30.1.15

Na almofada da melancolia

Silk Rhodes, “Pains”, in https://www.youtube.com/watch?v=SoxbvE1Doog    
Faltavam motes. Uma centelha que bordejasse as fronteiras do céu com segredos de como transformar uma vida em exaltação dos sentidos. Ao contrário, o tempo era onde a tristeza se macerava. Um estuque que emoldurava a perenidade da melancolia.
A certa altura, o tempo já passava por desiderato aleatório, como se fosse uma estéril paisagem de onde já não havia frutos para colher. Era como se desistisse. Como se já nada interessasse, nem houvesse um frémito a descompor a melancolia que de tudo tomara conta. O tempo atravessava a melancolia – ou era a melancolia que atravessava o tempo, já nem conseguia distinguir a causalidade (mas também não importava). O rosto acabrunhado, o sono que transigia diante das insónias, as insónias prolongando a pungência que metia um punhal fundo e afiado na carne. Mas se nem a dor já era uma consumição: era como se a dor tivesse colonizado os sentidos, ou estes estivessem anestesiados à dor ensaiada. A anestesia de tudo era mau presságio. Dir-se-ia que à falta de alguma coisa reverter para o domínio do interesse, aguardava que uma manhã já só fosse alvorada para os outros.
Arreliado, recusava os outros. Metera-se numa tremenda solidão, ao jeito de uma missão que convocava monástico recolhimento. Queria ser um pagão artífice do seu penar. Mas não queria derramá-lo para fora de si. Não queria ser acometido pela comiseração dos outros. A morte, nem que fosse por suicídio, antes da comiseração. Bolçava a ira reprimida. Sabia que não tinha préstimo irradiar a ira para o exterior: os outros não tinham culpa da sua incapacidade, não podiam sufragar a imprevidente existência que era a sua.
A dor que era sua, doía só a ele. Deixava a dor dos outros para os limites que lhes pertenciam. Pois não era justo socializar os pesares, deixá-los transbordar para os lugares e as pessoas limítrofes. Ao menos, sobrava-lhe essa conspícua transparência.

29.1.15

Não era uma vez (o roubador de histórias, o roubador de sonhos)

Robert Wyatt, “Hasta Siempre Comandante”, in https://www.youtube.com/watch?v=knaKOMgZi4M
Um jantar. Dois jantares. Em roda de amigos. Umas conversas de café. Algumas mensagens trocadas – por email e por telefone. O tema passara a ser imperativo. As eleições na Grécia eram o mote para o resto dos países. Tinham de ser. À maneira de imperativo categórico. Para restaurar a justiça que andava ausente há tanto tempo. Ele fizera-se porta-voz da mudança. Convenceu-se que tinha de catequizar mais gente, convencê-los da oportunidade única de mudança que tínhamos nas mãos.
- É agora ou nunca. Temos de ter um Syriza aqui. O povo não merece ser sacrificado por mais tempo. Não achas?
- ...Talvez...não estou muito convencido que soluções radicais...
- ...Não caias na armadilha. Não te alies aos conservadores apavorados com o despontar da esperança. Não dês o braço aos deploráveis tutores da finança. Olha para os pobres. Para os miseráveis que ficaram ainda mais miseráveis. Se não chegar, olha para ti, que perdeste bem-estar e te apoquentas com a miséria dos outros. A tua consciência lida bem com este fascismo implícito?
- Esta vaga de justiça social vai vingar?
- Depende de nós. De mim, de ti, de outros que consigamos convencer...
- ...Não me peças para ser como os pregadores de fé, de porta em porta a angariar clientes.
- Não é isso. Fala com os teus conhecimentos. Sei que foi difícil convencer-te desta causa, bem sei que as tuas ideias não combinam bem com o espantalho da “extrema-esquerda” que os detratores insidiosamente nos colam.
- (Pensando com os seus botões, em surdina: quem te diz que já me convenceste?) A ver vamos. Quero ver a experiência da Grécia. Depois te direi se estou convencido.
Uns meses depois, em antevéspera de eleições, voltaram a encontrar-se. A causa veio para dentro da conversa:
- Diz-me: estás convencido da justeza desta causa? Vais votar em consciência, como a tua consciência, se estiver afinada pela justiça social, manda?
- ...Sim...isto é...pois, convenceste-me. Não se fala mais disso. Até a outro dia, que agora estou com pressa.
No dia das eleições, enquanto o pregador de esperança votava orgulhoso no partido da extrema-esquerda que prometia toda essa esperança (só não se revelando em qual deles), o outro fazia o que a consciência mandou. E, mandando às malvas a catequização ideológica, escolheu quem lhe aprazia.
- (Pensando outra vez em surdina, só para si: era o que mais faltava, tanta pressão, tanta sabotagem intelectual, como se eu não soubesse pensar pela minha cabeça. Julga que vou votar na extrema-esquerda – ou esquerda radical, como eufemisticamente lhe chama. Não vou. Sei pensar pela minha cabeça. E não alinho em modismos nem em imperativos categóricos. Prefiro a liberdade de pensamento.)
No dia seguinte, os adeptos da esperança grega estavam desorientados. As sondagens não se confirmaram. A vitória esteve muito longe de se aninhar no regaço da extrema-esquerda, como devia ser e apregoavam as sondagens. Não sabiam o que se tinha passado. Talvez muitos que se julgava arregimentados tivessem desertado à última hora, em plena mesa de voto.

