23.12.15

O perdão diurético

Ryuichi Sakamoto, Cesária Évora e Caetano Veloso, “É preciso perdoar”, 
in https://www.youtube.com/watch?v=JHBnC8b02zM
Pele de aço. Contra os furacões devastadores semeados de fora para dentro. Os que fazem dano. Às vezes, dano maior. E como não temos sangue réptil, o frio sangue que daria caução à indiferença não fosse dar-se o caso de os devastadores furacões povoarem dor por dentro, não viramos cristãmente o rosto para apanhar em dose dobrada com outro furacão entretanto montado.
Como a época se presta à catarse, vem o lugar-comum do perdão como imperativo da quadra. Está mal. Deviam falar do perdão fora do natal, que é quando passamos mais tempo ao longo do compartimento que o calendário arruma num ano. Mas seja: aproveitem-se os fumos favoráveis do natal para interiorizar umas reflexões sobre o perdão.
Há quem diga que viver em permanente sobressalto não é coisa sadia. As guerras constantes dissolvem anos de vida. Trazem calvície a uns, cabelos grisalhos a outros, taquicardias e achaques cardiológicos que podem esbulhar a vida num ápice. E de que servem as disputas, se não para nos acharmos, a certa altura, de mal com a pessoa que somos? Que seja preferível o perdão. Nem que seja para a redenção da pessoa que há em nós. Não se trata, pois, de um perdão genuíno. Dirão os de há pouco: e o que é que isso interessa, se não que o perdão alcatifa os dias serenos por vir e estende a mão à saúde que se desgasta de peleja em peleja?
Outros situam o perdão numa manifestação de nobreza de quem perdoa. É outro lugar-comum, e não menos obnóxio. Não é um perdão genuíno. Perdoa-se porque alguém tem de romper a corda da estultícia, quando com outrem se engalfinha numa pugna estéril. Um dia, o putativo magnânimo encontra-se com uma alvorada radiosa que lhe sussurra ao ouvido que fica bem no retrato se for ele a tomar a iniciativa do perdão. A vontade de o fazer é nula. A promessa de aparecer como se fosse o substituto de uma divindade a quem é dado o poder da absolvição oculta a sobranceria destilada. Não há perdão; há a sua simulação, um cenário de sombras sucessivas em que tudo passa a pertencer ao faz-de-conta.  
E agora pergunta-se: há perdão genuíno, espontâneo? Responda-se com outra interrogação: e o que é que isso interessa? Cada um é juiz das circunstâncias. Julgar um perdão como pretexto de outra coisa qualquer não pertence às prerrogativas de quem está no exterior da indulgência.
E, portanto, é uma perda de tempo teorizar sobre o perdão.

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