16.9.15

Metamorfose, se for preciso


The Cure, "A Strange Day", in https://www.youtube.com/watch?v=TyG3AtzN1OM
Cair de costas num campo atapetado de neve. Beber um copo de vinho ao entardecer, enquanto o sol desmaia. Olhar no fundo de um poço, sem vertigens. Abraçar quem se deseja abraçar, demoradamente, com a força do desejo. Ver um filme num cinema sem gente. Subir ao cimo da inclinada montanha sempre fora dos caminhos desenhados. Sentir o calor do corpo da filha enquanto vemos televisão. Espreitar as páginas de um livro de autor que não conhecia. Aprender uma coisa diferente um dia de cada vez. Amanhecer com a fome do pequeno-almoço. Desejar a simplicidade. Resgatar uma música de outrora que andava esquecida na memória. Festejar o belo. Admirar a generosidade das pessoas. Revisitar um poema, tomando-o de empréstimo para as cogitações de um ensaio. Sentir o frio da cama no inverno. Sentir o calor do corpo que coabita a cama. Mergulhar nas águas mornas numa praia distante. Ter nas mãos framboesas maduras e abrir o paladar ao deleite. Demitir a resignação nos dias tomados pela sombra. Caminhar pela praia, mesmo que a chuva venha por dentro de todos os poros. Abrir a gaveta e encontrar fotografias perdidas. Soltar o freio à memória do futuro. Cerzir as arestas que adulteram o tempo. Amar a mulher amada. Tirar as medidas ao caudal frondoso que sulca as montanhas. Ter um gato no colo a ronronar. Desmentir o oráculo que embacia o horizonte. Acender a lareira, porque apetece. Voltar a um poema antigo. Sentir os odores de um mercado árabe. Contemplar a sumptuosidade de uma catedral. Invejar (de inveja saudável) os que sabem compor música. Contar os barcos que aportam no cais. Aprender outro idioma. Aprender o conhecimento não municiado. Aprender a tolerância. Não deixar de fazer as coisas. Não esconder as oportunidades. Rejeitar o arrependimento. Aprender a ser a plenitude possível, sem capitular aos protestos que são coalho do módico de grandeza (que habita em mim). Abrindo a camisa e dando o peito nu, na sua inteireza.

1 comentário:

Ana disse...

Bonito texto.
Entre quase perfeito e mais que perfeito ...