The Cure,
"A Strange Day", in https://www.youtube.com/watch?v=TyG3AtzN1OM
Cair de costas num campo
atapetado de neve. Beber um copo de vinho ao entardecer, enquanto o sol
desmaia. Olhar no fundo de um poço, sem vertigens. Abraçar quem se deseja
abraçar, demoradamente, com a força do desejo. Ver um filme num cinema sem
gente. Subir ao cimo da inclinada montanha sempre fora dos caminhos desenhados.
Sentir o calor do corpo da filha enquanto vemos televisão. Espreitar as páginas
de um livro de autor que não conhecia. Aprender uma coisa diferente um dia de cada
vez. Amanhecer com a fome do pequeno-almoço. Desejar a simplicidade. Resgatar
uma música de outrora que andava esquecida na memória. Festejar o belo. Admirar
a generosidade das pessoas. Revisitar um poema, tomando-o de empréstimo para as
cogitações de um ensaio. Sentir o frio da cama no inverno. Sentir o calor do
corpo que coabita a cama. Mergulhar nas águas mornas numa praia distante. Ter
nas mãos framboesas maduras e abrir o paladar ao deleite. Demitir a resignação
nos dias tomados pela sombra. Caminhar pela praia, mesmo que a chuva venha por
dentro de todos os poros. Abrir a gaveta e encontrar fotografias perdidas. Soltar
o freio à memória do futuro. Cerzir as arestas que adulteram o tempo. Amar a
mulher amada. Tirar as medidas ao caudal frondoso que sulca as montanhas. Ter
um gato no colo a ronronar. Desmentir o oráculo que embacia o horizonte.
Acender a lareira, porque apetece. Voltar a um poema antigo. Sentir os odores
de um mercado árabe. Contemplar a sumptuosidade de uma catedral. Invejar (de
inveja saudável) os que sabem compor música. Contar os barcos que aportam no
cais. Aprender outro idioma. Aprender o conhecimento não municiado. Aprender a
tolerância. Não deixar de fazer as coisas. Não esconder as oportunidades. Rejeitar
o arrependimento. Aprender a ser a plenitude possível, sem capitular aos
protestos que são coalho do módico de grandeza (que habita em mim). Abrindo a
camisa e dando o peito nu, na sua inteireza.
1 comentário:
Bonito texto.
Entre quase perfeito e mais que perfeito ...
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