podia ser cedo de mais, como depois do tempo passado dele podiam sobrar os vestígios de um entardecer sem remédio. E sabia: que ao menos nos sonhos não era comandante da frágil embarcação que era. Não tinha de apanhar os morangos dos campos frondosos e depois cair doente por estarem embebidos em veneno.

16.12.14

Sinais de fumo

Savages, "Waiting for a Sign" (live), in https://www.youtube.com/watch?v=LiK9hMYn6dg
Há vigilantes em lugares estratégicos. Revezam-se, em turnos, para nunca os sentinelas estarem imersos no sono. Cativam toda a atenção. Os olhos, ainda que estremunhados, vasculham o horizonte em todos os seus quadrantes. Andam em demandam de sinais. Sinais de fumo. Sinais que desencravem os impasses em que as coisas caíram. Sinais, não se sabe vindos de onde. Nem interessa a cor com que o fumo vem tingindo. Apenas que sinalizem os contrafortes de uma esperança qualquer.
E, todavia, ainda ninguém se interrogou sobre o significado dos sinais quando eles subirem ao céu. O que podem querer dizer? E quem os emitiu quis enviar a mensagem que o seu decifrador captou? Às vezes, a comunicação esbarra nos imponderáveis da fala, nos estados de espírito que embaciam a lucidez, na vontade (ou na ausência dela) em transformar sinais de acordo com um código viável. Os sinais de fumo podem ser um ardil. Podem atrair a presa (que não sabe que o é) a uma armadilha, se o leitor dos sinais estiver ofuscado pela alucinação e tirar as medidas dos sinais ao avesso. Mas os sinais também podem ser a promessa de paraíso que leva a montar uma atalaia permanente na detecção dos possíveis sinais. Pode ser apenas o resultado de uma crença, testemunhos passados de geração em geração, fermentando um imaginário coletivo que é promitente de um futuro radioso. Os sinais transformam a essência do horizonte. Pintam os dias vindouros com cores garridas. As gentes açambarcam um sorriso estrelar, tão feérico como a cintilação que vem do céu desembaraçado de nuvens.
À espera dos sinais de fumo, e que eles confirmem o imaginário construído, os sentinelas são como guerreiros sem armas. Não vigiam inimigos que possam tomar de assalto a fortaleza que resguarda a comunidade. Vigiam os céus, esquadrinhando cada pedaço de horizonte como o fazem os modernos argonautas em busca de novas constelações. Os sentinelas nunca dormem. Não se perdoariam se o sono ditasse o esquecimento dos sinais de fumo. Só não poderiam garantir se, durante o sono, teriam passado sinais de fumo.
Não vá o diabo ser tendeiro, mais vale a atalaia perene.

15.12.14

O natal não é ecológico (epístola dos ambientalistas às criancinhas)

In http://www.contagem.mg.gov.br/arquivos/bancoimagens/111206duro_iluminacao_natal_contagem_2011_222.jpg
As coisas como têm de ser ditas: o natal torna o planeta mais poluído.
(Podíamos ir por outro lado: o natal é uma época de consumismo que aliena. Os hábitos deseducam as criancinhas, que nem percebem que há valores mais importantes. Mas isso não é chamado para esta epístola de pedagogia ambiental, porque os ambientalistas sabem separar águas.)
Toda a gente (ou quase) fica encantada com as iluminações de natal. As autarquias locais têm as suas. Rivalizam, para ver quem leva a taça das iluminações mais deslumbrantes. As empresas colocam dizeres alusivos ao natal no exterior das instalações, iluminando-as com abundância. As pessoas têm em casa árvores de natal (ao menos que sejam artificiais) com muitas luzes que ficam acesas pela noite fora – é o espírito natalício, dizem. O que vocês devem saber é que a luz pode vir de fontes poluentes. Mais consumo de luz aumenta a poluição. Ponto assente: o natal é poluente.
O natal é muito sobre a mania das prendas. Que vêm embrulhadas. Para virem embrulhadas cortam-se muitas árvores, de onde se fabrica o cartão e o papel de embrulho. Se o natal não fosse tão consumista, e se não houvesse a mania de fazer embrulhos flamíferos, não era preciso matar tantas árvores. O natal tem o seu quinhão de responsabilidade numa paisagem mais árida e desinteressante. As prendas, ainda. O materialismo natalício dita mais produção de todas as coisas que habitualmente são oferecidas no natal. O que vocês têm de saber é que quanto mais se produzam coisas mais poluição é atirada para a atmosfera, para os rios, para as terras. Estão convencidos de que o natal faz mal ao ambiente?
Mesmo as renas que transportam S. Nicolau (na generosidade dos presentes natalícios) fazem mal ao ambiente. Não se iludam se alguém contrariar a sabedoria de quem quer bem ao ambiente, dizendo que as renas são amigas do ambiente pois S. Nicolau podia viajar em potentes aviões que, esses sim, fariam dano na atmosfera. As renas também não são amigas do ambiente. A flatulência tem metano, que aumenta o buraco do ozono. Se não houvesse a mania do natal, as renas eram menos e o buraco do ozono também.
É destas coisas, pequenas mas importantes coisas, que vocês têm de saber para não se iludirem pela fantasia do natal. Porque o natal faz mal ao ambiente. E o ambiente é a vossa casa futura.

