30.4.15

E se o ricos não fossem maus como os pintam?

Zeca Afonso, “Vampiros” (ao vivo no Coliseu de Lisboa), in https://www.youtube.com/watch?v=ZUEeBhhuUos
(Em véspera do dia do trabalhador)
Os ricos são maus. Egoístas. Avarentos. Tencionam empobrecer os que não fazem parte do escol. Colocá-los à míngua. Para ser mais fácil tê-los na mão. Manobram os pobres para aceitarem mais miséria – pois alguma miséria, por suposto ato bondoso dos ricos, é preferível a uma miséria absoluta.
Os ricos são maniqueístas. Gente boçal que ensimesma os lucros e detesta partilhar com quem precisa. Os ricos, por serem a personificação do diabo na terra, deviam ser castigados com todas as forças que só a uma entidade divina são dadas. Os governos deviam ser a personificação dessa entidade entre os mortais. Os governos deviam cuspir nos ricos. Fazer orelhas moucas sempre que os ricos manobrassem nos interstícios, às escondidas dos holofotes, jogando no tabuleiro das influências para deitarem a mão a regalias que lhes interessem. Os governos deviam aplicar impostos muito elevados aos ricos, já que eles não interiorizam a generosidade como imperativo da solidariedade social. E deviam proibir heranças entre os ricos, para as regras do jogo serem mais justas e todos poderem ambicionar melhores condições de vida, para todos poderem fazer cumprir os sonhos que um não berço não deixava.
Os ricos querem explorar os pobres, a começar pelos que estão ao seu serviço nas empresas de que são donos. Os ricos desejam que os trabalhadores ganhem salários mais baixos por maiores jornadas semanais de trabalho. Que ninguém lhes fale em distribuir lucros com quem permitiu que lucros houvesse, que os trabalhadores só têm trabalho por condescendência dos ricos.
Os ricos são burros: não sabem que a opressão dos pobres fermenta os rudimentos da sublevação. E não sabem nada de história – nem do catecismo marxista. Imersos nesta ignorância, nem lobrigam a hipótese de revolta das massas, que pode acabar num trágico destino para os haveres e para as pessoas dos ricos. Como são ignorantes e dados à avareza, se alguém lhes sussurrar o risco que correm ficam em apoplexia só de imaginarem que os haveres podem ser socializados.
E isto tudo, como generalização que é, é tão nítido e incontestável como dizer que todos os barbudos ruivos e gordos são canhestros e intelectualmente desonestos.

29.4.15

Fragmentos de um entardecer

Cat Power, “The Greatest”, in https://www.youtube.com/watch?v=7X8eIRv3uew
Diz-se dos ocasos que içam as bandeiras da memória. Porque um ocaso, como é o entardecer, empalidece as cores diante dos olhos. Antes que os olhos marejem na decadência febril, viram-se do avesso e partem em demanda das recordações emolduradas num canto do pensamento.
Jogam-se os dados que arregimentam o calendário antepassado. Sopesam-se os seus pesares, os seus fulgurantes retratos, as açoteias das palavras que não deviam ter sido silêncios, os promontórios de onde se avistam proezas em forma de carta de recomendação. Passa tudo diante de uma imaginária tela enquanto os olhos se detêm de frente para o mar, notando no sol poente que se adelgaça à medida que o horizonte o engole. Numa revoada de flash-backs, a imensa linha do tempo também se adelgaça, comprimida no exercício contemplativo do pretérito. Os tementes do futuro e os inebriados com o coevo dirão que revistar as recordações é função condenada à inutilidade.
Qual é o préstimo da nostalgia? Pode não ser nostalgia. É só alinhavar num punhado do tempo o que compulsa intemporalidade. O amanhã não se alimenta de tempos ausentes. Às vezes, há um apelo irrecusável que vem das entranhas, um apelo a peregrinarmos pelos fragmentos que são o resumo avivado da longa linha do tempo sedimentada. Não será pura perda de tempo. Nem afivelamos o ultraje do agora, que esse trata de condensar no instante todos os pretéritos que coseram os alicerces em que assentamos. Esses fragmentos são úteis. Sabendo que a nostalgia não resgata outrora nenhum e pode, em caso de teimosia, trespassar de morte o único fragmento de tempo que tem serventia (o atual). A demanda do tempo açambarcado pode ser a semente da melancolia.
Ninguém surge do nada. Nem o tempo é uma marca que disfarça o que está para trás. Trazemos de lá o que somos. Essa é toda a serventia dos idos tempos resgatados da altura em que o foram. De resto, olhamos de frente para a embocadura do mar que se alinhava diante dos olhos. É por aí que o corpo se mete. Com o lastro do outrora que nos pertenceu, para sabermos ser zeladores da medida do tempo que nos propõe cada alvorada. Sem nos havermos por reféns de um tempo mortiço.

