3.9.15

C’est la vie

José Mário Branco, “Inquietação”, in https://www.youtube.com/watch?v=olAOazHmn7I
Em agosto venderam-se cinco Ferrari e doze Porsche. Foi notícia. Ato contínuo, algumas pitonisas da moralidade, naturalmente albergadas à esquerda, bramiram contra a impudicícia do facto. Protestaram, atirando uma enxurrada de adjetivos qualificativos que revelam a má têmpera de quem comprou os bólides. Por entre a obscenidade e a pornografia da correria aos Ferrari e aos Porsche, os zeladores da boa consciência, da justiça social e da decência fizeram o que é habitual: pose de quem tem o exclusivo daqueles atributos e atirar impropérios e o opróbrio aos que militam noutras ondas. Que indecência, por entre tanta crise e o lodo (económico, cívico, de valores, etc.) que nos asfixia, ter havido dezassete frívolos a despender fortunas para adquirirem brinquedos tão caros – e tanta gente a passar tantas necessidades.
Não ocorre a estas pitonisas da moral que, primeiro, talvez fosse importante perceber (se é que é possível) de onde veio o dinheiro que caucionou a compra dos bólides espampanantes. Pode ter sido lavagem de dinheiro, pode ter sido um afortunado no euromilhões, pode ter sido apenas um doidivanas que decidiu permitir a si mesmo um prazer que estava prometido há tanto tempo. E não lhes ocorre, em segundo lugar, que só faltava termos de levar nas trombas com suas sumidades, lídimos representantes daquilo que nas suas excelsas cabeças sentenciaram merecer crédito aos seus (mas só seus) padrões da moral, e o que fica em largo débito – neste caso, preenchendo os requisitos para o prolixo débito de adjetivos inquisitivos.
Nunca me apeteceu tanto ser agraciado pelo euromilhões. Só para, ato contínuo, comprar um Porsche e um Ferrari. Um de cada. E depois responder a estas pitonisas que não admito lições de moralidade ensinadas por eles (como, estou certo, eles não admitiriam lições de moral que eu nunca lhes daria). Terminando a réplica, com incomensurável deleite, mandando-os ao bardamerda.
Bem podem suas excelências, do fundo do seu incorrigível autismo, esgaçar as próprias teorias benzendo-as com o predicado TINA que tanto combatem nos adversários (dir-se-ia, em abono do rigor: inimigos). Podem passar lustro ao valor da igualdade, declarar obscenos ou pornográficos atos de consumo que são um insulto à multidão que passa necessidades. (Mas ainda estou para perceber o porquê destes zeladores da sua moralidade fazerem corresponder a pornografia a uma coisa nefasta...) Podem isso tudo, e mais ainda. Podem, por exemplo, garantir que um imposto sobre o rendimento mais justo, que levasse noventa por cento dos rendimentos dos abastados, precavia frivolidades como a compra de cinco Ferrari e de doze Porsche só em agosto num ano qualquer. O pior é que, mesmo depois desse onírico imposto, se houvesse gente a comprar Ferrari e Porsche, as sentenças desfavoráveis – aposto – manter-se-iam.
Daqui eu proponho uma solução para acalmar as dores de consciência destes indignados: proíba-se a venda de automóveis desportivos – e, de caminho, de automóveis acima de um certo valor (que teríamos de perguntar a suas excelências, os abotoadores da moral, qual seria, para honrar os seus padrões de moral benfazeja). E se da União Europeia mandarem dizer que isso não é permitido pelas leis europeias, não capitulem, ó revolucionários imberbes. A porta da União Europeia também serve para sair. Isto, em não sendo possível o vosso sonho molhado que é fechar as portas da Ferrari, da Porsche e de outras marcas de “prestígio”.

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