12.12.14

Quando os gatos são cinzentos

The Cure, "All Cats Are Grey", in https://www.youtube.com/watch?v=lw4-NZijyfE
Nem os sentinelas de olhar aguçado conseguem perceber. Há quem tenha sentidos mais apurados. Como os gatos que se fazem pardos para poderem passar incógnitos no meio desfavorável. É como se fossem agentes secretos, ou polícias à paisana: a arte está em não lhes ser creditada atenção pelos olhos que se deitam no olhar do que acontece em redor.
Os gatos pardos andam cabisbaixos. Não que tenham vergonha. Eles exalam garbo viciante. Mas inclinam a cabeça para a frente, sabem que não devem ser denunciados pelos grandes olhos verdes cor de garrafa que contrastam com a penugem plúmbea. São artífices do disfarce, sem terem de ir ao baú das velharias resgatar andrajos que os personifiquem num ridículo arremedo de outrem. Esguios, passam sem serem notados. Não lhes custa serpentear entre as pernas dos exaltados que vociferam nas ruas atafulhadas de gente. As pessoas não olham para baixo. Muitas vêm mal. O que seria um meio perigoso, é território sagrado dos gatos pardos. Há muito lixo nas imediações, sinal de iguaria em fartote.
Na sinuosa linha da existência, os gatos pardos sabem que não podem exagerar nos mantimentos. Ficariam gordos. Ficariam menos ágeis – e a agilidade é, muitas vezes, o bisturi da sobrevivência. Aprendem a ser disciplinados. Disso depende a sua longa e única vida, que eles sabem que o mito urbano dos gatos com sete vidas é isso mesmo, um mito urbano. Como se insinuam por perto da gente, aprendem com as suas conversas. São involuntários tutores de segredos. Pois há gente que conta os seus segredos na rua, em alta voz na vez de sussurros. É como se procurassem a rua para degredo das perplexidades interiores. Talvez tenham medo que quatro paredes sejam exíguas para receber o tamanho das apoquentações. Os gatos pardos levam tanto para contar (houvesse quem os ouvisse).
À noite, confundem-se com a noite. É o seu território natural. Mas recolhem-se aos aposentos. É que anda pouca gente na rua, e os poucos que andam são pardas existências em demanda de uma luz pueril. Os gatos pardos gostam de gente diferente da sua igualha. Não para serem como eles, pois continuam fieis à sua igualha; só para saberem como é ser diferente do que são.

11.12.14

Do tempo terapêutico


Noiserv, "Palco do tempo, in https://www.youtube.com/watch?v=he-nceylej8
Sabes? É neste palco que nos movemos. Um palco onde esbarramos na tirania do tempo: ora vagarosa esperança do porvir diferente, ora punhal afiado na carne ensanguentada pelo pretérito que merece olvido. Deitas os lábios à fonte do tempo. Eles vêm molhados com os nutrientes que por dentro de ti abonam a alforria que não será a destempo. As curvas deixam de ser um ardil. Os montes não são aqueles medonhos promontórios que julgavas não saber subir. Às tuas mãos, vigilante deste oráculo, os rios dir-se-iam trazer uma água prateada. Nesse caudal, resguardadas do olhar ávido, só palavras em forma de sortilégio. O tempo é uma medida que deixa de ser tirania. Pois o tempo na sua medida futura é um vasto prado vestido de centeio coreografado pelo vento vertiginoso. Esperas que o tempo seja recompensa. E sê-lo-á. Porque ele não admite os fracos de espírito em seu umbral. Ele reserva o pedestal para os que sabem manter o olhar no firmamento, limpando as lágrimas que marejam o olhar quando por dentro as consumições fazem arder as veias. Não: não podes deixar que o tempo faça abater as asas negras de um abutre disfarçado de serafim. Estendes a mão e derrotas os demónios que o tempo traz em sua madraça cortina. As tuas mãos, as fortes mãos que não desistem, agarram as cortinas de fumo e limpam o céu, que fica a estrelar, esplendoroso. É quando o tempo passa a estar sitiado dentro de ti; e deixa de ser o tiranete que aplacava a vontade e fazia medrar lágrimas inúteis. Agora que o tempo vindouro assoma em forma de acetinado céu, sabes que tens a recompensa a abraçar o teu regaço. Há quem lhe chame justiça divina e diga que é daquela estirpe que não demora. Há quem lhe chame centelha do tempo por haver, desembainhada dos dedos que não capitulam à desesperança. Desse tempo que vem na forma de terapêutica.