28.4.15

Tu, que não festejas o 25 de abril, desonras a liberdade

Medeiros/Lucas, “Fado do regresso”, in https://www.youtube.com/watch?v=jWpQ4oH9eIA
Ora lá vamos nós outra vez numa viagem pelo relativismo. Quando falamos de liberdade, de liberdades políticas, cívicas e económicas, falamos de um conceito que se objetiva, ou de um conceito que varia consoante as pessoas que o invocam e os seus pessoais lastros?
Começa a ser cansativo ser testemunha de pitonisas datadas, e outras não datadas mas que já aprenderam a retórica retorcida, a convocarem para si o património genético da revolução, a chamarem a si a exclusiva paternidade das liberdades, excluindo as direitas que não participaram no momento de rutura com a ditadura. Como variante deste discurso em forma de disco riscado, vêm outras pitonisas que deploram a ausência cívica de muita gente que não vem para as ruas festejar a revolução, não enverga cravos vermelhos à lapela, não canta a Grândola Vila Morena e não se mete a ouvir o cancioneiro de intervenção.
Há três aspetos curiosos nesta variante retórica a propósito do 25 de abril. Primeiro: alguns intérpretes deste argumentário já se manifestaram no passado contra a hipocrisia de políticos de “direita” por terem tido o topete de meterem cravos vermelhos à lapela num qualquer 25 de abril. Ou seja: se se demitem da ornamentação floral, é porque não honram a revolução e não são tributários das liberdades; se vão à florista mais próxima buscar um cravo vermelho, é só uma excitação hipócrita.
Segundo: esses ascetas da revolução, que têm todo o direito de nidificar numa particular hermenêutica do 25 de abril, não podem escapar ao vínculo ideológico nem à história de contumácia das liberdades que vem de arrasto com esse vínculo ideológico. No sábado, Manuel Loff ensaiou no Público uma visão condoída da perda dos pergaminhos da revolução, usando a sua lente particular acerca do significado da revolução. Se Loff (e companhia) se arroga ao direito de ser tutor das liberdades, e em recusar aos partidos de “direita” um património genético de liberdades, eu tenho o mesmo direito de acusar Loff e companhia (bem entendido: os que, como Loff, se encostam ao PC) de não terem autoridade para falar de liberdades. A história da União Soviética e de outros países que andaram (e dos poucos que ainda andam) pelo comunismo é um programa inteiro sobre a negação das liberdades.
Terceiro: Loff verteu prantos para o seu texto porque, tirando os habituais clientes das comemorações do 25 de abril, a maioria da população não se incomoda em prestar tributo a uma revolução que lhes trouxe a liberdade. Ora, suponho que Loff não se sentiria cómodo ao saber (cenário imaginário) que gente de outros quadrantes estaria a seu lado numa destas manifestações de rua, pelo que se dispensa a manifestação de moralidade. Seguindo as particulares conceções de organização social da ideologia de Loff, todo o cidadão devia honrar a liberdade vindo para a rua louvar a revolução, como obrigatório devia ser (admite-se, sob pena de delação que daria direito a repreensão registada no processo individual dos infratores), apensar encarnado cravo na lapela (e na esquerda lapela).
Da parte que me toca, não recebo instruções de conduta de ninguém – e menos ainda de quem se filia numa ideologia que está nos antípodas das liberdades. Nem menos admito a insinuação loffiana de não honrar a liberdade por não vir para a rua comemorar o 25 de abril, ou de ser fascista por omissão ao não pôr um cravo na lapela. As pessoas não podem ser comandadas através de um comité central que se acha possuído de deificada essência. A Loff e comandita, com toda a delicadeza, mando-os para o raio que os parta.

