Os Poetas e Herberto Hélder,
“Minha Cabeça Estremece”, in https://www.youtube.com/watch?v=yN-rwpZob54&list=PLUzGpoTeivzcAFNMTPkBQiQSumsOlVcxj
Havia um sobressalto febril. Por toda a cidade, poetas
anónimos, poetas que não queriam dar o nome, semeavam poemas em lugares aleatórios.
Manuscritos, para se provar que os poetas eram pessoas diferentes, e já muitas.
Talvez não quisessem dar o nome porque havia os que se mostravam incomodados
com os poemas espalhados pela cidade. Os poetas já desconfiavam que isso podia
acontecer. Mas não capitulavam. Diziam-se do sindicato de poesia, uma associação
sem forma a não ser na vontade dos que lá se albergavam. Conta a lenda que não
se conheciam uns aos outros.
Punham pequenos papeis com meia dúzia de estrofes
pendurados em árvores. Poemas que precisavam de uma página A4 afixados nas
vidraças das paragens do autocarro. Poemas em papel de almaço no teto das
carruagens do metro. Poemas que apareciam de surpresa nos painéis que passavam
publicidade em forma animada. Poemas em pequenos papeis arrancados a um bloco
de notas fazendo paredes meias com os avisos para as missas da semana. Poemas
em papeis amarelecidos deitados nos bancos dos jardins. Poemas em post-it verde alface que apareciam de
surpresa colados às costas de executivos bem-apessoados. Poemas pintados em
paredes imundas (que assim deixavam de o estar). Poemas deixados na parte de trás
de um carro (poemas ambulantes). Poemas em tarjas gigantes pendidas nas pontes
superiores às autoestradas.
Com o tempo, os resistentes, os tão incomodados com a
profusão de poesia na paisagem urbana, acostumaram-se. Deixaram de arrancar a
poesia que a generosidade dos poetas oferecia à gente atarefada. Talvez a
lessem e relessem quando a furtavam aos lugares que eram sua exibição. Toda aquela
poesia embebeu-se na paisagem urbana, tornou-se seu património. Na praça principal
da cidade, esvoaçava uma bandeira a dar o mote:
Não
há gente feliz
sem
um poema por perto.
Não havia regras – nem de métrica, nem de tamanho, nem
de assunto versado nos poemas. Os poemas eram o selo da liberdade de criação,
como quem quisesse ilustrar os leitores com a lição de que os penhores, ao que
quer que seja, deixam-nos gente meã, castrada na sua grandeza. A poesia era cura.
E as pessoas, quando saíam pela manhã, já estavam habituadas a andar em demanda
dos frescos poemas produzidos pela noite fora. Detinham-se em frente dos
poemas. Liam-nos duas, três vezes, enquanto o transporte público não vinha,
enquanto faziam uma paragem na canseira diária, ou apenas enquanto tiravam uns
minutos com o propósito de se saciarem nas estrofes de um poema. Riam mais,
mostravam mais felicidade.
Um dia, um poeta mais ousado deixou este poema na copa
de uma árvore centenária:
Não
esperemos milagres.
Não
nos deitemos resignados.
Não
olhemos com o cícero da desconfiança.
Não
sejamos traidores às nossas resoluções.
Bebemos
a poesia por um cálice de ouro
e
deixemos as palavras medrar
na
sua transfiguração.
Crescemos
com os poemas
os
poemas todos
e
os poetas todos
sem
matéria-prima outra
nem
ouro por perto.
Pois
não somos inteiros
de
costas voltadas para a poesia.
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