Márcia,
“A insatisfação”, in https://www.youtube.com/watch?v=GfrTkKzFEoE
Gente
sem culpa, se não o azar de ter nascido na terra errada, na terra governada por
gente que desonra aquela gente. Gente que foge da miséria. Às vezes, apenas,
foge da morte certa, que a estupidez dos obuses e da demais artilharia não escolhe
vítimas e leva tudo a eito. Foge como pode, esta gente.
Alguém
lhe segreda que, do outro lado do mar, há uma terra prometida. Um lugar onde,
ao menos, se respira paz e sossego. Um lugar onde as pessoas têm direito ao
mais básico direito que é o direito de serem gente e de serem respeitados como
tal. Parte à aventura, esta gente. É carne para canhão de especuladores das
almas que não têm o escrúpulo como companhia dos sonhos. Muitas vezes, estes
refugiados não chegam à terra prometida. São vítimas de um derradeiro ultraje à
sua precária existência: o mar que se desassossegou e engoliu a balsa, a balsa
tão frágil que não aguentou o infortúnio, a sobrelotação da balsa que não
aguentou tanta gente a fugir para a esperança. Muitos não chegam a respirar a
terra prometida. Quando lá chegam, empurrados pela maré mediterrânea, são
cadáveres.
Na
terra prometida, o sono teima e os governantes demoram a acordar para a
tragédia. Cada dia que passa com almas depostas no mar é um degrau mais a pesar
na culpa dos habitantes da terra prometida. Não sabemos prestar tributo aos
valores que nos ufanamos de patrocinar pelo mundo fora. Quisemos ser
civilizadores quando fomos em demanda de terras que julgávamos habitadas pelos
selvagens; se não soubermos receber os refugiados que só querem ter a esperança
de uma vida que se assemelhe a vida, não honramos esses pergaminhos. Não
sabemos ser civilizadores dentro das fronteiras. Não que seja importante o
culto de sermos civilizadores. Para o caso em que medra esta tragédia, esse ubiguismo
é espúrio, insultuoso, até. Falta saber o que é o respeito por nós mesmos (sem
que isto entre em contradição com o espúrio umbiguismo atrás rejeitado). Falta
abrir as portas e as janelas e fechar a voracidade do mar que se transforma numa
sepultura coletiva de gente inocente e indefesa.
Enquanto
não soubermos como praticar este sublime gesto de humanismo, não seremos terra
prometida. Seremos terra queimada.
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