28.1.15

O Nirvana da Grécia (e, de caminho, da Europa inteira)

My Bloody Valentine, “Feed Me With Your Kiss”, in https://www.youtube.com/watch?v=s6I3JGzJAdM
(Da categoria “análise política não convencional”)
Está feita a profecia. Os deuses – as divindades gregas, bem entendido – continuam a existir. Depois de engolidas numa prolongada hibernação, em que em seu sono deixaram o povo grego nas mãos de bandidos nos governos (ou de governos de bandidos), rebelaram-se em Delfos e repuseram a justiça. A extrema-esquerda ganhou eleições.
Ainda bem. Primeiro, e metendo pelo paroquialismo da análise, dá gosto observar o prazer orgástico com que os pastores da extrema-esquerda doméstica celebraram o triunfo dos camaradas gregos. Só faz bem reconhecer o prazer da vitória dos adversários. Tanto mais que estão tão habituados a serem reduzidos à insignificância eleitoral quando vão a votos. E dá ainda mais prazer porque, imersos numa excitação adolescente, pressagiam semelhantes vitórias de partidos irmãos, ou pelo menos aparentados, por toda a Europa. Uma revoada de novos amanhãs que hão de cantar.
Segundo, faz bem ao princípio da diversidade de ecossistemas. Se há coisa enfadonha é uma paisagem monótona, receitas sempre iguais que não permitem a comparação de resultados, sempre os mesmos rostos alternando no trono do poder. E ter de suportar a jactância dos que nunca vieram para o poder, a arrogância de quem critica tudo o que mexe e nunca foi escrutinado pelas suas alternativas de poder (tivessem lá chegado). Um ecossistema variado enriquece as sociedades. Aumenta o leque de escolha. Com mais hipóteses de escolha, as pessoas têm de refletir melhor sobre o voto. As decisões dos eleitores têm tudo para serem mais racionais.
Agora que entrou um novo paradigma de governação no mapa da Europa, todos temos a ganhar. Vamos poder comparar alternativas, desta vez alternativas em ação, não apenas alternativas no plano das ideias. E os seus resultados. Só temos de esperar que a honestidade intelectual faça o seu caminho para a análise não perturbada por batotas. Não deve a governação de uns ser boicotada pela ação de outros. Nem devem os possíveis insucessos da governação ser imediatamente imputados ao boicote dos outros.
Esta vitória eleitoral é uma prova dos nove. Para testar as soluções mais radicais. Falta saber se um consegue impor a sua vontade aos outros vinte e sete países, se esse possível braço de ferro é coisa democrática – ou se perfilha a versão ensimesmada que a extrema-esquerda tem da democracia, que é fazer impor a sua vontade iluminada contra a vontade meio apedeuta da maioria. As incógnitas sobram dos despojos das eleições. Falta saber se vamos ter radicalismo em ação, se ele é consentido pelos outros parceiros europeus; ou se a extrema-esquerda põe os pés no chão e toma um cálice de realismo, moderando a radicalidade. Qualquer que seja o cenário a vir à palco, falta o mais importante, que só vem depois: perceber se Tsipras, o novo messias, não é outro Hollande.
Dê por onde der, a subida da extrema-esquerda ao poder tem um potencial heurístico. Pela primeira vez, vamos tirar do laboratório das ideias algumas, mais radicais, a que tanto se insiste em colar uma aura de superioridade intelectual. O tempo será seu julgador. Da plateia, cá estaremos no papel de espetadores (e testemunhas).

