28.9.15

Sindicato de poesia

Os Poetas e Herberto Hélder, “Minha Cabeça Estremece”, in https://www.youtube.com/watch?v=yN-rwpZob54&list=PLUzGpoTeivzcAFNMTPkBQiQSumsOlVcxj
Havia um sobressalto febril. Por toda a cidade, poetas anónimos, poetas que não queriam dar o nome, semeavam poemas em lugares aleatórios. Manuscritos, para se provar que os poetas eram pessoas diferentes, e já muitas. Talvez não quisessem dar o nome porque havia os que se mostravam incomodados com os poemas espalhados pela cidade. Os poetas já desconfiavam que isso podia acontecer. Mas não capitulavam. Diziam-se do sindicato de poesia, uma associação sem forma a não ser na vontade dos que lá se albergavam. Conta a lenda que não se conheciam uns aos outros.
Punham pequenos papeis com meia dúzia de estrofes pendurados em árvores. Poemas que precisavam de uma página A4 afixados nas vidraças das paragens do autocarro. Poemas em papel de almaço no teto das carruagens do metro. Poemas que apareciam de surpresa nos painéis que passavam publicidade em forma animada. Poemas em pequenos papeis arrancados a um bloco de notas fazendo paredes meias com os avisos para as missas da semana. Poemas em papeis amarelecidos deitados nos bancos dos jardins. Poemas em post-it verde alface que apareciam de surpresa colados às costas de executivos bem-apessoados. Poemas pintados em paredes imundas (que assim deixavam de o estar). Poemas deixados na parte de trás de um carro (poemas ambulantes). Poemas em tarjas gigantes pendidas nas pontes superiores às autoestradas.
Com o tempo, os resistentes, os tão incomodados com a profusão de poesia na paisagem urbana, acostumaram-se. Deixaram de arrancar a poesia que a generosidade dos poetas oferecia à gente atarefada. Talvez a lessem e relessem quando a furtavam aos lugares que eram sua exibição. Toda aquela poesia embebeu-se na paisagem urbana, tornou-se seu património. Na praça principal da cidade, esvoaçava uma bandeira a dar o mote:
Não há gente feliz
sem um poema por perto.
Não havia regras – nem de métrica, nem de tamanho, nem de assunto versado nos poemas. Os poemas eram o selo da liberdade de criação, como quem quisesse ilustrar os leitores com a lição de que os penhores, ao que quer que seja, deixam-nos gente meã, castrada na sua grandeza. A poesia era cura. E as pessoas, quando saíam pela manhã, já estavam habituadas a andar em demanda dos frescos poemas produzidos pela noite fora. Detinham-se em frente dos poemas. Liam-nos duas, três vezes, enquanto o transporte público não vinha, enquanto faziam uma paragem na canseira diária, ou apenas enquanto tiravam uns minutos com o propósito de se saciarem nas estrofes de um poema. Riam mais, mostravam mais felicidade.
Um dia, um poeta mais ousado deixou este poema na copa de uma árvore centenária:
Não esperemos milagres.
Não nos deitemos resignados.
Não olhemos com o cícero da desconfiança.
Não sejamos traidores às nossas resoluções.
Bebemos a poesia por um cálice de ouro
e deixemos as palavras medrar
na sua transfiguração.
Crescemos com os poemas
os poemas todos
e os poetas todos
sem matéria-prima outra
nem ouro por perto.
Pois não somos inteiros         
de costas voltadas para a poesia.

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