Márcia e Dead Combo, “Visões
ficções”, in https://www.youtube.com/watch?v=nVo9j4TF6Fc
Um lençol em cima do céu. Imenso. Como se asfixiasse o céu.
E, todavia, não são más notícias. Que ninguém se alarme que o céu não vem
abaixo, nem que forças poderosas recolhessem toda a dinamite. As pessoas saem à
rua e dirigem os olhos ao manto branco que afivelou o céu. Demoram-se. Há quem
diga que é presságio do fim do mundo. Outros, mais sensíveis à ficção científica,
ensaiam teorias sobre a visitação de alienígenas. Paradoxalmente, os incréus em
tudo isto viram-se para as igrejas. Os cientistas já não dormem há três noites
seguidas. Os satélites deixaram de funcionar. Talvez seja sinal do poderoso campo
magnético do imenso lençol que atapetou o céu.
Parece que o planeta virou ilha no meio de um buraco
negro e o lençol – propositadamente branco – ilude as pessoas com um módico de
luminosidade. Até que um argonauta destemido pegou no seu avião frágil e trepou
na altitude, para ver onde estava o lençol branco e descobrir o que ele
escondia. Afinal não era inacessível. O velho intrépido fez subir o aviãozinho,
cada vez mais alto. Ao sentir a proximidade do lençol branco, hesitou. Os instrumentos
avisavam que o limite possível da altitude estava quase a ser atingido. Desafiou
os limites – e as leis da física. O avião correspondeu e galgou os pés que
faltavam para tocar no lençol que encamisou o céu. Num golpe de asa, mandou o
avião subir só mais um bocado. Não era nuvem o que escondia o lençol. Era uma
fina camada, não tinha humidade como há nas nuvens quando são penetradas pelos
aviões. Do lado de lá, continuava a ver o planeta a reluzir. Já não percebia
nada.
Teve, então, o que julgou ser uma visão. Um rosto
indiferenciado, masculino, em vésperas de meia-idade, apareceu a poente. De olhos
fechados, a dormir. Talvez acordado pelo ruído monocórdico do motor da
avioneta, a personagem entreabriu os olhos e vociferou, com voz cavernosa, mas
sem eco: “quando desceres, diz aos teus
semelhantes que eu mandei dizer que prefiro assim, o céu tapado. Tu consegues
ver tudo lá para baixo, mas a minha visão é diferente da tua; eu não consigo
ver nada. E prefiro assim.”
O aviador sentia-se por dentro de um sonho – a avioneta
suspensa, desafiando outra vez as leis da física, um rosto também suspenso no
meio do ar. “Mas, quem és tu?”,
interrogou, voz trémula e garganta seca pelo meio da pele arrepiada. “Não sabes que sou? Pergunta aos teus
semelhantes. Eles que te expliquem as malfeitorias que nem eu consigo
contrariar. Desisti. Prefiro deixar de ser o vigilante de outrora. Estão entregues
à vossa sorte.”
Quando aterrou e foi contar as novidades aos microfones,
foi internado à conta da demência que teria apanhado do outro lado do lençol. A
partir daí, fez-se constar que marear por cima das sombras era demência pela
certa.
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