27.1.15

Sangue frio

Bizarra Locomotiva, “Cada Homem”, in https://www.youtube.com/watch?v=3YAOypXDtLg    
A jugular ferve. As ondas enfurecem-se contra o cais onde a lucidez quer regaço, mas não consegue. Os olhos irradiam efervescências encarnadas, parece que querem saltar das órbitas. A pele, de tão febril, dir-se-ia pronta para frigir alimentos. Pelo corpo fora, um contínuo abalo telúrico; parece que o chão se quer dissolver debaixo dos pés, e um precipício voraz engolir o corpo no seu vazio.
Os elementos aparecem em contumaz conspiração contra tudo. E tudo aparece na ponta de uma baioneta, que com a incandescência dos elementos não demora a bolçar suas balas. O punhal pendente, o punhal que espera pela primeira oportunidade para se emancipar do cordel que o ata, abeira-se dos limites. Por baixo, o rio caudaloso transporta nutrientes iracundos. Chega ao mar e contamina a (já) maré viva com fúria enlameada. Que ninguém se chegue às margens daquele rio, ou ao areal onde o mar se esmaga. Tudo se congemina para a adulteração da alma. Tudo se compõe para o destravar da fala, num troar que acompanha a ventania medonha.
Mas tudo encontra um contrapeso. De que adiantam as febres impuras, os olhares que incomodam, as palavras que incendiam estados de alma, ou as águas tumultuosas que deitam mais ira para a ira que já se transporta em seu leito? Só resolvem a falta de lucidez, que de tão ausente traz consigo ainda mais omissa lucidez. É uma forma de loucura que se abeira do precipício por onde o corpo arremete, carrega em si um íman em direção do precipício. Os sobressaltos desarranjam a alma, são moléculas contaminadas a tomar de assalto as partes nobres da alma.  
Eis que uma garça desenreda as inquietações. No céu, desenha uma coreografia prodigiosa. Os olhos ocupam-se com o céu tomado pela fantasia da ave, que parece dissipar os olhos embaciados com pétalas perfumadas que sobressaem das asas. Das asas que sussurram um segredo: que se meta o sangue fervente em seu refrigério imperativo. Os olhos que se fechem ao que não importa, ou os ouvidos que se encerrem num mutismo, que as importunações todas sejam desfeitas em mero pó e, como pó em que sobejam, destravem a brandura de tudo em redor. Até que sobrem as cores engalanadas do tempo, as palavras sejam todas ungidas com açúcar e a pele esteja embebida no perfume derramado pelas asas da garça.
O sangue, por fim, domado. E já não a torrente selvagem que galga os intrépidos contrafortes que se amontoam no caudal do rio. O punhal só encontrou sangue frio. 

26.1.15

A esperança pequena

Virginia Astley & David Sylvian, “Some Small Hope”, in https://www.youtube.com/watch?v=Tzqje3V__T8
Não era o sono que derrotava a esperança. Podiam os olhos fechar-se no descanso necessário, que as núpcias prometidas aos planos forjados a ferro ficavam pendentes no estirador dos desejos.
Sabia da míngua de probabilidades. A esperança era um módico, uma pequena centelha incensada no fundo de um poço por onde o olhar indagava. Sabia que as peças montadas no tabuleiro jogavam a seu desfavor. Sabia disso tudo. E sabia que os desenganos de outrora cuidavam da prudência, que não houvesse esforços mentais metidos num desejo que podia ser desatendido. À falta de melhor, fermentava a esperança pequena, um nenúfar de onde refulgiam luzes maiores sobre um amanhã qualquer que viesse, emprestando-lhe a luz apetecida.
A fragilidade da esperança não destemperava a tempestade que se adivinhava. A tempestade que viesse. Nada se pode contra a força hercúlea dos elementos, às coisas que a vontade não consegue dominar. Mas há os despojos da tempestade. Esse é o tempo que conta. E não estava a pensar no pleonástico adágio que o povo tratou de convencionar, o adágio que ensina a ordem natural das coisas que põe uma bonança na posteridade de uma tempestade. Intuía, apenas. Intuía que os passos trocados, as portas erradas, o avesso das encruzilhadas, não podiam ser imorredoiros. Se lhe perguntassem se tirava as medidas do seu ser por uma bitola risonha, diria antes que essa era uma bitola bisonha. Não tratara de aprender com as asneiras. Inábil, ou apenas demoradamente inexperiente, às vezes sentia que à existência se negava o rosto mais sorridente de um fado.
Não capitulava. Não era pelos sucessivos contratempos que a vontade de continuar hibernava. Pois a esperança, ainda que em formato pequeno, persistia como uma pequena, mas firme, estrela a cintilar no firmamento. Nem que o céu estivesse plúmbeo, e a tempestade pusesse as coisas em sobressalto, sabia que aquela pequena estrela não desistia do seu lugar no céu bem alto. A estrela sussurrava ao ouvido, para ninguém ouvir, que a sua hora haveria de ter lugar marcado no calendário. Tomava-o como uma profecia sibilada por uma doce sereia que descia do céu.
Até lá, medrava a esperança pequenina.