27.4.15

Encontrei um vulcão

Blur, “Song 2”, in https://www.youtube.com/watch?v=SSbBvKaM6sk
Foi pela alvorada, quando a luz ainda macia trespassa a noite. Estava o vulcão em seus preparos. Onde nem sequer havia uma montanha, cónica como soe ser quando se trata de vulcões.
O que podia ser uma adversidade foi abençoado. Estávamos todos a precisar de abalos telúricos que hipotecassem os frondosos esteios que, já se não percebia, eram travões ao esplendor. Estávamos todos a precisar de ver as entranhas a arder, de as ver vomitar fogo e de apreciar as labaredas a consumirem as ruas desertas. Estávamos todos a precisar de um módico de pânico. Para interpelarmos o sossego que era adversidade, uma inércia ardilosa, a inércia confundida com estáveis mares que não apoquentavam as naus que os frequentassem. O vulcão insubordinou-se. Sem aviso, começou por deitar fumarolas intensas, parecia que estava a fumar um cachimbo descomunal, a ver pelas cinzas espessas que se iam acamando na roupa dos mirones de circunstância. Não se demorou nos seus propósitos. Depressa disse ao que vinha. Num troar iracundo, golfou a lava luminescente.
O vulcão não deu ouvidos aos mercadores do equilíbrio das coisas todas, os que querem que o tempo seja uma entediante repetição de preceitos ordenados em sua harmonia. Os mercadores suplicaram que o vulcão fosse efémero, que cuidasse de assustar as pessoas mas não se demorasse e voltasse à hibernação que era o seu estado admirável. O vulcão não podia dar ouvidos aos testas-de-ferro das coisas sequestradas pela inércia dos deuses do tédio. Os gritos tonitruantes ensurdeciam as redondezas. Ninguém cuidou de saber se o vulcão seria cortês para os porta-vozes da serenidade: os gritos de dor do vulcão distraíam do resto.
Os emissários da serenidade pensaram num plano para contrariar a teimosia do vulcão. Encomendaram os serviços de uns feiticeiros africanos, peritos em destravar a chuva nos idos de seca, para aplacar a fúria do vulcão que cuspia lava como se ela fosse infinita. Os feiticeiros conseguiram fazer chuva. Mas as grossas gotas da chuva cristalizavam assim que aterravam na lava incandescente. O vulcão só adormeceu quando os feitores dos tempos álgidos se convenceram da sua futilidade. Nas sobras de todas as apoquentações bolçadas pelo vulcão, sobejava a vontade de pegar nas cinzas e meter as mãos à obra. Não era um nada que sobrava. Mas, ao menos, as gentes teriam de sacudir a poeira da inércia para refazerem as paisagens em redor.
Fora essa a serventia do vulcão.

24.4.15

Simplesmente peões

Eagulls, “I Wanna Be Adored”, in https://www.youtube.com/watch?v=DE4oFpeaczM
Pobres dos que se certificam a si mesmos matéria central do universo. O resto é que são ilhas. Neles convergem as forças, não descurando de banalizar os atores adjacentes. Epítomes de uma refulgência admirável, como se tivessem nascido untados de ouro. Ou como se sobre eles adejasse uma aura muito especial, predestinada gente que tem sempre a derradeira palavra, arrebanha para si o monopólio da razão e destitui quem bolçar adversativas reduzindo-os a um nada humilhante. Admita-se que é gente que acorda a cogitar como são entidades centrípetas. A eles tudo atrai – mas tudo o que tiver pergaminhos elogiáveis, que as excrescências são depositadas na gente vulgar sem estaleca para entrar no Olimpo dos escolhidos.
E, todavia, mal sabem que não passam de peões. Como todos somos, peões num imenso tabuleiro onde se jogam as peças de um xadrez perene. Uns poucos, a quem o poder se abraça ao regaço, manobram as peças. São esses que pairam dois patamares acima dos demais. Até dos que puxam lustro à sua magnificência e compulsam para si mesmos um estatuto que, ó contristado fado, só existe dentro das suas cabeças.
O dia chegará em que as ilusões esbarram num fim. Para alguns seráficos do eu incomensurável, tal dia já terá chegado. Não terá sido fácil suportar a dolorosa campa da realidade: afinal são tão pequenos como os meãos de quem se julgavam matéria superior. Porventura escondem o dia em que a purulenta realidade lhes bateu à porta. Insistem numa ilusão, desta vez agravada: pois dantes, ao menos, julgavam de espírito convencido que eram peças especiais; agora, que sabem que são tão ornamentais como o vulgar peão, tratam-se como os avestruzes (e metem a cabeça na areia). Oxalá não morram sufocados com a areia imprópria para nutriente. 
Outros, a quem a tesoura tenebrosa das coisas como são ainda não sondou, estão em lista de espera. Não irão escapar a este sabre. Ficarão a saber como doem os precipícios quando neles se entra em queda livre. A dissolução das ilusões a seu próprio respeito tratará de arranjar o desiderato. Ao tomarem conta que o pergaminho especial lhes foi negado, e ao saberem que afinal são tão peões como o mais vulgar dos peões, sentirão os ossos estalar no fim do precipício. Dor que, convém dizê-lo, jamais será sentida pelos peões autênticos. Pois por o serem – e por saberem que o são – não experimentam as calosidades de precipícios assim.